8/8/2013, [*] Richard Falk, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Documento de concessão temporária da Rússia a Edward Snowden, por um ano, com status de refugiado político |
A
imprensa-empresa mais influente nos EUA tem usado três meios para reforçar seu
viés a favor do governo, no caso Snowden:
Primeiro,
refere-se sempre a Snowden como “vazador” [orig. lit. leaker], em vez de
“alertador” [orig. whistleblower, lit. “tocador de apito”] ou “dissidente
[do estado] de vigilância”, designações mais precisas e mais respeitosas.
Segundo,
a imprensa-empresa dominante ignora completamente o quanto o gesto dos russos,
de dar status de refugiado temporário a Snowden por um ano está em
perfeito acordo com o nível normal de proteção a ser dada a qualquer pessoa
acusada de crimes políticos não violentos em país estrangeiro, e perseguida
diplomaticamente e legalmente por governo que busque indiciá-la e processá-la.
A
Rússia entregar Snowden aos EUA nessas condições seria moralmente e
politicamente escandaloso, considerando-se a natureza dos crimes de que os EUA
acusam Snowden.
Terceiro,
a imprensa-empresa dominante recusa-se a reconhecer que espionagem, a principal
acusação feita contra Snowden, é a principal e maior, a “ofensa política”
essencial, na lei internacional, e como tal é rotineiramente excluída de
qualquer lista de ofensas que geram extradição.
Assim
sendo, ainda que existisse tratado de extradição entre EUA e Rússia, seria
preciso deixar absolutamente claro que não há nenhum dever legal, para os
russos, de entregar Snowden às autoridades dos EUA para ser processado
criminalmente e, sim, haveria um dever moral e político de não o entregar,
sobretudo nas circunstâncias que cercam a controvérsia sobre Snowden.
Barack Obama |
Se
todos esses elementos estivessem sendo claramente articulados na discussão, pela
imprensa-empresa, o governo dos EUA já teria sido exposto como ridículo, ao
reclamar contra a disposição de vários governos estrangeiros de dar asilo a
Snowden.
O
governo Obama e os cabeças quentes do Senado que lastimassem o quanto quisessem
por não poderem processar Snowden nos EUA; mas que o fizessem só com seus
próprios botões. Em todos os casos, qualquer reclamação sempre seria o que é:
império petulante, mostrando ira e fúria em caso no qual todo o seu poder mais
duro, em todo o mundo, não lhe serve para coisa alguma; e suas opções políticas
são proibidas por lei.
Nessas
condições, pôr-se a ameaçar países estrangeiros com consequências diplomáticas
adversas no caso de se recusarem e entrar no jogo não é só manifestação de
frustração infantiloide: também é gesto que denuncia a própria derrota.
Os
países que ofereceram asilo a Snowden ou que se recusaram, na forma adequada, a
atender à requisição de Washington, quando os EUA requisitaram a custódia de
Snowden, fizeram a única coisa decente que havia a fazer.
Surpreendente,
isso sim, que outros governos não se tenham apresentado para fazer o mesmo.
Assim se criou uma situação na qual países relativamente pequenos, como Bolívia,
Venezuela e Nicarágua foram forçados a encarar sozinhos as violentas táticas “de
braço longo” dos EUA – o que talvez sinalize uma bem-vinda nova atitude, mais
firme, mais decidida, em toda a América Latina, de não mais aceitar como
identidade regional a posição de quintal dos fundos do colosso do Norte.
Deve-se
registrar que o presidente Vladimir Putin, considerando a natureza das
revelações sobre o alcance global dos sistemas norte-americanos de vigilância e
controle, agiu com excepcional deferência e muita consideração ante as
sensibilidades norte-americanas. Em vez de simplesmente declarar que Snowden só
seria entregue aos EUA se assim o desejasse, Putin cuidou de dizer que não
queria que o incidente ferisse as relações da Rússia com os EUA. Chegou até a
condicionar a concessão do asilo a uma muito estranha promessa, que exigiu de
Snowden, de que não voltaria a divulgar documentos que arranhassem interesses
norte-americanos.
Charles Schumer |
Foi abordagem construtiva, em
situação extremamente delicada, que supera, qualitativamente, os arroubos
hiperbólicos e as palavras agressivas do senador suposto Democrata de New York, Charles Schumer:
A
Rússia nos apunhalou pelas costas (...) Cada dia que Snowden permanece em
liberdade, é mais uma corte do punhal, na ferida.
Devem-se
cobrar respostas honestas a esses senadores tão terrivelmente ofendidos, entre
os quais John McCain e Lindsey Graham, que não perdem chance de inventar brigas.
O que teriam feito, se um alertador russo tivesse revelado detalhes de um
sistema russo de espionagem que estivesse ouvindo todas as deliberações secretas
do governo em Washington e invadindo a privacidade de todos os norte-americanos?
