Para uma definição de fascismo
6/8/2013, [*] Norman Pollack, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido no quiosque do Guegué na Vila
Vudu: Artigo impressionante, parágrafos
longuíssimos, raciocínio complexo, difícil, frases sinuosíssimas. O tradutor
apareceu aqui já com a mão na garrafa e palito no queijo e felicíssimo: “Foi a
coisa mais difícil que já traduzi. Entendi TUDO”. Estava emocionado e vibrava.
“LINDO! Queijo finíssimo, aqui, para todos, de grátis. É NÓIZ! VAMKEVAMO!”. Secou a garrafa e se empanturrou com o queijo...
Industrialismo |
Definições
são importantes, especialmente em tipologias estruturais e/ou sistêmicas, porque
a imprecisão leva ao descuido, a não ver a repressão, a não apoiar quem tenha de
ser apoiado, à falta da clareza necessária para alguma aguda e ativa consciência
política e para que se desenvolva alguma sensibilidade moral.
A
palavra “fascismo” foi amaldiçoada, a ponto de perder o peso, a pegada, o fio
cortante e tornar-se uma espécie de rótulo a ser pespegado a movimentos sociais
e políticos reacionários ou a atitudes individuais. Assim, os mais perigosos
agentes causais do fascismo – o capitalismo, o militarismo etc. – podem ser
deixados à sombra ou podem ser tratados como se não fossem o que são. E podem
ser negligenciados.
O
fascismo aparece sob várias formas; mas não é como roupa tamanho único, que
veste qualquer corpo, por tentadora que essa análise seja ou pareça ser. Nem há
uma linha histórica traçada na areia, para indicar que quem a ultrapasse, esse
sim, seria artigo genuíno. O que faço aqui não visa a traçar limites
desnecessários, mas, simplesmente, a alertar contra a construção de modelos
simplistas. Modelos, de fato, são puro desperdício de energia: a história é,
para nós, guia muito melhor.
Franco (E) - Mussolini (C) - Hitler (D) |
As
muitas faces do fascismo – na Itália de Mussolini, na Espanha de Franco, na
Alemanha de Hitler – são todas relevantes e talvez constituam uma fase histórica
sequencial unificada. Mas isso não nos basta, pelo menos para darmos conta das
forças históricas pós-1945, embora certamente iniciadas antes, que definem o
fascismo nos tempos modernos. O campo de concentração já não é indicador
garantido, nem quando as técnicas de vigilância e controle estão sendo
aprimoradas e aperfeiçoadas, e a manipulação das massas, sobretudo mediante o
consumismo e a propaganda política que vêm de todos os lados, já assumiu o lugar
dos campos de concentração e “amaciou” o corpo político induzindo a conformidade
e a complacência.
Hoje,
o fascismo fala com voz melíflua (exceto quando os grupos governantes são ou
sentem-se ameaçados) e jamais tira as luvas, para melhor conseguir arregimentar
o pensamento, o que antes se fazia quase exclusivamente pela força. A força é
externalizada, mandada adiante para manter as aspirações de hegemonia e, assim,
alistar as populações domésticas para manifestações de fervente apoio
patriótico, sem o qual a formação totalizante poderia estagnar, regredir ou,
até, efetivamente ruir.
O
fascismo assegura a sustentação da estrutura existente de riqueza e poder,
enquanto a economia política, ela própria, segue adiante – quer dizer: fascista,
hoje, é a conservação da Velha Ordem sob as condições do industrialismo moderno.
Thorstein Veblen |
A
Velha Ordem não precisa ter sido feudal (embora alguns autores, vez ou outra,
Ghent nos EUA, e mais perceptivo, embora obliquamente, Thorstein Veblen, em seu
livro Imperial Germany, tenham tomado o capitalismo monopolista como
feudalismo industrial, e, afinal, nem erraram muito). Mas, digo eu, o fascismo,
por definição fiel ao desenvolvimento histórico-estrutural, logo transformaria o
capitalismo em Velha Ordem eterna, que não seria jamais atacada ou desmantelada,
mas modernizada, de modo a tornar possível um sistema industrial avançado, ao
mesmo tempo em que tudo mais permanece congelado – anulando qualquer ímpeto de
democratização que se pudesse atribuir à tecnologia – e a estrutura de classe é
contida em equilíbrio para a mesma finalidade: impedir a mudança, enquanto a
estratificação reflete o poder dos de cima e a disciplina social, abaixo.
