sábado, 17 de agosto de 2013

O Faraó Abdel Fattah al-Sisi aguarda

15/8/2013, [*] M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Abdel Fattah al-Sisi como novo Faraó do Egito
A posição altamente oportunista adotada pelas “grandes potências” que têm poder de veto no Conselho de Segurança da ONU impediu aquele augusto corpo de manifestar veemente condenação da brutalidade com que os militares egípcios massacraram mais de 1.000 civis no Cairo na 4ª-feira.

Deve ser registrado como um dos momentos mais vergonhosos da triste história do Conselho de Segurança da ONU numa história de mais de 60 anos. O crime está deposto à soleira da Casa Branca e do Kremlin.

Ambas, Washington e Moscou, optaram por ver os desenvolvimentos egípcios em larga medida sob o prisma geopolítico e dos seus autointeresses respectivos, singularmente sem qualquer traço de compaixão humana ou de moralidade política. As credenciais dessas capitais para lidar com questões do Oriente Médio – o problema palestino, a Síria ou a Primavera Árabe – estão agora sob exame severo.

O Conselho de Segurança reuniu-se em New York na 5ª-feira (15/8/2013) em sessão a portas fechadas, por convocação conjunta de Grã-Bretanha, França e Austrália e de lá saiu com a resposta de mais baixo nível que o mais poderoso corpo da ONU seria capaz de oferecer em questões internacionais, relativa à grave escalada da crise no Egito.


Maria Cristina Perceval, embaixadora da Argentina na ONU, que ocupa agora a presidência rotativa do Conselho de Segurança, viu-se na incômoda posição de ter de enunciar para a imprensa as palavras covardes que as grandes potências lhe ditavam por trás da cortina:

Maria Cristina Perceval
Antes de tudo, os membros expressaram sua simpatia às vítimas e lastimaram a perda de vidas. A opinião dos membros do Conselho é que é importante pôr fim à violência no Egito, que os partidos exerçam a máxima contenção. E houve um desejo comum de que é necessário pôr fim à violência e fazer avançar a reconciliação nacional.

Mas Perceval ainda conseguiu rir por último, porque soube astutamente distanciar seu país – a Argentina, que ainda carrega as cicatrizes profundas que lhe deixaram as ditaduras militares – da vergonhosa posição que o Conselho de Segurança assumiu: reiterou que a Argentina condena veemente e inequivocamente o “golpe de Estado” contra o presidente Mohamed Mursi e a “brutal repressão” da 4ª-feira contra manifestações populares que encheram as ruas das principais cidades do Cairo; e, em nome da Argentina, exigiu que a junta egípcia “cesse imediata e totalmente a espiral de violência que cresceu nos últimos dias contra cidadãos desarmados”.

Curiosamente, a própria ONU não precisou medir palavras para condenar o massacre no Cairo. O Secretário-Geral, Ban Ki-Moon, condenou a junta egípcia “nos temos mais contundentes”. A Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, disse em declaração em Genebra:

Ban Ki-Moon
O número de pessoas mortas e feridas, mesmo segundo o governo, indica uso excessivo, pode-se dizer extremo, de força, contra manifestantes. Exige-se investigação independente, imparcial e confiável da conduta das forças de segurança. E os acusados devem ser levados a julgamento.

As forças de segurança do Egito não estão acima da lei e estão obrigadas a respeitar plenamente os direitos humanos, inclusive direitos de livre manifestação e de reunião pacífica.

Fazendo pouco, tarde demais

Em comparação, o presidente dos EUA Barack Obama optou por uma demonstração de passos na corda bamba diplomática. Anunciou o cancelamento de manobras militares conjuntas planejadas com o Egito, mas não falou de cortar a ajuda militar dos EUA – e ainda se recusa a chamar o “golpe” pelo seu verdadeiro nome. Em vez disso, dedicou-se a manifestar um muito contido desprazer ante o brutal uso da força pelos militares egípcios contra manifestantes no Cairo. Em declaração verborrágica, Obama disse, inter alia,

Barack Obama
Embora Mohamed Mursi tenha sido eleito presidente em eleições democráticas, seu governo não foi inclusivo e não respeitou as ideias de todos os egípcios. Sabemos que muitos egípcios, milhões de egípcios, talvez a maioria dos egípcios clamam por uma mudança de curso (...) Em vez disso, vimos ser adotada uma via mais perigosa, com prisões arbitrárias, amplo ataque às associações e apoiadores do Sr. Mursi e, agora, tragicamente, a violência que ceifou a vida de centenas de pessoas e feriu mais milhares.

