16/2/2014, [*] Mahdi Darius Nazemroaya, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Francisco Flores, ex presidente de El Salvador (corrupto atualmente refugiado nos EUA) |
O escândalo
de corrupção em El Salvador, que envolveu Francisco Flores, presidente do país
de 1999 a
2004, abriu caminho para o reconhecimento da República Popular da China pelo
governo que sucedeu Flores em San Salvador, que a Frente de Libertação Nacional
Farabundo Marti (FLNFM) não conseguiu consumar durante o mandato
do presidente Mauricio Funes. O
escândalo que envolveu Flores criou a oportunidade política adequada para que a
FLNFM venha a romper formalmente os laços diplomáticos com Taiwan (conhecida
formalmente como República da China), se, em março de 2014, for eleito o
candidato da FLNFM. [1]
Essa
questão diplomática expõe também a coordenação, por trás das cortinas, que está
em andamento entre Pequim e Taipei. Vê-se aí um quadro de cordialidade, que
mais provavelmente levará à unificação entre Taiwan e a China, que um quadro de
rivalidades. Nem Pequim nem Taipei têm criado obstáculos, os dois lados
reconhecendo que, afinal, haverá
uma só China.
Francisco
Flores e a oligarquia salvadorenha
Francisco
Flores foi presidente de El Salvador quando a Aliança Republicana Nacionalista,
conhecida pela sigla ARENA, governava o país. É homem da corrupta oligarquia
salvadorenha aliada dos EUA, que reduziu El Salvador ao status de
colônia de facto dos EUA que recebia ordens de Washington, DC. Exemplo
desse relacionamento, foi durante o mandato do presidente Flores que El
Salvador enviou centenas de soldados para participarem, com EUA e Reino Unido,
da invasão e ocupação do Iraque.
A
oligarquia salvadorenha sempre operou, em todos os campos, como elite “comprador”,
o que significa que serviam como representantes ou gerentes locais de empresas,
governos e interesses externos ao país. Nesse caso, a oligarquia salvadorenha “comprador”
serviu coletivamente às elites dos EUA as quais, elas próprias, são elites
parasitárias, porque sempre extraíram grande parte da riqueza e dos recursos
locais dos países aos quais conseguiram impor sua influência. Historicamente,
essas elites infiltraram-se nas estruturas e hierarquias do poder em toda a
América Latina, ao mesmo tempo em que iam sendo erodidas as elites parasitárias
locais originais, que sempre estiveram no topo da hierarquia econômica em todo
o hemisfério ocidental. Vários países latino-americanos chegaram a ter um
ministro ou funcionário do governo dos EUA que supervisionava o governo local e
seus negócios diários.
Colón, antiga moeda de El Salvador |
Durante o
governo de Flores e da ARENA, El Salvador perdeu a soberania monetária. O
colón, moeda nacional de El Salvador, foi extinta por ordem de Flores; e
substituíram o colón pelo dólar norte-americano, que passou a ser a moeda
oficial de El Salvador. Assim El Salvador passou a integrar o grupo de vários
territórios – EUA, Timor Leste, Panamá e Equador – onde a moeda oficial é o
dólar norte-americano.
Também
durante o governo da ARENA estabeleceram-se por lei, em El Salvador, inúmeros
monopólios comerciais privados. Passou a ser crime – e, de fato, praticamente
impossível – comprar medicamentos em El Salvador, exceto os que eram vendidos
por Alfredo Cristiani, o oligarca, membro também da ARENA e presidente de El
Salvador antes de Armando Calderón Sol.
Alfredo Cristiani |
Cristiani
não apenas iniciou a reestruturação econômica neoliberal de El Salvador, como
também usou o monopólio que tinha para a venda e distribuição de medicamentos
em todo o país para impor preços exorbitantes e, até, vender medicamentos com
prazo vencido de validade, sem qualquer punição. O mesmo aconteceu com
fertilizantes e outros produtos agrícolas, todos incluídos no mesmo monopólio
que pertencia a Cristiani. O governo da ARENA não queria saber de concorrência.