Fascismo
= industrialismo moderno dentro de um quadro societal hierárquico. Para garantir
que tal arranjo funcione, exigem-se pão e circo, por trás dos quais está o punho
cerrado, impessoalizado através de imensos orçamentos militares, o espírito
marcial promovido mediante o esporte, o etnocentrismo, a geração do medo, como
atualmente, a saturação do ambiente público mediante uma cultura política do
contraterrorismo e um sentimento de rejeição ao imigrante.
As
forças de produção (falo da mudança tecnológica via inovação, não como fórmula
mecanicista, mas levada historicamente adiante por gente real em sistemas
sociais reais) são inerentemente dinâmicas, mesmo quando a progressão não é
suave, mas pontuada de sobressaltos, e embora não sejam invariavelmente veículos
de democratização social, política, econômica, essas forças ultrapassam o quadro
institucional no qual estão inscritas.
Karl Marx |
A
propriedade, a proteção que o estado dá àquele status, o substrato ideológico,
se não formulado, então sancionado e transmitido por grupos governantes, tudo
isso desempenha papel vital para converter a força de seu impacto sobre as
instituições e a cultura e ampliar o consumo (o capitalismo, como Marx sabia,
prospera num estado de subconsumo e consequente privação dos trabalhadores, até
um estágio primordial de acumulação de capital baseado no crescente
empobrecimento dos mesmos trabalhadores), ao mesmo tempo em que enfraquece a
diferenciação de classes.
O
industrialismo, como puro constructo,
não é exatamente o inimigo do capitalismo, mas pode ser posto sob controle se
for vantajoso e, assim, reforça os marcadores convencionais do capitalismo, de
acumulação ilimitada de riqueza e ilimitada concentração de propriedade, para
uma classe trabalhadora disciplinada, não ameaçadora, cujos membros competem
entre si pelo trabalho que haja, com salários arrochados. Se não for controlado,
o industrialismo pode até levar a outra formação societal, sob administração
mais racional (do ponto de vista do bem-estar público); em outras palavras, a
transformação do capitalismo em socialismo, contra a qual se deve resistir a
todo custo, ou substituirá completamente o próprio capitalismo.
Nesse
contexto sobretudo, o fascismo salva o capitalismo contra o próprio capitalismo,
salva o capitalismo dele mesmo, elevando-o à condição de estabilização política
pela qual, confiando no Estado para que absorva sua negatividade (seja a
potencial militância do trabalho ou a exposição à ameaça externa de modelos
alternativos de desenvolvimento histórico-econômico), o capitalismo resulta
livre para seguir a lógica de seu próprio movimento interno.
Adam Smith |
Dito
talvez em formulação excessivamente simplificada, o fascismo é o estágio final
do capitalismo, exigindo crescimento industrial avançado para alcançar e
permanecer no novo degrau, mas sempre, nesse ponto, o industrialismo como tigre
desdentado, já submetido ao comando dos grupos governantes na sociedade.
O
fascismo também, no mundo da realidade comercial internacional, facilita a
ênfase na política econômica militarizada e na população domesticamente
arregimentada. O capitalismo já não pode assumir como garantidas as
consequências pacíficas do comércio per se, quando, depois da 2ª Guerra
Mundial, o sistema mundial, ele mesmo, foi-se tornando irreconhecível, de uma
perspectiva Smithiana, à luz da
descolonização, da escassez de matérias primas, fato-raiz da rivalidade
intracapitalista pela penetração comercial bem-sucedida nos mercados do mundo,
ao lado da igualmente significativa necessidade de resultados lucrativos de
investimentos, com o capital, em vez disso, engasgado. Por essas e outras
razões, vemos a militarização do capitalismo como representante de uma mudança
qualitativa na organização e na direção segundo as quais o poder torna-se um fim
nele mesmo; a ideologia converte-se, de prevenção da dissidência interna, numa
postura global de contrarrevolução (sem negligenciar a prevenção); e o fascismo,
como formação societal reativa totalizante, descobre-se multitarefa.