Os EUA condenam fortemente os passos adotados pelo governo de transição do Egito e as forças de segurança. Deploramos a violência contra civis (...) Nos opomos à implantação da lei marcial.

Embora desejemos manter nosso relacionamento com o Egito, nossa tradicional cooperação não pode continuar como sempre, quando cidadãos estão sendo mortos nas ruas e direitos são atropelados (...) Orientei minha equipe de segurança nacional para que avalie as implicações das ações do governo provisório e proponha os passos que adotaremos conforme a necessidade com relação a nosso relacionamento EUA-Egito (...)

Acreditamos que o estado de emergência deve ser suspenso, que deve ter início um processo de reconciliação nacional (...) e que se devem manter compromissos para buscar reformas transparentes da Constituição e eleições democráticas de um Parlamento e de um Presidente. [1]

Obama tentou o quase impossível – afastar os EUA do massacre do Cairo, mas sem se afastar dos generais do Cairo. Mais uma vez, demorou um dia inteiro, depois de consumado o massacre, para conseguir rascunhar posição de meio termo.

É mais uma entrada em seu currículo abissal sobre o Egito – fazer pouco, tarde demais, e terminar por emitir mensagens confusas que, assim, comprometem ainda mais a já reduzida capacidade (ou disposição) dos EUA para influenciar os acontecimentos. Cancelar manobras militares dos EUA com o Egito, marcadas para setembro, seria em todos os casos inevitável, nas atuais condições anárquicas no Egito. Obama fez sofisma, ao tentar fazer crer que teria havido aí alguma decisão política deliberada.

Permanece a questão crucial: como Obama espera alcançar os objetivos dos EUA no Egito cancelando manobras militares, num momento em que a junta está sobrecarregada de outras preocupações e a “interoperabilidade” com as forças armadas dos EUA é a última questão que lhe passa pela cabeça?

Seja como for, o tipo de exercício militar tanque-contra-tanque que os EUA fazem com o Egito nada importa ante a percepção de ameaças no Oriente Médio, as quais emanam quase inteiramente das exigências da contrainsurgência e do contraterrorismo. Em suma, Obama optou por safar-se pela via de uma “decisão” sem consequências.

Isso, quando, se há momento ideal para ordenar a suspensão da ajuda militar ao Egito, é já. Será erro estratégico de Obama não suspender a ajuda – US$1,55 bilhão, incluindo $1,3 bilhão para os militares egípcios – e, em vez disso, enfraquecer ainda mais a credibilidade dos EUA, depois de a junta ter tão abertamente desconsiderado os repetidos pedidos dos EUA para que os generais evitassem o banho de sangue.

Abdel Fattah al-Sisi (E) e Chuck Hagel (D) em primeiro plano
Seja como for, no pé em que estão as coisas, é mínima a probabilidade de Obama fazer alguma coisa que, mesmo remotamente, fira os acertos que Washington mantém com os generais egípcios. O Secretário de Defesa, Chuck Hagel, falou com o Comandante do Exército egípcio, General Abdel Fattah al-Sisi na 5ª-feira, para dizer-lhe que a violência recente criaria ameaças para a cooperação militar EUA-Egito, mas também para assegurar-lhe que o governo Obama espera manter intacta sua relação militar com o Cairo.

Persiste, para o governo Obama, o dilema entre a compulsão de mostrar que apoia a democracia no Egito e a compulsão ainda maior de não desmentir a própria retórica de que estaria do “lado certo da história”. Mas, por outro lado, o governo Obama está também sob a compulsão ainda maior de salvaguardar os interesses estratégicos dos EUA no Egito, basicamente na direção de a junta persistir em políticas que servem aos interesses da segurança de Israel e preservar o tratado de paz de 1979, além de continuar a oferecer acesso privilegiado ao Canal de Suez para a Marinha dos EUA – criticamente importante, no nível operacional, para a perpetuação do domínio, pelos militares de Washington, sobre o Oriente Médio, e sua hegemonia regional.