Além disso, Cristiani privatizou o sistema bancário de El Salvador, entregando
à própria família a Banco Cuscatlan, que a família logo depois vendeu ao
Citibank, interessado em expandir sua influência pela América Central.
Embora
ainda haja corrupção em El Salvador, a base criminosa dos governos anteriores,
todos da ARENA, já tem sido amplamente reconhecida até em investigações e
inquéritos presididos pela própria polícia. Arquivos da inteligência da polícia
comprovam que todos os presidentes, ministros da Justiça e diretores de órgãos
de polícia em El Salvador sempre mantiveram ligações com o crime organizado;
que isso só começou a mudar depois que o primeiro governo da FLNFM chegou ao
governo em San Salvador. Além disso, Alfredo Cristiani, muito amigo do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, já foi denunciado como “pai”
do crime organizado em El Salvador.
Os autores
da “Opção Salvador”
Antes de a
ARENA ser oficialmente constituída, os mesmos oligarcas usaram o exército e a
polícia para gerar uma guerra viciosa, com alto envolvimento do governo dos EUA
e do Pentágono, contra a população nativa de El Salvador, indígenas,
camponeses, pobres, sindicatos, intelectuais, a Igreja Católica Romana e
qualquer grupo que falasse de democracia e direitos iguais para todos. A
repressão brutal e a consequente guerra civil em El Salvador foi parte dos
esforços da oligarquia salvadorenha para manter o controle sobre a sociedade local.
Roberto D’Aubuisson |
Foi sob o
comando desses oligarcas que a infame Opção Salvador cresceu, gerada por
esquadrões da morte alinhados com os norte-americanos, que exterminariam vilas
inteiras, com requintes de crueldade, e dos modos mais grotescos. Usaram-se
furadores de gelo para furar olhos e deformar faces, arrancavam-se pernas e
braços. O assassinado do arcebispo Oscar Romero, líder da Igreja Católica
Romana em San Salvador e que foi assassinado quando rezava missa, é apenas um
dos assassinatos daquele período. O cabeça do assassinato de Romero, major Roberto
D’Aubuisson, seria, adiante, um dos fundadores da ARENA.
Mas o
assassinato do arcebispo Romero, porém, foi uma das muitas atrocidades que
aqueles oligarcas cometeram, com pleno conhecimento, apoio, ajuda e envolvimento
de Washington. Os comandantes militares
salvadorenhos eram treinados na infame “Escola das Américas” e pelo Pentágono,
e muitas das técnicas de tortura e assassinato que os esquadrões da morte
usaram em El Salvador foram ensinadas por instrutores militares
norte-americanos. Mais que isso: incontáveis combatentes guerrilheiros
salvadorenhos lembram-se de ter combatido contra soldados norte-americanos e de
ouvir ordens de ataque, transmitidas por rádio, para bombardear a selva e
vilarejos no interior de El Salvador, ditas tanto em inglês quanto em espanhol.
Quase toda
a população indígena nativa de El Salvador seria exterminada por aqueles
oligarcas. Famílias inteiras assassinadas e suas terras e casas saqueadas ou
destruídas. Nem crianças nem animais domésticos foram poupados. Estupro e
violação de sepulturas foram práticas sistemáticas e frequentes.
Um dos
piores massacres foi cometido dia 11/12/1981. Aconteceu na vila de El Mozote,
no Departamento de Morazan. 800 civis desarmados, inclusive crianças, foram
torturados, humilhados, estuprados e assassinados por uma unidade de operações
treinada nos EUA.
Restos do massacre de El Mozote realizado por MILICANALHAS salvadorenhos sob comando dos EUA |
Washington
enviaria gente como James Steele e John Negroponte para o Iraque ocupado por
ingleses e norte-americanos, para recriar lá o reinado de terror que os EUA
ajudaram a criar em El Salvador. Exatamente os mesmos padrões e táticas de
assassinato em massa e tortura seriam verificados no Iraque ocupado, o que
indica fortemente que os EUA seriam a fonte dos esquadrões da morte ativos
tanto em El Salvador como no Iraque ocupado.
Subornado
por Taiwan?