Para
preservar o capitalismo, é preciso neutralizar o industrialismo, garantir que
não interfira com os integumentos capitalistas da dominância de classe que
permitem ao sistema funcionar em benefício de, ou como determinado pelos, seus
grupos governantes. É preciso também pôr o capitalismo em marcha de guerra
permanente. Nem tanto em nome do keynesianismo militar (indústrias da
defesa demarcando a margem de diferença entre estagnação e recuperação, entre
desemprego perigoso e níveis aceitáveis de desemprego – sempre como determinado,
não por algum compromisso público com o pleno emprego, mas, sim, por economistas
servidores do capitalismo que veem vantagens num mercado de trabalho levemente
deprimido), mas em nome de manter o capitalismo solidamente plantado no elevador
da certeza hegemônica, acima e contra outros poderes dentro do capitalismo que
conseguiram rápido avanço industrial no último meio século e competem hoje pelos
mesmos mercados, pelas mesmas matérias primas e destinos de investimentos. Mais,
de fato, para testar a hegemonia contra economias políticas não capitalistas
(não consegui chamá-las de economias socialistas) que tomam a forma adventícia
de conflito ideológico – na Guerra Fria que agora se reinicia, se algum dia
chegou a acabar, contra a Rússia, contra a China, com vantagens mútuas para os
dois lados, que conseguem manter suas populações sob controle.
O
fascismo não brotou espontaneamente de uma garrafa mágica com, por exemplo, a
Itália de Mussolini nos anos 1920s. Já se observavam práticas fascistas desde
bem antes, como Barrington Moore observa em seu soberbo estudo “Totalitarian Elements in Pre-Industrial
Societies” [Elementos totalitários em sociedades pré-industriais] em seu
Political Power and Social Theory [Poder político e Teoria Social], mas
essas práticas iniciais, do “Medo Vermelho” [orig. Red Scares] à
bandidagem política, à alimentação ideológica forçada, fosse precoce ou mais
recente, em cenários não industriais, como Espanha e Portugal, ainda não
mostravam o que se veria no nível estrutural, primeiro na Itália, depois na
Alemanha: a organização mais rigorosa do sistema de negócios [orig. business
system], politicamente inspirada e executada através do governo, em
colaboração com “lideranças” das comunidades industrial e das finanças – uma
formação do Estado para melhor servir às necessidades dos negócios em suas
carências específicas, mas para assegurar tratamento mais básico do capitalismo
como consideração sistêmica, seus problemas, suas tensões sociais, meios de
autopropagação mediante linhas cada vez mais monopolistas, todos tendo já em
mente o contexto da política e da economia internacionais.
Esse é o nível no qual opera o
fascismo como constructo significante, não nos surtos de ódio de uma KKK ou de um Clube Kiwanis.
Isso
pode parecer óbvio, mas, na prática, nós subestimamos os focos do poder na
sociedade moderna, que atualmente chamo de interpenetração entre negócios e
governo, e procuramos, mais, os malucos, os quais, embora não sejam inócuos,
são, saibam eles disso ou não, as tropas de choque de um capitalismo avançado
que carece de um clima de medo para, ao mesmo tempo, processar suas guerras e
descarregar o excesso de produção sobre consumidores narcotizados.
Sob
o fascismo, na Itália e na Alemanha, a rigorosa organização dos negócios toma a
forma das chamadas “frentes”. De fato é uma organização totalitária da sociedade
em “frentes” de negócios e “frentes” de trabalho, o melhor arranjo para garantir
supervisão total, mas, mais praticamente, para garantir maior coesão; e assume o
formato de cartel e leva aos grupamentos monopolistas ou oligopolistas. E para
garantir aos oligopólios um meio para expressar cooperação com os negócios no
espírito de gratidão dos ‘de cima’ (processo também conhecido como vitimização,
num quadro de estratificação econômica e de classe).
