Perigos da estratégia sem coerência
30/7/2014, [*] Conflicts Forum,
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Porque os EUA pagam o apoio de neonazistas na Ucrânia? |
Há hoje
crescimento real do risco estratégico. Se se consideram a guerra civil na
Ucrânia; possíveis ramificações da recente derrubada do avião civil malaio; ou
a decisão dos EUA de “punir” Putin por não ter obrigado militantes no Donbass a
renderem-se a Poroshenko; ou, ainda, se se consideram o fenômeno do crescimento
do Estado Islâmico do Iraque e Levante [ing. ISIL] e o desmembramento de-facto
do Iraque; ou se se considera o modo como são conduzidas as negociações do Irã,
estruturadas em torno da mais total superficialidade da noção de “breakout
capacity” [1] como régua-padrão; ou se se consideram os US$ 500 milhões
extras que Washington gastará para armar “moderadamente” insurgentes
“moderados” na Síria; ou se se vê a ofensiva militar de Israel contra os
palestinos — pode-se ver que qualquer dessas crises, sozinha, já tem capacidade
explosiva para mudar a face da política do Oriente Médio (e global).
Todas essas crises
se interpenetram. E geram risco sistêmico. E todas essas crises parecem também
ter em comum o fato de que expõem uma disfuncionalidade na política dos EUA,
que parece impedir tentativas mais sérias para construir compreensão
estratégica desses eventos e de seus riscos inter-relacionados. A questão é:
por que esse risco sistêmico aparece acompanhado de tal torpor, tão disseminado
em todo o sistema, de fato um torpor sistêmico?
De início, o
rápido avanço do ISIL dentro do coração do território sunita do Iraque
(como nos informam colegas em Washington) despertou debate animado em
Washington sobre o potencial de uma cooperação com o Irã – para enfrentar o
impacto potencialmente devastador daquele grupo na estabilidade da região. Surgiram
até algumas esperanças (sobretudo entre funcionários da Casa Branca e do
Departamento de Estado) de que aquela cooperação poderia vir a facilitar as
negociações entre o Irã e o P5+1 sobre as atividades nucleares do Irã. (Essas
expectativas iniciais levaram a incluir o vice-secretário de Estado William
Burns na delegação norte-americana para as conversações nucleares do P5+1 com o
Irã, quando foram reiniciadas em Viena dia 16 de junho – não só para reforçar a
capacidade de negociação da questão nuclear, mas, também, para dar aos
iranianos um interlocutor norte-americano qualificado, com o qual pudessem começar
a falar sobre o Iraque).
Mas a
receptividade de Washington, que se disporia a algum tipo de possível
coordenação com Teerã sobre o Iraque, teve vida curta.
Presença do ISIL na Síria e no Iraque |
O consenso
que afinal emergiu desse debate nos círculos políticos nos EUA foi que as
“vitórias” do ISIL seriam essencialmente mais função do estilo sectário
de governar de Maliki, que qualquer coisa mais substantiva (i.e. não passariam
de mais uma modalidade de revolta de sunitas). Essa conclusão, por sua
vez, fez aumentar o apoio dentro do governo Obama a favor de os EUA fazerem o
que fosse preciso fazer no Iraque – “coordenadamente” ou não com o Irã – desde
que Maliki saísse de lá. Nesse pano de fundo, os principais atores no governo
Obama nunca conseguiram chegar a qualquer acordo sobre se, e como, seria
possível organizar-se com o Irã, para a questão do Iraque.
Apesar de a
Casa Branca e o Departamento de Estado terem estado abertos, de início, à
possibilidade de coordenar ações com Teerã –, do outro lado do debate dentro do
governo o Departamento de Defesa opunha-se firmemente a qualquer coordenação
com o Irã sobre o Iraque, em vasta medida porque entendia que tal coordenação
faria aumentar a já substancial influência do Irã no Iraque. Essa
preocupação aumentou com pressões que vinham dos lobbies pró-Israel e
pró-sauditas in Washington. Esses lobbies entendiam que
admitir que o governo Obama se interessasse por ‘associar-se’ com Teerã no caso
do Iraque “enfraqueceria”, em todos os casos, a postura dos EUA nas negociações
nucleares do P5+1 com o Irã.
