22/2/2014, Conflicts Forum’s
Traduzido pelo
pessoal da Vila Vudu
Mapa político do Oriente Médio |
Já é
visível que muitos “Mercados Emergentes” (ME) estão sofrendo com uma retirada
do dinheiro de curto prazo que esteve “estacionado” lá como efeito de uma
expansão monetária sem precedentes buscada principalmente por EUA, Japão e
China. Agora, (depois do “afunilamento” [orig. taper] pelo Fed dos EUA)
o “dinheiro quente” está sendo trazido de volta para casa – e por toda parte as
moedas dos ME estão caindo. Mas a queda no valor das respectivas moedas foi
particularmente evidente na Turquia (10% em relação ao dólar norte-americano,
ao longo do último ano), que gerou uma reação do tipo “choque e pavor” pelo
Banco Central Turco, com aumento de juros, de 7,75% para 12,5% — aumento
possivelmente suficiente para “furar” o balão do “milagre” turco e, de fato, o “modelo
turco” (da Fraternidade Muçulmana).
O Banco
Central Turco tem boas razões para apertar o botão de alarme. A Turquia ficou
altamente dependente desse “dinheiro quente” externo para cobrir seu crescente
déficit atual, que já chega a $60,8 bilhões, cerca de 7% do PIB (no período
jan.-nov. 2013). Perder esse portfólio de curto prazo não é só debilitante: é
potencialmente fatal, seja economicamente seja para o destino político de
Erdogan.
Como
observou um comentarista
econômico:
David P. Goldman |
(...) a Turquia não pode financiar sua gigantesca
carência de dinheiro emprestado, sem oferecer taxas de juros tão altas que
farão explodir a bolha de construção-e-consumo que serviu como máscara para um
suposto milagre econômico turco nos últimos anos (...). Parece pouco provável que o já atrasado
aumento nos juros, pelo Banco Central, venha a impedir desvalorização ainda
maior da lira. Com inflação de 7,4% e aumentando, a taxa de juros de
referência, do BC, de 10%, oferece apenas um pequeno prêmio acima da taxa de
inflação. Cerca de 2/5 da dívida interna da Turquia é denominada em moeda
estrangeira, e a queda da lira manifesta-se em custos mais altos para o serviço
dessa dívida.
A Turquia, ao que parece, ficará com o pior
dos dois mundos, a saber, taxas de juros locais mais altas – e moeda fraca...
Em vários sentidos, a bolha de Erdogan faz lembrar as experiências da Argentina
em 2000 e do México em 1994, quando crescente dívida externa alimentou bolhas
de vida curta, de prosperidade, seguidas de desvalorizações da moeda e quedas
profundas. Argentina e México compraram popularidade oferecendo crédito barato
aos consumidores, como fez Erdogan nos meses anteriores à eleição nacional de
junho de 2011.
Mas a bolha
de construção-e-consumo não é a única que pode furar; a crise turca também
ameaça uma “narrativa” inteira e uma identidade. As ramificações políticas são
profundas para os islamistas sunitas, como a Fraternidade Muçulmana.
A
Fraternidade Muçulmana levou a sério o modelo Erdogan. Para eles, Erdogan
parecia oferecer via certa e segura até o poder: oferecer progresso
socioeconômico; adotar princípios islamistas genéricos e ambíguos; apresentar
um islamismo não assertivo; mas, sobretudo, abraçar uma doutrina econômica
(neo)liberal. A Fraternidade concluiu que, adotando aquelas políticas neoliberais,
estariam de algum modo “vacinados” contra a desconfiança instintiva, no
ocidente, contra governos islamistas – em outras palavras: se fossem
economicamente neoliberais, o ocidente relevaria o islamismo deles, desde que
se mantivesse como islamismo pouco assertivo, morno.
Recep Erdogan |
Agora,
Erdogan corre o risco de se ver desacreditado tanto por: (a) sua política externa domesticamente muito criticada, e que
trouxe um jihadismo takfiri diretamente para dentro da própria
Turquia, como porque (b) há agora o
perigo extra de seu milagre econômico islamista ser exposto como nada além de
quimera. A Fraternidade Muçulmana, duramente ferida no Egito, vê-se agora ante
o risco de perder suas fundações intelectuais – e a própria identidade. Ainda
mais grave, dado que – desde o tempo de Banna – o islamismo sunita
deliberadamente se separou dos discursos históricos do Islã. E sempre que
comunidades veem-se diante de crises existenciais, o mais frequente é que se
voltem para as próprias raízes mais profundas, onde se podem renovar.