Nos EUA houve marcado interesse
(além de investimento considerável) no que estava transpirando na Itália e na
Alemanha sob governos fascistas, especialmente porque
o business norte-americano passava por desenvolvimento paralelo – mas sem
a sanção oficial do governo – de supraorganização mediante associações
comerciais e até do que se pode chamar “peak associations”[1][aprox. “grupos de interesse”,
conceito próximo de “lobby” como se entende no Brasil atualmente (NTs)]
(incorporando as associações comerciais), também, como seus contrapartes
fascistas na Europa, interessado, o business norte-americano, em atender
a necessidade de estabilidade, de segurança e da presença do braço autoprotetor
do governo. Só faltava formalizar o relacionamento, para que ele correspondesse
exatamente ao fascismo. Mas em pensamento, se não em projeto, os EUA não estavam
muito longe dos países europeus.
O
corporativismo do business europeu encontra sua contraparte nos EUA dos
anos 1920s na propagação, pela Câmara de Comércio e a Associação Nacional da
Manufatura (ANM), da doutrina da commonwealth [lit. “riqueza comum”] do
business, onde business se tornara a política de defender só ele
mesmo, mais do que a nação que lhe dava segurança. Significava também muito
mais, a natureza orgânica da sociedade, à qual se aplicava ou, melhor dito,
impunha-se, a ordenação hierárquica de classes e, com a proteção do governo, uma
visão solipsista de privilégio.
Não
era a commonwealth [lit. “riqueza comum”] de Winstanley, mas a de Hoover.
Quanto
a isso, merece atenção o trabalho de Robert A. Brady, economista de Columbia, que listou lado a lado os
escritos oficiais das frentes nazistas, usando colunas paralelas, com as
declarações da ANM e da Câmara de Comércio dos EUA, exercício elucidativo para
demonstrar que as palavras não poucas vezes eram idênticas, para demarcar áreas
similares de preocupação ou de interesse, os temas ideológicos do poder, da
propriedade, da hierarquia, em seu livro The Spirit and Structure of German
Fascism [Espírito e estrutura do fascismo alemão]. Brady fez o mesmo em
outro de seus estudos, posterior, magnífico, obrigatório para nossos objetivos,
Business as a System of Power [Business como sistema de poder],
aliado, como o vejo, ao Behemoth de Franz Neumann, para demonstrar que o
business é embrionariamente fascista (talvez, suponho, pela necessidade
de tornar estática a relação trabalho-capital, incluindo a fixação dos salários
impostos a uma classe trabalhadora dócil, que tudo aceite, abaixo).
Especulo
eu que o capitalismo avançado, seu estágio do monopólio do capital, a continuada
expansão já não garantida, é, já não embrionariamente, mas integralmente,
fascista – a busca por estabilização, alcançada por meios políticos, ante a
sempre crescente, sempre potencial, senescência.
Fale-se
do business embrionariamente fascista, ou do capitalismo integralmente
fascista (porque as preocupações sistêmicas obtêm precedência sobre a empresa
individual), há nos dois casos uma predisposição estrutural e ideológica para o
fascismo, baseada na organização hierárquica, no ambiente político da
interpenetração business-governo, objetivo e direção econômica, tanto
quanto na tendência rumo ao monopolismo, e na introjeção psicológica do
princípio da liderança comum ao business e à sociedade, uma ordem unida
de comando e obediência que percorre e unifica o sistema de classes.
Pela
própria avaliação do capitalismo (i.e., sua estrutura de liderança, não um
processo impessoal ou determinista), o Estado desempenha papel crucial no
desenvolvimento do sistema, mesmo quando o Laissez-Faire e a Porta Aberta
são promovidos como mitos legitimantes. Essa dependência – na realidade, uma
dependência mútua, na qual uma base consolidada de capital monopolista traduz-se
em maiores, mais efetivas proezas militares e cria a necessidade de mostrá-la e
empregá-la – torna-se cada vez mais clara com o avanço posterior do capitalismo,
quando passa a ser necessário encontrar remédios contra a natureza volátil do
ciclo do business e para prevenir as severas consequências e subsequentes
disrupções já experimentadas antes na Grande Depressão, cuja negação alimenta o
ímpeto a favor do Poder Executivo e da liberdade (embora o oposto deva ser
verdade) do business acertado.
