22/8/2013, [*] Mark LeVine, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
François-Noël Babeuf |
(...)
Vi em Paris que a multidão simples e sem estudo havia sido levada pelos
inimigos do povo a um cordial desprezo pela República. Disse para mim mesmo: a
República está perdida, a menos que algum golpe de gênio a salve. O monarquismo
com certeza não hesitará em retomar o controle sobre nós. Não vi ninguém
disposto a reviver o ímpeto corajoso dos primeiros dias. Mesmo assim, disse a
mim mesmo, o mesmo fermento de cuidado e amor por todos os homens ainda existe.
Manifesto dos Iguais,
1796,
(em português).
Palavras
de François-Noël Babeuf, [epígrafe] o grande agitador político e jornalista do
período da Revolução Francesa e advogado seminal do comunismo. Babeuf disse
essas palavras quando estava sendo julgado por tentar derrubar o Diretório,
então governo Republicano, para levar a situação que os revolucionários
enfrentavam oito anos antes na direção de algo que se pode descrever como uma
revolução ainda inacabada. Por eloquentes que fossem suas palavras, Babeuf foi
mesmo assim considerado culpado e guilhotinado em maio de 1797.
Mohamed Mursi |
Apesar
do destino de Babeuf, essas palavras devem reconfortar os revolucionários no
Egito, tomados por crescente senso de futilidade nas semanas que se seguiram ao
golpe que afastou Mohamed Mursi do governo. Muitas revoluções passam por
momentos de total remissão, e caem até muito mais abaixo que a atual situação no
Egito. E em poucas há a dinâmica social política e econômica para retornar a um
consenso revolucionário que tenha permanecido tão favorável quanto o que ainda
há no Egito.
Mas
muito mais interessantes que o exemplo inspirador de Babeuf e o que possa haver
nele de inspirador para o Egito, são suas ideias sobre a violência. O pensamento
de Babeuf para a França está entre os mais progressistas e igualitários de seu
tempo, mas Babeuf não era pacifista. De fato, como muitos dos que militavam nos
vários lados e facções da Revolução Francesa, ele via o uso da violência em
grande escala, violência de massa, como prática necessária e estrategicamente
valiosa. Por trás d’O Terror houve muitos revolucionários comuns que sentiam que
a violência – e igualmente importante, o medo – que o definiram não eram apenas
preço aceitável a pagar, mas, também, ferramentas crucialmente importantes para
garantir a sobrevivência da Revolução e impedir o nível muitíssimo maior de
violência que, diziam eles, seria desencadeada se a contrarrevolução vencesse.
As
muitas verdades d’O Terror
Não
consigo parar de pensar nas palavras de Babeuf e em suas ideias sobre o
terrorismo, enquanto tento decifrar as acusações que voam de lado a lado entre
os militares, o governo e a imprensa-empresa egípcios, e a Fraternidade
Muçulmana e seus apoiadores, de que o outro lado cometeu violência ilegal e até
atos de terrorismo contra o povo egípcio.
Tanto os militares como a Irmandade Muçulmana julgam-se "protetores do povo egípcio" |
Enquanto
os EUA e outros governos várias vezes tentaram limitar a definição legal de terrorismo a atos
cometidos por entidades não estatais (exceto os “estados
bandidos” [orig. rogue states]), praticamente toda a legislação
internacional ainda considera como terrorismo todos os atos de ataque deliberado
contra civis praticados seja por governos seja por grupos não estatais.
No
Egito hoje, a prova de assassinato deliberado e de ataque
terrorista, tanto por forças do governo como por forças e membros
da Fraternidade Muçulmana e (alegadamente) por forças religiosas radicais é evidente e abundante
demais para ser negada. Mas os estados têm maior responsabilidade
para impor o império da lei e os padrões internacionais de respeito aos direitos
humanos, mesmo – e sobretudo – quando os cidadãos não o façam. Quanto a isso, como Patrick Kingsley argumenta,
acusatório:
Cercados
pela retórica sobre o terrorismo islamista, poucos parecem dar-se contra que a
maior parte do terrorismo veio, de fato, do estado.
Os "protetores" perseguem o povo nas ruas |
Se
algum dia houve situação que clama pela criação de uma Comissão da Verdade da
ONU, é a violência dos dois últimos meses no Egito. Mas contar cadáveres e
estabelecer que lado agiu mais “terroristamente” não é absolutamente a tarefa
mais importante que espera os que buscam reduzir a violência atual. Cabe a
esses, isso sim, compreender e explicar por que várias forças concorrentes
recorreram a tamanha violência, mesmo sabendo que a violência sempre será
claramente contraproducente com vistas à legitimidade e à sobrevivência de longo
prazo.
Se
autocolonizar, outra vez, outra vez...
Os
militares, seus clientes e aliados, a Fraternidade Muçulmana, todos tentaram
definir-se eles mesmos como protetores, garantidores e até como vanguardas da
revolução de 25 de janeiro. São argumentos que há muito tempo são usados para
justificar todas as formas de violência pelos Estados, contra forças que se
oponham a eles. Se soam ridículo ante os eventos dos últimos dois meses, nem por
isso seria adequado assumir que representariam elementos que competem entre eles
num mesmo bloco
contrarrevolucionário.