Hoje, a
Turquia está usando todas as ferramentas de que dispõe para estabilizar a lira,
mesmo sabendo que o movimento dificilmente terá impacto duradouro. Isso, porque
os problemas financeiros da Turquia foram gravemente exacerbados por uma luta
pelo poder que tem raízes profundas e que só se intensificará até as eleições
locais em março; presidenciais, em agosto; e parlamentares em 2015.
Desde o
início de 2012, Conflicts Fórum já alertava que o que estava sendo chamado de “Despertar
Árabe” estava sendo mal interpretado na imprensa-empresa ocidental, como se
fosse levante popular espontâneo; exigência de reformas – o que em grande parte
refletiria a influência de valores ocidentais.
Argumentamos
então que a ira popular dita “antissistema” naquele momento não incluía
qualquer “grande ideia” que lhe desse rumo, e que estava sendo dominada e
controlada por alguns “projetos de poder” que os eventos também haviam
despertado.
Fraternidade Muçulmana |
Um daqueles
projetos de poder era o da
Fraternidade Muçulmana; o outro era o da contrarrevolução dos estados do Golfo,
determinados a esmagar qualquer movimento que ameaçasse os monarcas e as
famílias reinantes no Golfo.
Outra vez,
como Goldman destaca:
(...) agora, [quando o milagre de Erdogan já está
sob risco], poucos analistas perguntam como a Turquia teria conseguido
sustentar o atual déficit interno, que oscilou entre 8% e 10% do PIB durante os
últimos três anos, situação tão ruim quando o déficit grego nos anos que
antecederam o colapso financeiro em 2011. A resposta mais provável é que a Turquia
tenha recebido vastos empréstimos, cedidos a ela por bancos sauditas e de
outros estados do Golfo (...).
Dados do Banco Internacional de Compensações (BIS)
mostram que a Turquia financiou grande
parte de seu enorme déficit através do mercado interbancário, quer dizer, com
empréstimos de curto prazo de outros bancos aos bancos turcos. Não se veem
sinais, nos bancos ocidentais, de tão grande exposição à Turquia; os bancos do
Golfo não divulgam a exposição regional, mas há evidências de que a
solidariedade sunita tem algo a ver com a disposição original dos estados do
Golfo, para comprar a dívida turca. As relações entre a Turquia e os estados do
Golfo estão hoje em ruínas. Se os estados do Golfo perderam a paciência ou se
ficaram sem recursos para apoiar o surto de endividamento de Erdogan; ou,
ainda, se o “mau comportamento” da Turquia os levou a decidir retirar o apoio,
é difícil dizer. Todos esses fatores, provavelmente, estiveram em ação. Em
todos os casos, o rancor de Erdogan contra a Arábia Saudita empurrou-o para
mais perto de Teerã”. Isso – parafraseando Donald Rumsfeld – pode contar como um
“não sabido não sabido” (...) há
desenvolvimentos potenciais que não sabemos que não sabemos.
Mas, haja
aí um movimento deliberado ou o resultado de alguma mudança nas percepções dos
banqueiros (e políticos) do Golfo, nos dois casos, o que se vê deve ser contado
como mais uma aparente vitória dos contrarrevolucionários – que aí está, seja
como for.
TiBerlusconi |
Com certeza
os estados do Golfo têm os meios – e já têm diante dos olhos o exemplo do
primeiro-ministro Berlusconi, tirado do governo exatamente por uma escalada
(manipulada) dos custos do financiamento da dívida externa. Na Líbia, o
dinheiro do Golfo ajudou a financiar os rebeldes e garantiu treinamento para os
“insurgentes” que derrubaram Gaddafi; na Síria e no Líbano, dezenas de bilhões
foram gastos no esforço para consumar uma vingança contra o presidente Assad,
por se ter aliado ao Irã; no Egito, os estados do Golfo financiaram grande
parte dos movimentos de protesto contra Mursi e promoveram diretamente o golpe
de Estado que derrubou Mursi; e na Turquia também, o “dinheiro” do Golfo parece
ter desempenhado seu papel na derrubada do próprio modelo – o ícone, o “sucesso”
do [partido] AKP – pelo qual a Fraternidade se autodefinia.