Nem
é preciso recorrer a Marx para reconhecer (a recente crise financeira é prova
suficiente) que o capitalismo é sistema inerentemente instável. É onde entra o
governo, as mais extremas medidas de recuperação necessárias para a estabilidade
e a retomada da extração de lucros, quanto mais a síntese combinada
inter-relacionada de business e governo aproxima-se do fascismo.
Protestos na França contra a austeridade e manutenção do bem estar social |
Hoje,
a moda é austeridade, mas, por mais que já esteja aí, a austeridade, como o
contraterrorismo, porque falar de uma é falar da outra, e significando bem mais,
revela, como de fato o contraterrorismo também revela (porque, num nível mais
profundo de análise, os dois trabalham em conjunto), o ímpeto na direção de
conservar a ordem estabelecida.
A
austeridade envolve o assalto político-fiscal contra a rede de seguridade
social; enquanto o contraterrorismo tem a dupla função de, sempre em nome do
combater o terrorismo, montar um assalto contra a dissidência social dentro de
casa e, implicitamente, alcançar metas contrarrevolucionárias no exterior, seja
contra forças radicais de oposição, seja contra a industrialização do Terceiro
Mundo.
Ao
ser executado o assalto, ele tem a ver com tudo, menos com terrorismo, como se
comprova na vigilância massiva e no efeito paralisante que tem sobre a oposição
ao governo.
Mas
dizer que o capitalismo é inerentemente instável não obriga ninguém a diluir
Marx. A noção de contradições inerentes sempre me intrigou; é estruturalmente
impessoal demais. Consistente com uma leitura histórica do materialismo
dialético, pode-se sugerir, em vez disso, que o que passa por “contradições” são
de fato esforços conscientes e decisões para maximizar lucros – comportamento
eminentemente racional, num sistema admitidamente irracional – e suas práticas
correlativas, como manter o poder de classe e buscar oportunidades para expansão
do mercado, não importam os obstáculos; que nem o fracasso do sistema seja
garantia de transformação social; que a dominação de classe permaneça intacta,
como a ideologia, e o ciclo recomece, usualmente, para posterior deslocamento e
degradação dos trabalhadores.
Se,
contudo o reinício não é conclusão inevitável, o que acontece quando o
capitalismo começa a atrofiar e as tensões sociais começam a subir, o fascismo,
aqui o poder e a autoridade do Estado, torna-se pensável; e, outra vez mediante
ação consciente, não por alguma forma de determinismo, torna-se também
alcançável. Mas alcançável, por causa de uma já bem avançada interpenetração, em
benefício do business, o Estado como seu escudo e protetor.
Passeata dos Bônus (Bonus Marchers) em Washington, DC - 1932 |
Não é
necessário um incêndio do Reichstag para fazer aparecer os soldados (os quais,
em qualquer caso, sim, foram protagonistas também da “Passeata dos Bônus” [orig.
Bonus Marchers [2]] nos EUA em 1932); a única
contradição em tudo isso são os próprios capitalistas, sobreviventes como uma
classe, que ignoraram os sinais de alarme contra sua própria conduta
autoindulgente e egoísta, o que, por sua vez, pôs em questão temporariamente
todo o sistema. (Para os não iniciados, pode-se lembrar que nenhuma dureza
extrema, ela só, nem fraturas estruturais, quaisquer que sejam, fazem uma
revolução; quem faz revolução é gente, e gente, diferente de autômatos, tem de
desejar as próprias ações, desejo que depende, por sua vez, do grau de clareza e
convicção da consciência política de cada um). Minha conclusão: as
“contradições” são, de fato, os pontos de ignição [orig. flash point] da
lucrabilidade no sistema; o governo não visa a removê-las, mas, em vez disso,
tem de assegurar que funcionem em benefício dos próprios capitalistas, e
garantir a boa ordem até que os grupos superiores tenham restaurado sua posição
(que, de fato, em nenhum caso deixaram completamente de manter, em termos
proporcionais).