Processos mentais complicados
Sergey Lavrov

Paradoxalmente, a posição dos russos sobre o Egito constrói-se em torno da exploração do agudo dilema político em que se debatem os norte-americanos. Se Obama, pelo menos, abriu a boca para dizer alguma coisa, o Kremlin mantém silêncio pétreo e só mostrará as cartas depois de saber como Obama jogará.

Ironicamente, o embaixador egípcio em Moscou disse que o Cairo conta com a ajuda dos russos “nesse momento de provação, como sempre no passado” (antes de Anwar Sadat expulsar do Egito os conselheiros e especialistas soviéticos). O Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, falou por telefone com seu contraparte egípcio, Nabil Fahmy na 5ª-feira, mas o ministério em Moscou não divulgou detalhes; só informou que os dois diplomatas discutiram “os recentes desenvolvimentos no Egito”.

Nabil Fahmy
O que transpirou noutro nível em Moscou pode dar alguma indicação do que os russos estão pensando e de suas prioridades políticas, enquanto seguem acompanhando o momento: uma conversa telefônica entre Mikhail Bogdanov, enviado do presidente russo para o Oriente Médio e Vice-Ministro de Relações Exteriores, e Sheikh Abdullah bin Zayed Al Nahyan, Ministro de Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos. Detalhe interessante: a conversa aconteceu por iniciativa de Al-Nahyan.

Fonte não identificada no Ministério de Relações Exteriores da Rússia, disse depois que:

Os dois lados [Rússia e Emirados Árabes Unidos] buscam solução pacífica, não violenta, para os problemas dos países na região; respeito à soberania dos estados; e não interferência em seus assuntos internos. Os dois lados decidiram manter vigoroso diálogo político Rússia-Emirados sobre questões de interesse mútuo, incluindo possíveis parcerias entre Rússia e o Conselho de Cooperação dos Estados Árabes do Golfo.

Sheikh Abdullah
bin Zayed Al Nahyan
Pode-se tentar um voo, da janela do avião, sobre os complicados processos de pensamento que fluem pela mente dos russos. Em primeiro lugar, os Emirados Árabes são um do punhado de países que apoiaram integralmente a junta egípcia e insistem que o que acontece hoje no Cairo é questão de manter a lei e a ordem. O Ministro de Relações Exteriores em Abu Dhabi emitiu declaração na 5ª-feira, de apoio à junta:

O Ministério de Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos reafirma que compreende as medidas soberanas adotadas pelo governo do Egito depois de ter demonstrado máximo autocontrole.

A lamentar, que grupos políticos extremistas tenham insistido na retórica da violência, do incitamento e do ataque contra o interesse público, que minaram a economia egípcia e levaram aos eventos deploráveis.

Os Emirados Árabes Unidos já garantiram $3 bilhões de ajuda à junta egípcia, inferior só à ajuda dos sauditas, para financiar o golpe militar no Cairo. Paradoxalmente, a generosa ajuda das oligarquias dos petrodólares do Golfo Persa (aterrorizadas ante o apelo regional da Fraternidade Muçulmana) está permitindo que os generais egípcios suportem qualquer pressão que lhes venha de Washington.

Por sua vez, será imensamente interessante para Moscou, se a divergência de interesses acentuar-se no próximo período, entre os EUA e os ricos aliados do Conselho de Cooperação do Golfo, na delicada questão de ampliar o apoio à junta militar no Cairo. O ponto é que, qualquer divergência nesse campo será, falando essencialmente, divergência sobre futuros rumos da Primavera Árabe, e, por sua vez, lançará sombras sobre o conflito na Síria, onde Arábia Saudita e Emirados estão entre os mais fervorosos apoiadores dos “rebeldes”.