A
contrarrevolução pode também exibir o escalpo
do Hamás, cujas garras foram
cortadas – cortesia da junta militar que o movimento ajudou a pôr no poder no
Cairo.
Em 2012,
estimava-se que os estados do Golfo tivessem
superávit na conta corrente de mais de $400 bilhões (mais que o dobro da China,
no mesmo ano). Enquanto os superávits do Golfo alcançavam esses níveis
recordes, o resto do mundo árabe só via os respectivos equilíbrios
orçamentários sumirem. E, além da riqueza do estado e o nível de riqueza dos
bancos, empresas e indivíduos e famílias reunidos no Conselho de Cooperação do
Golfo (CCG), ao que se calcula, já teria chegado a $3 trilhões (sem incluir os
fundos soberanos). Essa acumulação de dinheiro “grande” gerou a visão de mundo
de uma elite cosmopolita do Golfo, furiosamente privilegiada (e arrogante),
imensamente rica – além de neoliberal e reacionária – que a fez usar sua riqueza
como ferramenta básica para conter e fazer recuar os movimentos populares, além
de intervir na política regional, para manter esse lucrativo status quo.
Essa
riqueza gigantesca, já agora profundamente integrada no sistema financeiro
global, “vacinou” em larga medida as ações dos estados do Golfo contra qualquer
crítica séria pelo ocidente, por suas intervenções militares ou pela repressão
contra qualquer oposição. Antes, como se vê, aconteceu o contrário: os think-tanks
ocidentais já não têm como elogiar mais os emires pela “capacidade para
sobreviver” e por seus “gastos sociais”.
No máximo,
houve algum muito tímido
comentário sobre os sauditas recorrerem a jihadistas
para usá-los como “braço militar” dos estados do Golfo. Mas jamais se ouve
qualquer crítica que denuncie a contradição entre essa ação e o proclamado
desejo do Golfo de promover a democracia e “reformas” do “sistema árabe” – que
foram os aspectos que levaram o ocidente a identificar-se com os manifestantes.
Tudo isso
considerado, os estados do Golfo parecem ter alcançado uma vitória muito clara.
E podem também festejar o modo como europeus – principalmente França e
Grã-Bretanha – tão firme e rapidamente se identificaram com seus objetivos.
Mas, mesmo
com tamanho sucesso visível, persiste uma vulnerabilidade, um medo, uma
neurose, sempre localizável no discurso do Golfo. Há até um toque de paranoia
no modo como os sauditas creem na própria propaganda: sempre vendo um xiita
escondido atrás de cada árvore. Os estados do Golfo, isso sim, gastaram milhões
para silenciar o desconforto doméstico; mas muitos relatos (além
de vários artigos
distribuídos por
nosso Conflicts Fórum) sugerem que, apesar da imensa riqueza, os
“Gulfies” “não estão felizes”, para citar The
Economist. A liderança do reino está à deriva; “eles têm largura de
banda muito estreita” – avalia um diplomata de outro país. “Mal dá para
governarem o próprio país, não uma ambiciosa agenda regional”.
Vizinhos e
aliados da Arábia Saudita também estão mais desconfiados, a cada dia. Diz The
Economist:
Estão preocupados, e não só com as tensões
domésticas. A política externa dos sauditas, nos anos recentes, tornou-se
simultaneamente mais errática e mais assertiva.
O sheikh Salem Abdulaziz al-Sabah repete há quase uma
década:
− O Kuwait está gastando muito dinheiro...
|
Seus
aliados no Golfo temem que a Casa de Saud esteja perdendo o férreo controle na
esfera religiosa, que foi atiçada para atender às ambições regionais dos sauditas
– particularmente na Síria.
Os estados
do Golfo contribuíram para a queda de Gaddafi, de Mursi, da Fraternidade
Muçulmana, do Hamás e agora, possivelmente, também para a queda de Erdogan; mas
suas políticas coletivas, se bem analisadas, fizeram avançar
os próprios objetivos, segundo um porta-voz:
(...) dentro do novo ambiente, como Riad o vê, as
políticas da Arábia Saudita continuam a ser movidas pelas prerrogativas da
estabilidade regional.
De fato,
muito longe de trazerem estabilidade à região, as políticas sauditas só
trouxeram terríveis insegurança e tumultos e abriram a caixa de Pandora de uma
radicalização do extremismo sunita que impõe hoje perigos muito maiores que no
início do conflito afegão, nos anos 1980s. Assim como a cumplicidade de
Erdogan com jihadistas na Síria foi tiro pela culatra que atingiu a Turquia, assim também a cumplicidade entre o Golfo e radicais começa a repercutir de volta, para dentro das sociedades no Golfo.