Antonio Negri |
Em
vez de meramente fazer oposição ao impulso revolucionário que varreu o Egito no
início de 2011, o pós-25 de janeiro – liderado pelo Comando Supremo das Forças
Armadas ou pela Fraternidade – centrou-se em como conduzir uma revolução
passiva que absorvesse a incrível energia – ou a “potência”, como diz o filósofo
italiano Antonio Negri – das massas de egípcios, garantindo mudança e
desenvolvimento suficiente para diluir ou redirecionar o ímpeto e as esperanças
revolucionárias da maioria da população, marginalizando e afinal privando as
vozes revolucionárias remanescentes, de qualquer fatia significativa de poder.
Por
algum tempo, a Fraternidade, com sua visão de mundo hierárquica, patriarcal,
autoritária, embora tecno-moderna, e raízes sociais ostensivamente profundas,
pareceu ser o grupo perfeito para administrar a revolução passiva, sem ameaçar o
poder e os privilégio das elites da era Mubarak. É difícil dizer se foi a
resistência dos elementos do antigo regime dentro do Estado, ou a arrogância, a
incompetência e/ou a ganância da Fraternidade, ou algum tipo de combinação de
todos esses fatores, o principal responsável pelo retumbante fracasso da
Fraternidade na gestão do período de transição.
Fato
é que, à altura da primavera desse ano, uma nova onda revolucionário já
acumulava energia, e baseada na mesma energia bruta –Tamarod, Rebele-se!
– que motivara a explosão revolucionária original de janeiro de 2011
(Fora!/Irhal!) ou na Tunísia, pouco antes (Saiam!/Degage!). Mas,
então, mais facilmente redirecionada e cooptada que sua encarnação original.
Manifestante do grupo Tamarod |
Essa
dinâmica obriga a enfrentar a questão de por que as forças revolucionárias cujas
ações precipitaram essas lutas pelo poder foram tão amplamente excluídas das
próprias lutas, e tão significativamente incapazes de modelar o sistema político
pós-Mubarak, até que o Tamarod apareceu em cena, essa primavera. A resposta terá
de considerar o fato de que o campo de batalha no Egito pós-Mubarak – controle
sobre as instituições e ideologia do estado egípcio – é campo no qual as forças
revolucionárias sempre estão em terrível desvantagem, depois de consumido o
ímpeto inicial de energia revolucionária.
O
problema não é o estado egípcio. A própria instituição e os discursos do moderno
estado-nação são inextrincavelmente atados a uma matriz de discursos – o
capitalismo, o impacto ainda vivo de séculos de imperialismo e de colonialismo,
os nacionalismos e o impulso destrutivo da modernidade em geral – que tantas
vezes produz estados formatados para operar e funcionar como organizações-empresas
criminosas e veículos (ou, pelo menos, conduítes) para o terror, mas
apresentados como instituições de governança. Em particular, o tipo de ideologia
nacionalista militarizada que está de repente dominando o Egito sempre
justificou, dirigiu e muitas vezes pregou e defendeu o balanço manipulado de
poder e a violência no coração da maioria das sociedades.
Michel Foucault |
Na
era colonial, pela qual passaram muitos países árabes, os mais negativos efeitos
dessa dinâmica foram deslocados para as colônias. Dentro dos territórios
colonizados, foram deslocados localmente, conforme as hierarquias sociais,
econômicas e políticas existentes ou impostas. Como Michel Foucault mostrou em
suas conferências de 1976 no College de
France, os modelos e técnicas de mando que emergiram e foram tão brutalmente
aplicados nas colônias, pela Europa, ricochetaram como bumerangues de volta
sobre os mecanismos, instituições e técnicas de poder da Europa, permitindo que
estados europeus “praticassem algo semelhante à colonização, ou uma colonização
interna, neles próprios”.
Quanto
aos países que a Europa colonizou, o bumerangue atingiu cada vez com mais força,
cada vez que ricocheteou de volta à região, desde os governos ainda dependentes
imediatamente pós-coloniais, durante décadas de mando militar “revolucionário”,
até os anos neoliberais que começaram nos anos 1970s e incorporaram segmentos
chaves das elites dos países, à altura dos anos 1990s. Fossem estados
“liberais”, “socialistas” ou islamistas, a participação na nação sempre foi
limitada e vedada por um quase permanente “estado de exceção”, ou distanciamento
do corpo político, no qual nenhum cidadão poderia ser inserido a qualquer
momento, e sobre o qual se teciam as redes étnicas e sectárias que sempre houve
por baixo de todas as identidades oficiais nação-cêntricas.
