16/8/2013, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online- The Roving
Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Procura de pessoa entre centenas, talvez milhares de assassinadas pelo exército egípcio no "banho de sangue que não é banho de sangue" |
Escrevi em outro
artigo que o que está acontecendo no
Egito é um banho de sangue que não é banho de sangue, promovido por uma junta
militar responsável por um golpe que não é golpe, sob o disfarce de uma “guerra
ao terror” à egípcia. Mas esse gambito em novilíngua – que facilmente pode ter
sido escrito na Casa Branca – é só parte do quadro.
Sob o denso nevoeiro de opiniões e
agendas concorrentes, um fato impressionante se destaca. Pesquisa feita há
apenas dez dias, pelo Egyptian
Center for Media Studies and Public Opinion já mostrava que
69% dos egípcios opunham-se ao golpe
militar de 3 de julho orquestrado
pelo pinochetesco Abdel Fattah
al-Sisi.
O
banho de sangue que não é banho de sangue, pois, não pode de modo algum ser
considerado legítimo – se não por um bando de mubarakistas privilegiados (os
chamados fulool), grupelho de oligarcas corruptos e o “estado profundo”
egípcio controlado pelos militares.
Mohamed Mursi |
O governo da Fraternidade
Muçulmana liderado por Mursi pode ter sido supremamente incompetente – tentando
re-escrever a Constituição; incitando os fundamentalistas linha duríssima; e
curvado em reverência ante o Fundo Monetário Internacional. Mas não se pode
esquecer que tudo isso veio junto com sabotagem
total, permanente, pelo “estado profundo”.
É verdade que o Egito estava – e
continua – à beira do total colapso econômico; o banho de sangue que não é banho
de sangue sobreveio depois de uma mudança em quem assinava os cheques, antes os
qataris, agora os sauditas (e os Emirados Árabes Unidos). Como Spengler já
demonstrou nesse portal (ver “Islam’s civil
war moves to Egypt”, Asia Times Online,
8/7/2013), o Egito permanecerá uma
república de bananas sem bananas e dependente de estrangeiros até para comer
banana. O desastre econômico não se apaga – e tampouco se apaga o ressentimento
cósmico dos Irmãos da Fraternidade Muçulmana.
Vencedor,
no pé em que estão as coisas é o eixo Casa de Saud/ Israel/ Pentágono. Como
conseguiram?
Na
dúvida, chame Bandar
Em
teoria, Washington tinha (relativo) controle tanto sobre a Fraternidade
Muçulmana como sobre o exército de Sisi. Assim, na superfície, é situação de
ganha-ganha. De fato, os falcões de Washington são pró-exército de Sisi,
enquanto os “imperialistas liberais” são pró-Fraternidade; é a cobertura
perfeita, porque a Fraternidade Muçulmana é islamista, local, populista,
economicamente neoliberal, quer trabalhar com o FMI e não ameaçou Israel.
A
Fraternidade Muçulmana não é exatamente um problema nem para Washington nem para
Telavive; e os hiper ambiciosos qataris ali estavam como leva-e-traz. A política
externa do Qatar, como todos sabem, resume-se a agir como torcida organizada dos
Irmãos, por todos os cantos.
Daí se conclui que Mursi deve ter
cruzado alguma linha vermelha muito séria. Pode ter sido a conclamação para que
os sunitas egípcios se unissem em jihad contra o governo de Bashar
al-Assad na Síria (embora, nisso, estivessem formalmente sintonizados com a
política de “Assad tem de sair” de Barack Obama). Pode ter sido talvez o
estímulo que Mursi deu à instalação de uma espécie de paraíso jihadista, do
Sinai até Gaza. O Sinai, para todas as finalidades práticas, é governado
por Israel. Tudo isso sugere que Pentágono e
Telavive podem ter dado luz verde para o golpe.