Na verdade,
compartimentar a incitação ao radicalismo – como os sauditas dizem que estariam
fazendo – é empreitada irrealizável. É absolutamente impossível empurrar jovens
para pensar e agir com radicalismo na Síria... e mantê-los dóceis e obedientes
em casa.
O governo mantém o povo calado, com dinheiro;
nos raros casos em que não funcionou, usaram ameaças – The
Economist cita um diplomata em Riad.
Arábia Saudita e Bahrain incentivam seus jovens a lutar... na Síria! |
De fato,
tanto o Bahrain como a Arábia Saudita tiveram de impor leis
draconianas para calar críticas contra o governante;
essas leis vieram mascaradas sob a rubrica de “combate ao terrorismo”. Os
estados do Golfo, apesar de todo o gasto doméstico, não conseguiram criar
instituições nacionais (tudo gira em torno da “família” governante e dos
conselheiros mais íntimos). E todos, agora, enfrentam profundos problemas
sociais, que o dinheiro só conseguiu mitigar parcialmente.
Apesar dos
gastos crescentes do governo, muitos kuaitianos dizem que sua qualidade
de vida está deteriorando. “As
pessoas estão ficando furiosas” – diz um jovem ativista da oposição. – “Como
você pode me pedir que gaste menos, quando o governo joga dinheiro fora?” Os
maiores protestos são contra a qualidade dos serviços. Os kuaitianos recebem
moradia do governo ou um empréstimo para comprar a casa, depois do casamento.
Mas a lista de espera tem hoje 106.747 kuaitianos à espera, muitos dos quais
esperarão durante décadas. A carência de moradias tornou proibitivo o custo de
uma casa comprada com recursos privados. Quase metade da população do Kuwait
tem menos de 20 anos e viverá com os pais até bem depois de entrados na idade
adulta. Muitos kuaitianos agarram-se aos benefícios que realmente funcionam. A
gasolina, por exemplo, é mais barata que a água. Os preços da eletricidade não
sobem desde 1966 – assim, membros do governo, alguns dos quais reconhecem que
devem reduzir os gastos, resistem a quaisquer cortes.
Raghu Mandagolathur |
Gastos generosos em programas ao longo dos
últimos anos têm sido referidos como a razão pela qual o país teria passado
relativamente incólume pela “primavera árabe”. O governo teme fazer mudanças
que sejam impopulares – diz Raghu Mandagolathur, do Kuwait
Financial Centre, um banco de investimentos..
Fato que
não se pode deixar de ver, contudo, é que os estados do Golfo fracassaram em todos
os objetivos de política externa que criaram para eles mesmos, há seis anos. A
Arábia Saudita e seus aliados e procuradores fracassaram ao não conseguir
reverter o “renascimento” do Irã, como o chamou o Professor Hossein Mousavian;
fracassaram ao não conseguir destruir o Hezbollah, nem a Síria, nem Malaki no
Iraque, nem, em geral, a “frente da Resistência” (exceto o Hamás). Os estados
do Golfo já não têm a influência que tiveram no Líbano ou no Iêmen; a Líbia
está reduzida ao caos total, e o Egito já avança pelos primeiros estágios,
também, rumo ao caos.
O que os
sauditas têm hoje pela frente é a realidade de que a primazia regional deles (e
do CCG) está, muito provavelmente, acabada. Um novo equilíbrio está emergindo –
com o Irã no polo oposto – mas, em vez de ter construído algum modus vivendi
com essa nova realidade, os sauditas se posicionaram profundamente contra ela –
e contra, também três nações historicamente poderosas, que têm economias,
exércitos e recursos (tanto materiais como em termos de população) para efetiva
ação política: o Irã, o Iraque e a Turquia.
A principal
realização dos sauditas em todo esse período foi manter o Ocidente tão
intimamente alinhado ao lado dos estados sunitas e seus interesses. Mas a
avaliação que se vai disseminando, de o quanto esse grupamento de monarquias
depende de jihadistas como “nosso exército”, já está pondo também essa “realização”
sob
forte estresse.
[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião
ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e
compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas
por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e
interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas
anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as
pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se
escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de
“extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos,
movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais
políticos no mundo.
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