O
capitalismo exige um estado-de-classe. Seu componente fascistizante entra em
operação por qualquer um de dois modos: quando o capitalismo requer os serviços
do estado, tenha a interpenetração avançado suficientemente ou não, ele sempre
se vê sob sítio, real ou imaginado, por forças hostis aos seus propósitos e
direção (o trabalho ou, com ou sem o culto da competição, empresas monopolistas
e oligopolistas ou setores que sintam as pressões da concorrência como ameaça
contra sua posição na economia), caso no qual o governo, em nome do personagem
corporativo responsável, impõe, em nome da concorrência, um quadro
anticoncorrencial. Pela outra via, a interpenetração governo-business já
solidificou ao grau no qual cada elemento, já unidos todos os elementos entre si
para todos os objetivos práticos, integra, mediante poder combinado, um contexto
societal que torna possíveis a agressão estrangeira e a pacificação interna: uma
militarização do capitalismo que é consoante com o estágio final de preservação
do sistema – não sujeito a interferência doméstica – pela força.
Teddy Roosevelt |
Em que ponto disso estão os EUA? A
interpenetração, que começou com Theodore Roosevelt (como Gabriel Kolko
demonstrou em seu seminal Triumph of Conservatism [Triunfo do
conservadorismo]), depois de assumir que o poder econômico – uma forte base
monopolista – traduz-se em poder militar, faz avançar o processo através de seu
Bureau of Corporations e da détente com a dinastia da Casa de
Morgan [3], ambos apontando para estrutura
econômica mais cerrada com o governo, buscando fazer pender as condições de
concorrência a favor das firmas maiores.
Nos
dois casos, de Morgan e dos banqueiros de investimentos que lideram o Bureau, a
détente é essencialmente negócio de cavalheiros, homens nos quais
Roosevelt confiava porque eram membros de sua classe e partilhavam com ele uma
idêntica visão de EUA poderosos construídos sobre fundações econômicas e riqueza
consolidada e um programa geopolítico para alcançar status de grande potência, com uma
Marinha de combate para penetrar no mercado global. (Quem veja Roosevelt como
gerador de confiança, particularmente depois de Kolko, há meio século, cede ao
pensamento desejante). Passo seguinte, Woodrow Wilson, com o sistema do Federal Reserve, a Federal Trade Commission e uma vigorosa
orientação para as exportações, leva a interpenetração além da fase mais
informal de Roosevelt, para a institucionalização da détente, a qual
nesse ponto se qualifica já como interpenetração mais plenamente realizada.
Woodrow Wilson |
Aqui
o liberalismo Wilsoniano, falo só de política doméstica, está tão distante do
laissez-faire quanto Roosevelt de gerar confiança. O que fez, com
respeito ao banking e ao crescimento das empresas, é como ligar uma
espécie de truque semântico: construiu o quadro regulatório para promover a
autorregulação – nos dois campos, no banking e no grande business.
A
autorregulação pode soar como liberalismo clássico de marca (Adam) Smithiana; na realidade, usa o governo
para legitimar a tomada privada de decisões, e mais, para implementar as
decisões contra aventureiros individuais [orig. mavericks] e competidores
criadores de dificuldades que se recusem a aceitar as regras fixadas pelos
gigantes de cada setor.
A
autorregulação apresentada sob a aura da regulação é a interpenetração em estado
de pura poesia. Considere-se a situação hoje – as agências regulatórias são
porta-vozes, de fato, dos sujeitos à regulação. Faça-se operar a “porta
giratória”, ou veja-se mesmo o pessoal que permanece no serviço público, mas é
comandado diretamente pelos interesses afetados, e ter-se-á a regulação pública
que des-serve ao bem-estar público.
Os
três governos anteriores ao New Deal
continuaram a tendência de modo mais contido, o que, para Harding e Coolidge,
significou que a atividade de associação comercial se não suplantou, pelo menos
atuou como forças independentes na expansão e estabilização do capitalismo. E
Hoover, embora caricaturado então e depois, representou, sim, uma projeção em
linha mais ou menos reta a partir de Wilson – não fascistizante, mas mantendo
vivos elementos da organização dos negócios que, dadas as condições do pós-IIª
Guerra Mundial, constituíram um parceiro reforçado na marcha da interpenetração
business-estado.