A indignação arrogante seria sem limites nos EUA, como também seria infinita a
gratidão que cobriria o Snowden russo.
Mas Washington só faz procurar
meios para manifestar o quanto está ‘ofendida’ pelo comportamento dos russos. O
secretário de imprensa da presidência dos EUA, fala de “extremo desapontamento”,
que pode levar Obama a cancelar encontro marcado com Putin para setembro, em cuja
agenda estão itens como Síria, redução de arsenais nucleares e o Irã.
John McCain (E) e Lindsey Graham (D) |
Os
senadores John McCain e Lindsey Graham, saudosos dos dias da Guerra Fria,
lançaram manifesto conjunto incendiário, exigindo que os EUA passem a considerar
a Rússia numa ótica de conflito. Propuseram impetuosamente que, como reação ao
asilo concedido a Snowden, se acelerem os planos para instalação de sistemas de
mísseis de defesa na Europa e expanda-se a OTAN, em termos que o Kremlin teria
de interpretar como de antagonismo declarado.
É
verdade que a nova identidade de Putin, como “defensor de direitos humanos” não
tem toda a necessária credibilidade, se se considera o modo como os dissidentes
políticos são tratados na Rússia, mas isso não diminui a evidência de que a
resposta que deu ao caso Snowden foi corretíssima.
Há
obtusidade na fúria com que a diplomacia dos EUA está atuando nesse caso. Os
atos de espionagem que Snowden cometeu são puro delito de natureza política.
Além disso, a natureza do que foi revelado mostrou que, sim, há ameaça real e
repetida à confidencialidade das comunicações de governo em todo o mundo
No
mínimo, em vez de se deixar intimidar pelas demandas descabidas dos EUA, a
resposta internacional mais apropriada e mais saudável seria gritar “Falta!” e
parar o jogo.
Se
o mundo fosse constituído de estados igualmente soberanos e houvesse legislação
global, os EUA teriam de humildemente pedir desculpas e, no mínimo, prometer que
não repetiriam no futuro, o comportamento de até agora.
Snowden
seria punido por desobedecer à lei norte-americana, mas seria condecorado por
apontar algumas feias agressões à liberdade e à ordem constitucional, inclusive
dentro dos EUA, mostrando o quanto é perigoso deixar o serviço de equilibrar
segurança e respeito às liberdades civis entregue à boa fé e ao juízo de
burocratas e políticos.
Vivemos
um triste momento de verdade, que fala muito de alinhamentos e sensibilidades.
Alguns importantes comentaristas nos EUA, como o ex-diretor da CIA Robert Gates,
e Jeffrey Toobin, especialista da rede CNN para questões legais, alinharam-se
com a ordem estabelecida; disseram que confiam mais em anônimos funcionários
públicos obedientes ao governo, que num dissidente como Edward Snowden que se dá
o direito de decidir o que o público precisa saber.
Bradley Manning (E) e Julian Assange (D) |
Como
nos casos de Julian Assange e Bradley Manning, o teste crucial não acontece
nesse nível de abstração, mas tem a ver com a concretude e implica decidir se o
que foi revelado é o tipo de segredo sujo que uma sociedade democrática poderia
ignorar para sempre.
Seria
de esperar que governo genuinamente democrático não desejasse encobrir crimes de
guerra e a invasão da privacidade dos cidadãos, nem que tanto se empenhasse para
manter esses crimes protegidos contra qualquer procedimento para aumentar a
transparência.
Darth Vader |
Na
era das maravilhas digitais, mais do que nunca dependemos de cidadãos de
consciência, que nos protejam contra cenários orwellianos cerebrados por aspirantes a
Darth Vaders que vivem nas
profundezas obscuras da burocracia governamental em Washington. Esses são os
indivíduos que repetidamente arrastam os EUA para o lado obscuro da força, em
lugares como Guantánamo, Abu Ghraib e a base Bagram da Força Aérea, e constroem
os infames “buracos negros” e inventam procedimentos depravados como a “entrega
extrema” [orig. extreme rendition], pela qual suspeitos podem ser
torturados sob certeza de impunidade para os torturadores, também no caso de se
comprovar que o torturado é inocente.
Nós,
cidadãos do mundo, devemos ser gratos pelos sacrifícios de indivíduos como
Julian Assange, Bradley Manning e Edward Snowden, com certeza os principais
heróis do nosso tempo. E se sonhamos com governos legítimos, nossos governantes
e representantes eleitos devem também ser gratos pela possibilidade de pôr fim
aos abusos do poder.
[*] Richard
Falk é Professor Emérito da cátedra
Albert G. Milbank de Direito Internacional na Princeton University e Professor
Visitante Emérito de Estudos Internacionais na University of California, Santa Barbara.
É também Relator Especial da ONU para Direitos Humanos na
Palestina.
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