Exercito invade a mesquita Al-Fath no Cairo |
A
ameaça e a realidade de morte física e social sempre estiveram no coração do
modo como o poder, em suas várias modalidades – pastoral, soberano e
disciplinar, como Foucault os categorizou – funcionou no mundo árabe, onde a
família patriarcal e estruturas políticas patrimoniais ainda reinam. No
Ocidente, essas formas emergiram uma depois da outra, embora com significativa
sobreposição. No mundo árabe sempre foram, desde o início, e assim permanecem
até hoje, rigidamente entretecidas, uma forma reforçando nas outras a capacidade
de modelar os contornos das identidades e ações dos povos, de tal modo que
qualquer mudança progressista sistemática é sempre difícil de imaginar e de
buscar.
Dado
o poder de sinergia do capitalismo moderno, do colonialismo e do nacionalismo, é
fácil compreender o quanto é limitada a possibilidade de um movimento
revolucionário gerar grande mudança na estrutura de governança de um país. Se
não é bem-sucedido rapidamente, em assalto direto ao estado, assalto
revolucionário que derrube as estruturas políticas existentes e redirecione a
miríade de conduítes de poder que as atravessam, é mínima a chance de que a
revolução consiga transformar por dentro o estado. (E, como a experiência do
Iraque e agora da Líbia nos obriga a lembrar, é muito mais fácil desmantelar um
estado, que construir um novo, não importa quantos recursos haja à disposição.)
Assim acontece que muitas revoluções tornam-se passivas muito rapidamente depois
do que parece ser o auge de seu poder.
Mudar
o equilíbrio do poder?
A
rápida disseminação da educação e a revolução tecnológica da última geração
realmente abriram novos espaços para que jovens árabes desenvolvessem novas
formas de resistência contra estados autoritários. Quando as condições
econômicas amadureceram suficientemente, as ferramentas à disposição de uma nova
geração de ativistas permitiram que se erguesse ali a primeira grande maré
revolucionária do século 21.
Em 1/jul/2013 o povo egípcio reviveu a Praça Tahrir de jan/fev de 2011 |
A
“juventude revolucionária” que comandou a revolução de 18 dias centrada na Praça
Tahrir em janeiro-fevereiro 2011 tinha as ferramentas, o discurso e a ausência
de medo para sacudir e até para parcialmente desalojar o sistema. Mas não teve
capacidade para criar uma nova estrutura de estado para pôr naquele lugar, uma
nova estrutura baseada em modalidades muito diferentes de poder, que não fosse
dominada pelas elites de poder existentes. Tampouco conseguiram fazê-lo os
liberais tão execrados, os quais, como todos os liberais em todo o mundo, são
absolutamente incapazes de pressionar por mudança socioeconômica e política
revolucionária, precisamente porque seus interesses estão sempre muito mais
perto dos interesses das elites, que dos interesses das massas amargamente
pobres, “analfabetos” (como ElBaradei e outros líderes liberais os chamam,
arrogantemente) e compatriotas conservadores que seriam os maiores beneficiários
de qualquer revolução por “pão, liberdade, justiça social e dignidade” que
mereça o nome.
Hosni Mubarak |
Hoje parece que o Egito voltou à
era Mubarak, com repressão, propaganda e violência patrocinada pelo estado, em
níveis ainda mais altos que antes de 25/1/2011. Mas embora as coisas pareçam
desesperadoras da perspectiva dos que buscam mudança revolucionária, de fato a
posição dos militares não é, nem de longe, tão firme como parecem crer os que
estão distribuindo memes “Mubarak 2014” pelo
Facebook (e ainda não se sabe sequer se
como piada ou seriamente).
Mediante
qualquer mecanismo possível – ajuda, estímulo fiscal, aumento na produção e no
comércio – o Egito precisa acrescentar dezenas de bilhões de dólares ao seu PIB,
e imediatamente. Não em cinco ou dez anos, mas já, se quiser sobreviver aos
problemas incapacitantes que enfrenta hoje, no plano social, econômico e de
infraestrutura. Mesmo com massiva injeção de dinheiro saudita e dos Emirados, o
Estado e o sistema de poder atualmente existente estão simplesmente corrompidos
demais para levar desenvolvimento e riqueza à maioria da população, e não
importa quanto de ajuda ou investimento estrangeiro jorre sobre o país.
Só
a total transformação da economia política do país, que ninguém, além dos
revolucionários, tem interesse em fazer pode alcançar aquele resultado. Os
egípcios já sabiam disso, motivo pelo qual a Revolução de 25 de janeiro exigiu
não apenas a substituição de Mubarak, mas o fim do governo militar e de todo o
sistema.
A
menos que os militares consigam operar um milagre econômico sem precedentes nos
próximos meses, não será surpresa se se voltar a ouvir os cantos revolucionários
da Praça Tahrir, mais uma vez. Quando acontecer, os militares e o estado
profundo já não encontrarão, para culpar, nem a Fraternidade Muçulmana.
[*] Mark LeVine é professor de história do
Oriente Médio na Universidade de Irvine e professor visitante ilustre no Centro
de Estudos do Oriente Médio na Universidade de Lund, na Suécia. Atualmente está escrevendo
um livro sobre as revoluções no mundo árabe: The Five Year Old Who Toppled a
Pharaoh.
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