Além disso, a
abordagem de Teerã, para lidar com a situação no Iraque era – desde o início –
muito diferente da posição de Washington: o Irã não queria ver a crise
tratada simplesmente como ‘entrada’ para minar o primeiro-ministro iraquiano
Nouri al-Maliki (que acabava de obter a maioria de assentos com votos em
eleições para o parlamento). Os líderes iranianos alertaram que, para obter um
efeito benéfico, qualquer resposta que os EUA dessem à crise no Iraque deveria,
sobretudo, reforçar a capacidade do governo do Iraque para combater militantes jihadistas.
Hassan Rouhani(E) e Javad Zarif, líderes do Irã |
Mais
especificamente, o presidente Rouhani disse que Washington teria de rever a sua
própria [de Washington] contribuição a favor do extremismo jihadi na
região – por exemplo, o apoio dos EUA aos jihadistas sírios armados – e
confrontar a Arábia Saudita e outros aliados regionais na questão do apoio que
têm dado a jihadistas takfiri.
O Irã prefere
fortemente (e ainda espera) conseguir evitar envolvimento militar aberto no
Iraque, e vê a intervenção militar dos EUA – ataques aéreos, e, ainda mais,
qualquer intervenção de soldados em campo – como inerentemente
contraproducentes. Consequentemente, Teerã não tinha interesse algum em
cooperar militarmente com Washington no que tenha a ver com o Iraque, mas
gostaria de tratar conjuntamente das questões estratégicas.
Assim, no
final, mostrou-se politicamente mais fácil para o governo simplesmente
afastar-se do interesse inicial da Casa Branca e do Departamento de Estado na
exploração de possibilidades para alguma cooperação quanto ao Iraque.
Sobretudo, cresceu e tornou-se dominante uma resistência profundamente
enraizada em Washington, contra acomodarem-se interesses regionais iranianos –
o que limitou ainda mais o já estreito espaço político para explorar
possibilidades para cooperar com Teerã (como nossos colegas nos EUA
confirmaram).
Em resumo, o
governo dos EUA – ante ameaça mais grave, pelo extremismo radical sunita, que a
que emergiu nos anos 1980s da guerra afegã – está despreocupadamente satisfeito
com deixar que “eles que deem conta dos problemas
deles”.
Talvez ainda
mais pertinente aqui, é que essa avaliação (de que o jihadismo radical
seria culpa exclusivamente de Assad e de Maliki) serve para distrair a atenção
e afastar qualquer ideia de que a responsabilidade pela emergência do ISIL
caiba aos EUA, que aceitam tacitamente que a Arábia Saudita use forças desse
tipo (incluindo o ISIL) para promover a própria agenda sectária e os
objetivos geopolíticos dos sauditas. Também pressupõe um grau de confiança no
que diz o Golfo (que o Golfo “dará conta” do ISIL – tão logo o
específico papel do ISIL tenha sido cumprido – o que é, quase com
certeza total, pensamento fantástico-delirante).
O ponto aqui
é que nas águas encapeladas da política de Washington – e com fortes correntes
enviesadas – era simplesmente “mais fácil” não pensar atentamente sobre o
significado de riscos estratégicos associados com essa nova eclosão do
islamismo sunita radical (30 anos depois da primeira eclosão, que nos rendeu
décadas de “Guerra ao Terror”).
Soldado de Israel aponta arma para perigoso terrorista palestino |
Na Palestina, vê-se coisa
bastante semelhante: Israel usou o pretexto de que estaria procurando por três
jovens colonos sequestrados e “supostos vivos” (embora o governo israelense já
soubesse que haviam sido mortos e que os assassinos não eram do Hamás), para degradar institucionalmente o
Hamás na Cisjordânia, assim como em Gaza – com o primeiro-ministro Netanyahu
dizendo (em hebraico):
Acho que o povo israelense entende agora o que
sempre digo: que não pode haver situação, não importa sob qual acordo, na qual
rebaixemos o controle de segurança do território da margem ocidental do rio
Jordão.