Hamad bin Khalifa al-Thani |
Telavive
vive em perfeita harmonia com o exército de Sisi e os apoiadores sauditas da
junta militar. A única coisa que conta, para Israel, é que o exército de Sisi
manterá os acordos de Camp David. A Fraternidade Muçulmana talvez tivesse outras
ideias para o futuro imediato.
Mas
para a Casa de Saud, essa jamais foi situação de ganha-ganha. A Fraternidade no
poder no Egito era anátema. Nesse facinoroso triângulo –Washington, Telavive e
Riad – ainda falta determinar quem é o mais ardiloso no departamento
rabo-que-sacode-o-cachorro.
E
onde entra a cena inacreditável do “Qatar que Desapareceu”. A ascensão e
(súbita) queda do Qatar, da ribalta da política externa, estão diretamente
conectadas ao atual vácuo de liderança no “arco de instabilidade” que o
Pentágono definiu. O Qatar era no máximo figurante em filme arrasa-quarteirão –
considerando os movimentos de iô-iô que o governo Obama e Rússia e China estão
jogando, em ritmo de espera.
Bandar bin Sultan ou Bandar Bush |
Sheikh
Hamad al-Thani, o emir que terminou por se autodepor, claramente se excedeu, não
só na Síria, mas também no Iraque; estava financiando aliados dos Irmãos, mas
também financiava jihadistas de linha
ultra dura por todo o deserto. Não há provas, porque ninguém fala, nem em Doha,
nem em Washington, mas tudo faz crer que o emir foi “convidado” a
autoderrubar-se do trono. E não por acaso, os “rebeldes” sírios passaram a ser
completamente comandados pela Casa de Saud, via Bandar Bush, também conhecido como príncipe Bandar
bin Sultan, espetacularmente ressuscitado.
Os
vencedores foram mais uma vez os sauditas – com o governo Obama estimando que
ambas, a Fraternidade Muçulmana e a nuvem al-Qaeda, já teriam, nessa altura,
caído no esquecimento na Síria. Isso ainda não está definido. É possível que
doravante o Egito passe a atrair muitos jihadistas saídos da Síria. De um modo
ou de outro, permanecerão no MENA (Middle East-Northern Africa/Oriente
Médio-Norte da África).
Martin Dempsey |
Sisi
parece ter sido esperto o bastante para se apropriar do tema “terror” e
difundir, preventivamente, a equação Fraternidade = al-Qaeda no Egito,
construindo assim o cenário para o banho de sangue que não é banho de sangue. O
resumo da história é que se pode conjecturar que o governo Obama, de fato,
terceirizou sua política para o Oriente Médio, entregando-a à Casa de Saud.
Escolha
o seu eixo
Apenas
dois dias antes do banho de sangue que não é banho de sangue, o Comandante do
Estado-Maior das Forças Conjuntas dos EUA [orig. Chairman of the Joint Chiefs
of Staff], general Martin Dempsey, estava em Israel confraternizando com o
general Benny Gantz e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e discutindo as
proverbiais “ameaças que podem emanar da região – globalmente e para a
pátria-mãe – e como continuar a trabalhar juntos para tornar nossos dois países
mais seguros”. É inconcebível que não tenham discutido o que ambos teriam a
extrair, como lucros, do (então) iminente banho de sangue que não é banho de
sangue.
Ao mesmo tempo, o Ministro da
Defesa de Israel, Moshe
Ya’alon, anunciava bombasticamente um novo “eixo
do mal”: Irã, Síria e Líbano. Reuniu Teerã, Damasco e,
significativamente, Beirute (tudo, não só os subúrbios do sul da cidade,
predominantemente xiitas). Ya’alon disse explicitamente a Dempsey que esse
pessoal “está proibido” de vencer a guerra civil na Síria.
Considerando que a própria CIA já
avalia a guerra civil na Síria como “alta ameaça” à segurança nacional dos EUA
no caso de grupos aliados e assemelhados à al-Qaeda virem a predominar num
eventual quadro pós-Assad; e que, simultaneamente, Washington reluta muito a
abandonar a posição de “liderar pela retaguarda”, pode-se conjecturar que Israel
planeje invadir outra vez o Líbano. Sempre alerta, Hassan
Nasrallah, Secretário-Geral do Hezbollah, já falou sobre a
possibilidade.