Durante as
investigações que a Assembleia Nacional e a Assembleia Legislativa de El
Salvador conduziam no país, sobre a corrupção passada, foram encontrados 10
milhões de dólares norte-americanos, depositados na conta bancária de Francisco
Flores. Interrogado sobre a origem de tanto dinheiro, Flores respondeu que
recebera aquela quantia do governo de Taiwan; e disse que, de fato, recebera de
Taiwan mais que aqueles 10 milhões. Foi depois que Flores tentara fugir – ou
tentara fazer crer que fugira – de El Salvador (o que Flores fez depois de ser
intimado a comparecer outra vez ante a Assembleia Nacional, às vésperas do
primeiro turno das eleições presidenciais de 2014 em El Salvador, realizadas
dia 2/2/2014).
Os fundos
que Francisco Flores recebeu eram, de fato, parte de uma série de pagamentos
secretos feitos anualmente por Taiwan. Taiwan sempre manteve laços estreitos
com El Salvador e a América Central. Além de posicionar-se próximo dos estados
da América Latina cujos governos eram patrocinados pelos EUA, o governo de
Taiwan também se uniu aos EUA e a Israel para dar apoio aos oligarcas em El
Salvador, contra a FLNFM, durante a Guerra Civil Salvadorenha.
Os
pagamentos secretos feitos por Taiwan a Flores foram combinados originalmente
para impedir que El Salvador reconhecesse o governo de Pequim como legítimo
governo da China. Mas, embora os pagamentos, que originalmente eram “anti-Pequim”
(uma espécie de “prêmio” dado por Taiwan por El Salvador reconhecer Taiwan, em
vez de reconhecer o governo em Pequim) tenham sido mantidos, tudo sugere que
passaram a acontecer em contexto que se ia transformando, com sentimentos
anti-Pequim cada dia menos dominantes. Taiwan manteve os pagamentos para
assegurar tratamento preferencial aos seus interesses comerciais e para obter
concessões em El Salvador – inclusive um monopólio sobre o setor geotérmico
salvadorenho, que é propriedade, completamente, de Taiwan.
Vale a pena
observar que o governo de El Salvador e Taipei trocaram informações sobre o
escândalo da corrupção nos dois países. Isso se deveu, em parte, ao fato de que
Chen Shui-bian era o presidente, quando seu governo enviou dinheiro a Flores.
Shui-bian e a esposa estão já presos em Taiwan, condenados por crimes de
corrupção; e provavelmente há ainda um inquérito em andamento em Taipei
examinando o papel de Shui-bian e seus associados em todo o processo.
A China,
estrela em ascensão
A República
Popular da China é ator cada vez mais importante na América Latina. Um dos
importantes projetos que envolve a China na região é a construção de um mega
canal que ligará o Oceano Atlântico ao Pacífico, como um segundo Canal do
Panamá.
As 6 alternativas de rota para construção, pela China, do Canal da Nicarágua |
Esse
segundo Canal do Panamá terá base na Nicarágua, e será chamado de “Grande Canal
da Nicarágua”. O governo da Nicarágua já assinou um acordo, em 2012, com uma
empresa recém-criada, com sede em Hong Kong – Nicaragua
Canal Development Investiment Co.Ltd., controlada por um magnata chinês das
comunicações, para atrair investimentos internacionais para construir o canal.
O projeto deve ser iniciado em meses. [2]
Quando a
Frente de Libertação Nacional Farabundo Marti (FLMN) conseguiu eleger Mauricio
Funes à presidência, conseguiu dele também que imediatamente estabelecesse
relações diplomáticas com Cuba, já no dia da posse, 1/6/2009. Antes, o governo
da ARENA sempre se recusara a ter qualquer contato com Havana e colaborava com
os EUA em seu bloqueio a Cuba, para opor-se a Venezuela e aos aliados da
Venezuela na região. A FLMN também estabeleceu relações diplomáticas com o
Vietnã, o Camboja e a Rússia. Mas Funes, por inúmeros fatores, não reatou
relações com a República Popular da China.
El Salvador
não reconheceu Pequim, por oposição pessoal do próprio presidente Funes – o
mesmo que, agora, está deixando a presidência de El Salvador.