Ou, em outras
palavras: “nada de solução dois-estados”; e sim: a ocupação será eterna.
Netanyahu
usou os assassinatos para nutrir o ódio popular contra o Hamás, que o
primeiro-ministro repetiu várias vezes que seria responsável pelo assassinato,
mas não é; e Netanyahu sabia disso). Paixões inversas e complementares foram
também incendiadas entre os palestinos, na sequência do assassinato de um
palestino de 16 anos que foi queimado vivo. O objetivo de Netanyahu nessa farsa
política foi usar a crise, primeiro, para degradar o Hamás na Cisjordânia; e,
segundo, para tentar reimpor o status quo ante em Gaza (a
volta da Autoridade Palestina ao governo de Gaza).
O
acordo de cessar-fogo de dezembro de 2012, negociado
com o Hamás – e que Israel diz que o Hamás teria rompido agora com fogo de
foguetes de retaliação – de fato teria permitido algum alívio no cerco e sítio
montados contra o povo de Gaza – mas Israel
jamais implantou os “alívios” que foram acordados.
Netanyahu
quer agora reimpor o sítio ‘sem os alívios’ (quer dizer, fazer retornar a
situação ao status quo de antes) sob o disfarce de um novo
acordo de cessar-fogo; e o Hamás quer desfazer, de vez, um acordo que
jamais houve.
Na Ucrânia - Hmmm... Crimes de Guerra! Em Gaza - Hmmm... Auto-Defesa! |
O Hamás
planeja fazer isso usando
a tática que o Hezbollah usou no Líbano na guerra de
2006: o comando do Hezbollah instalou-se em subterrâneos profundos; com isso,
os ataques iniciais de bombardeamento intenso praticamente não atingiram as
forças militares da resistência; e os combatentes do Hezbullah continuaram a
bombardear Israel com foguetes. O objetivo dos foguetes jamais foi impor
derrota militar a Israel; os foguetes visaram a obrigar Israel a pôr
“coturnos no solo” no sul do Líbano (país ideal para guerrilhas), onde os
israelenses conheceram graves padecimentos. De fato, a única resposta aos
foguetes, cujos operadores podem “atirar e sumir” do local em menos de 60
segundos – muito antes de o exército de Israel localizar o ponto de fogo – só
pode ser “coturnos em solo”.
Richard Silverstein |
Ainda não se
sabe se as táticas do Hamás funcionarão (Gaza é terreno plano e desértico –
diferente do sul do Líbano – o que põe o Hamás em clara desvantagem). Mas não
há dúvidas de que o braço
militar do Hamás, que está hoje mandando, não quer saber de cessar-fogo nesse
momento, especialmente “um cessar-fogo fraudulento”. “Minha fonte israelense” –
escreve
o comentarista Richard Silverstein – “que foi consultada como parte das
negociações, disse-me que não se trata, de fato, de proposta do Egito. Foi
proposta de Israel, disfarçada como se viesse do Egito. Quem redigiu o
protocolo do cessar-fogo foi Israel. Um lado preparou o cessar-fogo, apresentou
a proposta, de fato, a si mesmo; e aceitou a proposta. O outro lado não foi
sequer consultado”. Tony Blair, enviado do Quarteto, também facilitou o
“cessar-fogo”.
O Hamás quer
forçar Netanyahu a confronto em solo (e parece ter sido bem-sucedido na
empreitada). E Netanyahu e o presidente Sisi querem usar qualquer acordo de
“cessar-fogo” para devolver Gaza à situação de antes – e encenar a substituição
do Hamás como fonte de governança e autoridade, pela Autoridade Palestina (em
outras palavras, Israel está tentando fazer um “golpe soft”, em Gaza, como em 2007).