Hassan Nasrallah |
De
Israel, Dempsey foi à Jordânia – que sempre mantém por perto 1.000 soldados dos
EUA, F-16s e respectivas tripulações e um sortimento de mísseis Patriot. Dizem os boatos que o Pentágono
está ajudando Amã com “técnicas de controle de fronteiras”, uma das siglas
preferidas do Pentágono, ISR (“intelligence, surveillance and
reconnaissance”/inteligência, vigilância e reconhecimento).
São
boatos. Dempsey só passou por lá para supervisionar os progressos da
distribuição dos novos mísseis antitanques comprados – e quem poderia ser? –
pelos sauditas e fornecidos pela CIA, via Jordânia, a seletos “bons rebeldes” no
sul da Síria. Esses “rebeldes”, por falar deles, foram treinados por Forças
Especiais dos EUA dentro da Jordânia. Não há dúvidas de que Damasco preparará um
contragolpe a essa ofensiva do eixo EUA/Sauditas/Jordânia.
Escolha
seu mal
Robert Ford |
Já
praticamente não existe “credibilidade dos EUA” no Oriente Médio – exceto em
entidades fantoches como a Jordânia e entre seletas elites no Golfo feudal,
aquele reino “democrático” de corruptos, mercenários e proletários importados
tratados como gado.
Pouco
ajuda que o Secretário de Estado, John Kerry, tenha indicado Robert Ford,
ex-embaixador dos EUA na Síria, para o posto de embaixador dos EUA no Egito.
A
reputação precede o homem. A opinião bem informada em todo o Oriente Médio
imediatamente identifica Ford como sinistro facilitador de esquadrões da morte.
Seu currículo antes da Síria – onde legitimou os “rebeldes” – é insuperável: foi
braço direito do famigerado John Negroponte que promoveu a “Salvador Option” no
Iraque em 2004. “Salvador Option” é nome-código dos esquadrões da morte
patrocinados pelos EUA, tática que foi aplicada pela primeira vez em El Salvador
(por Negroponte) nos anos 1980s (e que fez, no mínimo, 75 mil mortos) mas cujas
origens profundas jazem na América Latina, do final dos anos 1960s e durante os
anos 1970s.
Abdel Fattah al-Sisi |
Sisi
segue jogando seu jogo, seguindo seu próprio plano master – insuflar a
narrativa mítica de que o exército egípcio defende a nação e suas instituições,
quando, de fato, só defende seus vastos privilégios socioeconômicos. Esqueçam
qualquer supervisão civil. E esqueçam também qualquer possibilidade de partido –
ou movimento – político independente no Egito.
Do
ponto de vista de Washington, tanto faz a Fraternidade Muçulmana, ou “estado
profundo”, e não faz diferença, sequer, uma guerra civil no Egito – árabes
matando árabes, dividir para governar ad infinitum: tudo estará sempre
tudo bem, desde que nada ameace Israel.
Com
Israel possivelmente já cerebrando outra invasão ao Líbano; com o “processo de
paz” de Kerry como desculpa para construir mais colônias na Palestina; com
Bandar Bush praticando suas artes
obscuras; com qualquer possível solução para o dossiê nuclear iraniano já
devidamente evitada; com o Egito em guerra civil; com a Síria e também o Iraque
sangrando sem parar, só resta, garantida, a proliferação de todos os tipos de
eixo e de todos os tipos de mal.
[*] Pepe
Escobar (1954) é jornalista
brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em
inglês. Mantém coluna (“The Roving Eye”) no Asia Times Online; é
também analista e correspondente das redes
Russia
Today, The Real News
Network
T
e
Al-Jazeera. Seus artigos
podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila
Vudu, no
blog
redecastorphoto.
Livros
-
Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007
-
Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007
-
Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009
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