Mauricio
Funes, ex-empregado da rede CNN e conhecido apresentador de televisão foi
apenas apoiado pela FLMFN. Funes não é membro, nem jamais foi da FLNFM, como
muitos, fora de El Salvador supõem. Nos termos do acordo firmado entre Funes e
a FLNFM, as pastas do gabinete do governo salvadorenho foram divididas entre a
FLNFM e indivíduos “não-FLNFM” (chamados popularmente de “Amigos de Funes”),
indicados pelo presidente. Sob esse acordo de divisão do poder, Funes
controlaria questões estratégicas, a economia nacional e o secretariado para
reformas políticas; e a FLNFM se encarregaria dos ministérios responsáveis pelo
atendimento à saúde, à educação e a segurança. [3]
Nesse contexto, Funes conseguiu impedir o reconhecimento da República Popular
da China e manteve em marcha lenta as reformas políticas e econômicas que a
FLNFM desejava.
Mauricio Funes (presidente de El Salvador de 2009 a 2014) |
Quando,
afinal, o governo de El Salvador fez algum primeiro movimento oficial em
direção a Pequim, o governo chinês manifestou frieza quanto à ideia de
estabelecer laços diplomáticos. Isso, muito provavelmente, por causa da demora
daquele primeiro contato, que o governo chinês pode ter interpretado como
insulto à dignidade do governo de Pequim.
Embora a
FLNFM, como partido político, tenha laços diretos com a República Popular da
China através dos órgãos de política internacional da própria FLNFM, e tenha
sido várias vezes convidada a visitar Pequim, não há dúvidas de que, chegada à
presidência com candidato seu, a FLNFM cuidará de estabelecer laços
diplomáticos formais com Pequim. É o que se espera que aconteça, se a FLNFM
vencer o segundo turno das eleições presidenciais, que acontecerão em março de
2014. Nesse contexto, um segundo mandato presidencial da FLNFM, dessa vez com candidato
à presidência, será a oportunidade para que a FLMN e o governo de El Salvador
corrijam o erro e reconheçam Pequim.
O governo
de El Salvador e a FLNFM deixaram claro para Taiwan que El Salvador, sim,
planeja reconhecer Pequim como legítimo governo da China. Interessante observar
que não houve qualquer oposição de Taiwan, a essa decisão. Nem o fim de laços
diplomáticos entre San Salvador e Taipei põem fim aos laços comerciais com El
Salvador. De fato, vê-se que há algum tipo de coordenação silenciosa entre
Taiwan e a República Popular da China, no que tenha a ver com esse movimento,
que se inscreve no contexto da unificação chinesa.
Notas dos tradutores
[1]
O primeiro turno das eleições aconteceram em 2/2/2014; o segundo turno está
marcado para 19/3/2014. Sobre os candidatos e a respectiva posição eleitoral,
ver 2/2/2014, Agência Brasil, em: “OEA
observa eleições presidenciais em El Salvador”
[2] Pode-se ler também sobre o Canal
da Nicarágua, o porto de Mariel em Cuba e o Brasil em português.
[3] A FLNFM ocupou a vice-presidência, com Sánchez Cerén, atual candidato da
FLNFM à presidência.
_______________________
[*] Mahdi Darius Nazemroaya é cientista social, escritor premiado, colunista e pesquisador. Suas obras são
reconhecidas internacionalmente em uma ampla série de publicações e foram
traduzidas para mais de vinte idiomas, incluindo alemão, árabe, italiano,
russo, turco, espanhol, português, chinês, coreano, polonês, armênio, persa,
holandês e romeno. Seu trabalho em ciências geopolíticas e estudos estratégicos
tem sido usado por várias instituições acadêmicas e de defesa de teses em universidades
e escolas preparatórias de oficiais militares. É convidado freqüente em redes
internacionais de notícias como analista de geopolítica e especialista em
Oriente Médio.
Atualmente, em viagem pela América Central, está com a
Frente Sandinista de Libertação Nacional, em sua base em León, na Nicarágua.
Esteve como observador internacional em El Salvador, no primeiro turno das
eleições em El Salvador, onde esteve em contato com funcionários do governo
salvadorenho.
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