Mikhail Bogdanov
Interessa a Moscou manter abertas linhas de comunicação com a Arábia Saudita e os Emirados quanto aos desenvolvimentos sírios, num momento em que as potências ocidentais estão, mais ou menos, se desengajando de envolvimento militar significativo no conflito. Moscou receberá com agradável surpresa qualquer indicação de que os desenvolvimentos no Egito – que interessam vitalmente, como preocupação central, às oligarquias do petrodólar da região do Golfo Persa – mostrem Rússia, Arábia Saudita e os Emirados cada vez mais claramente postados “do mesmo lado”.

Esses três veem a Fraternidade como uma substância tóxica no corpo político do Oriente Médio; e os três consideram abominável que o Islã político esteja ganhando ascendência como força vital do novo Oriente Médio. A Rússia considera proscrita a Fraternidade Muçulmana, como organização subversiva.

Além do mais, a Rússia tem felizes lembranças de quando negociava com o corpo de oficiais do exército egípcio na era soviética e estará inclinada a vê-los como defesa “secular” contra o dilúvio do “islamismo”. Não parece especialmente perturbada pela possibilidade de que, no vácuo criado por uma retirada da moderada Fraternidade egípcia, os salafistas, que são a “alma-raiz” das forças que os russos combatem no Norte do Cáucaso (e que os sauditas alimentam, como instrumento de política regional no Oriente Médio Expandido) possam surgir como vanguarda do “islamismo”.

Mas o que realmente conta hoje, para Moscou, não é o destino do islamismo, mas a geopolítica. Qualquer diferença que surja entre o Pentágono e os militares egípcios pode pinçar dramaticamente Moscou, e pô-la na posição de mentora dos generais em comando no Cairo. O Egito é o epicentro da política no Oriente Médio, e um renascimento de sua influência no Cairo pode dar grande impulso à influência regional da Rússia como um todo, em ampla variedade de fronts; e carrega o potencial para projetar os russos como árbitros da paz e da estabilidade.

A implicação em termos de exportação de armas e outras vantagens econômicas é também autoevidente. Naturalmente, o Kremlin observa atentamente como Obama se safa de suas dificuldades egípcias.

Pelas atuais tendências, Moscou sempre gostará de ver que o Presidente dos EUA fracassa consistentemente e não consegue ter impacto significativo no comportamento dos generais egípcios, os quais estão convencidos de que enfrentam luta existencial e não se mostram inclinados a voltar à “normalidade”, para acomodar a Fraternidade numa democracia “inclusiva”.

Os generais egípcios apreciarão que a ajuda dos EUA seja mantida, mas, por mais desejável que aquela ajuda seja, ela não é absolutamente pré-requisito para a sobrevivência, se vier a um preço político inaceitável. É onde benfeitores como a Arábia Saudita, o Kuwait e os Emirados Árabes Unidos, que prometeram ajuda financeira de $12 bilhões – e potencialmente a Rússia, grande fornecedora de armas – aparecem à mão, acessíveis, para a junta egípcia.

Isso posto, depois de intervalo de 42 anos, abre-se uma janela de oportunidade para que a Rússia faça sua reestreia política nos corredores do poder do Cairo, como ator em tempo integral. No dia 18/7/1972, o então líder egípcio Anwar Sadat anunciou a expulsão sumária, do Egito, de cerca de 5.000 conselheiros militares e 15 mil elementos da Força Aérea soviética.

Nesses termos, deve-se esperar que Washington faça todo o possível, não importa a que preço, para que aquela janela sobre as margens do Nilo não se abra o suficiente para que por ali se esgueire um urso, e, de fato, os EUA ainda têm vasto poder residual para conter o que tenha de ser contido e domar generais pecadores e autocratas indisciplinados do Golfo. No clima atual das relações EUA-Rússia, o governo Obama absolutamente não se recolherá e não abrirá espaços para a Rússia no Oriente Médio.

O escandaloso impasse que se viu no Conselho de Segurança da ONU na 5ª-feira, é reflexão bem acurada da dura batalha que se trava entre as grandes potências, pela influência no Cairo. O vencedor, claro, é Sisi, o novo faraó do Nilo – pelo menos, por enquanto.


[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Irã, Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The HinduAsia Times Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.



Nota dos tradutores



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