Franklin Roosevelt |
Franklin
Roosevelt e o New Deal, como se
poderia esperar, representam um complexo puxa-empurra entre o governo e o
business, regulação genuína e autorregulação, tudo no contexto de
garantir os direitos do trabalho, de separar os bancos comerciais e os bancos de
investimento, de criar um vasto programa de serviços públicos. Em suma, no
contexto de viabilizar, mediante o Governo de Recuperação Nacional [orig.
National Recovery Administration], um dos mais poderosos estímulos à
monopolização; e, mediante as empresas públicas [orig. code authorities],
em organização, não completamente diferentes das “frentes” de comerciais
nazistas, equilibradas contudo pela libertação de forças sociais e temas
ideológicos, no mínimo encorajar a dignidade do desempregado e assegurar
empregos, de colarinho branco e braçais, e a tal ponto que, apesar da
sobrevivência do capitalismo – que naquele momento corria risco real – e da luz
verde à concentração, não se consegue ver a interpenetração
business-estado, naquele momento, como prelúdio do fascismo. O fascismo
viria depois.
Pode-se
dizer que, mesmo que tenha havido uma configuração de forças sociais que
historicamente explica o equilíbrio que FDR conseguiu alcançar, o capitalismo,
embora inquestionavelmente ascendente entre os diferentes elementos da
sociedade, não “progrediu” a nível mais alto, e com ele, a ênfase no apoio
militar ao capitalismo como sistema mundial ou, olhando para dentro, para a
penetração do mercado dos EUA e sua liderança na finança internacional e nas
organizações de comércio. Esse ainda era sistema desigual, mas não se pode dizer
que fosse sistema fascista, o qual, se fosse, teria usado a polarização de
classes para cobrar deferência da classe trabalhadora e subscrição aos objetivos
da expansão internacional. FDR permanece como figura histórica que aponta para
um capitalismo administrado que os EUA jamais alcançaram, talvez porque o
capitalismo viria, com o tempo, em todos os locais onde exista, a libertar-se
das algemas que o interesse público e os direitos do trabalho tentariam
impor-lhe. Dentro do capitalismo, FDR combateu o bom combate. E todo o seu
trabalho foi reduzido a nada, apenas poucos anos depois de ele morrer.
Apesar
das correntes protofascistas, como os que favoreceriam a exterminação de
radicais, anarquistas, até de estrangeiros em geral, no período em torno da Iª
Guerra Mundial, sinto, porque vivi aquele tempo, que o que se seguiu ao pós-1945
representa uma mudança qualitativa na psique norte-americana, causa e
consequência, inicialmente, da Guerra Fria.
Mas,
realmente, todos os venenos, o racismo, o antirradicalismo, as atitudes e
políticas antitrabalhistas, etc., começaram então a ferver, do fundo para a
superfície – algo que nem o New Deal
nem a IIª Guerra Mundial teriam podido erradicar (e provavelmente exacerbaram,
em todos os já dispostos a odiar), criando assim uma paisagem
estrutural-psicológica irredutível, que pôde ser explorada pelo capitalismo nos
EUA, se não foi ele quem, possivelmente, manufaturou as suspeitas e medos contra
o governo, contra o socialismo, contra o Estado de Bem-Estar, obrando como se a
subversão interna brotasse de todos os lugares, forçando respostas preventivas
que foram construídas e visavam a erradicar qualquer dissensão, que passaria a
ser definida como não patriótica. Mesmo assim, o McCarthyismo não passou de fascismo em
embrião, embora, com a execução do casal Rosenberg, já estivéssemos
desgraçadamente próximos do fascismo.
Ethel e Julius Rosenberg executados como espiões em 19/6/1953 em Sing Sing |
Mais
significativos, para quem estude ou analise a direção que a sociedade
norte-americana tomava, foram o crescimento simultâneo da desigualdade de renda,
a consolidação do business, a proeminência, dentro da estrutura
econômica, de mega-instituições financeiras, acompanhados, passo a passo, por
uma política externa de anticomunismo, que não apenas deu passe livre ao
business (acompanhando pelo arrocho, até o apagamento, dos direitos
trabalhistas), mas deu à intervenção uma respeitabilidade jamais vista até
então.
Joseph McCarthy |
Pior
que McCarthy, considere-se a Baía dos Porcos de Kennedy, que abriu o caminho
para o Vietnã, que, se já não fosse, abriu o caminho para que a CIA aparecesse
como braço legítimo de violência e mais e mais... Um currículo de mentiras,
dissimulações, invasão, armamentismo galopante,
estado-de-Agência-Nacional-de-Segurança em construção, até o que temos hoje.
Vigilância, secretismo, assassinatos premeditados & listas de matar, prisão
por prazo indefinido sem acusação formalizada, a doutrina dos segredos de
estado, a lista não tem fim, de políticas e práticas de inclinação fascista,
aberta, clandestina, nacional, internacional, sempre de braços dados com uma
economia política dependente do sempre presente contexto da segurança interna
(contra a classe trabalhadora, que perdeu sua identidade, diluída na ficção de
uma Classe Média que tudo engole) e da racionalização sem limites de seu
ambiente de operação global.
Isso
é fascismo? Que o leitor, a leitora, decida, desde que ele ou ela não se limite
a olhar só para os Tea Partiers, o canal Fox News, a intransigência dos
Republicanos e, em vez disso, busque os vícios sistêmicos, cujos casos são
secundários na estrutura do poder, a integração dos militares no próprio sistema
de governo das elites político-empresariais.
Observem-se
Obama, os Democratas, os atuais centristas e progressistas, pois aí jaz o
próprio corporativismo mais sofisticado, capaz de inventar uma política
internacional de confrontação com a China e uma política doméstica que
acrescenta, à militarização do capitalismo, também sua financeirização, como,
talvez, uma Nova Autarquia, de autossuficiência nacional, em momento em que o
resto do mundo já desconfia muito da liderança norte-americana.
Masao Maruyama |
Em
termos de análise, qualquer definição de fascismo deve começar a separar-se da
Alemanha Nazista como arquétipo, e dirigir os olhos para a fase do
desenvolvimento capitalista nos EUA no último século: dinamismo das forças
produtivas (embora isso já esteja decaindo), estrutura capitalista interna sem
qualquer limite ou controle – crescimento industrial encastelado na Velha Ordem.
Essa era exatamente a situação do Japão do pós-guerra, onde a interpenetração
business-estado avançou tanto, que indicou as próprias características
estruturais da hierarquia e estratificação de classe, a Velha Ordem, como ponto
de partida para a indústria e o banking monopolistas.
Só
faltou o militarismo e os gastos exorbitantes com Defesa – e se os EUA indicam
alguma coisa, também isso pode mudar lá, conforme o capitalismo avançado
continue a andar.
Barrington Moore |
Lembro aqui a expressão do respeitado
cientista político japonês Masao Maruyama, ao descrever a versão japonesa da
interpenetração business-estado (que também o perturbou, ao pensar nas
implicações futuras). Maruyama chamou o relacionamento entre business e
governo de “sistema do abraço apertado”.
Acompanhando
o que diz Barrington Moore, em sua brilhante história comparativa dos principais
modos político-econômicos de desenvolvimento, falando especificamente do Japão
(que Moore chamou de “fascismo asiático”), anoto aqui uma expressão de seu
Social Origins of Dictatorship and Democracy [Origens sociais da ditadura
e da democracia] que captura muito bem a definição de fascismo que estou
procurando. Para Moore, fascismo é “modernização de cima para baixo”.
Notas
dos tradutores
[2] Bonus
Marchers: Soldados norte-americanos veteranos da Iª Guerra Mundial e
suas famílias que, em situação econômica desesperadora em 1932, organizaram uma
marcha e uma “acampada”, em Washington, DC.
[3]
House of
Morgan
designa uma dinastia de banqueiros britânicos, depois norte-americanos, estudada
em livro-reportagem que recebeu esse título.
[*] Norman
Pollack é o autor de
“The
Populist Response to Industrial America” (Harvard) e
“The
Just Polity” (Illinois), Guggenheim Fellow e professor emérito de
história na Michigan State University.
Seu novo livro, Eichmann on the
Potomac, será publicado por CounterPunch/AK Press, no outono de
2013.
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