Mas o ponto
focal disso tudo é precisamente que não há ponto focal algum, nada, de
nenhum tipo.
Oficiais da
segurança israelense dizem abertamente que “aparar
a grama” (expressão que significa “matar gazenses
em grandes números, para deter a agressão – até a próxima rodada do conflito”)
não leva a coisa alguma. É ação estritamente tática e de curto prazo e Israel
nada ganha em termos estratégicos. Israel só consegue continuar a “aparar a
grama”.
Martin Indyk |
A questão
palestina (embora tenha saído do centro da atenção regional nos anos recentes),
ainda assim continua a ser questão nevrálgica e icônica para muitos muçulmanos.
Ainda é o fulcro em torno do qual diferenças regionais podem ser enterradas. É
questão que pode ter e tem capacidade para desestabilizar políticas (líderes
árabes ainda temem noticiário nos horários nobres, de eventos de guerra em
Gaza) – embora não tanto quanto há algumas décadas. É absolutamente claro que a
situação em Gaza está criticamente instável e que não pode continuar
indefinidamente no ponto em que está; o projeto dos Dois Estados morreu há
alguns anos (Martin
Indyk confirmou recentemente o falecimento), e europeus e norte-americanos parecem paralisados na
capacidade para decidir: simplesmente acham mais fácil – dadas as turbulentas
correntes políticas que se cruzam – deixar “rolar” os eventos, na esperança de
que as coisas “deem conta delas mesmas”.
Talvez a
única área para a qual há uma política norte-americana clara seja a Ucrânia,
onde o elemento neoconservador que há dentro do governo dos EUA conseguiu
convencer os europeus a implantar sanções mais duras contra a Rússia (embora
Washington nunca explique a eles – como alguns políticos europeus já começam a
reclamar em voz alta – por que as sanções seriam tão necessárias; ou por que
fariam algum sentido estratégico, quer dizer: que sentido estratégico haveria
em sanções que, possivelmente, causarão dano maior aos negócios da União
Europeia, que aos negócios da Rússia?).
Mas a verdade
é que os efeitos desse específico ativismo não foram menos disfuncionais que
nos casos em que o governo dos EUA optou pela passividade (ou sucumbiu à paralisia
interna).
Angela Merkel e Barack Obama |
Os esforços
do governo Obama para minar os esforços de Angela Merkel para trabalhar com
Putin na direção de uma solução diplomática para a Ucrânia (os EUA “exigiram”
que Poroshenko agisse ainda mais, em termos militares!); a queda-de-braço/chantagem
sobre as sanções; e a pouca atenção que os EUA deram às preocupações alemãs com
a espionagem norte-americana puseram, sim, uma aliança com a Alemanha, que é
aliança chave para os EUA, sob grave risco real. E forçaram um racha também na
União Europeia: com Alemanha, Áustria, Bulgária, Chipre, França, Grécia,
Itália, Luxemburgo e Eslovênia a favor de reconciliação com a Rússia, outro
“campo” que acompanha a linha alemã. E um pequeno bloco de opositores da Rússia
(a Polônia e os três estados do Báltico em particular), que adotam a linha
norte-americana.
Aqui também
encontramos um paradoxo: o meme
prevalente no ocidente reza que enquanto as sanções diplomáticas ocidentais
contra a Rússia foram tratadas com pouco caso, a única coisa que agredirá severamente
a economia russa é os EUA aplicarem sansão unilateral de embargo de mercado de
capitais (que foi imposta a alguns negócios russos): empresas russas têm de
pagar dívidas de $115 bilhões ao longo dos próximos 12 meses, e nenhum eurobond [2] russo lançado foi bem-sucedido desde a Crimeia. Mas, como Bloomberg noticia, a expectativa de que
grandes empresas russas serão “incapacitadas” pode não passar de fantasia:
Empresas
russas, que terão de pagar dívidas de US$ 115 bilhões nos próximos 12 meses,
terão os fundos necessários, ainda que os mercados de títulos fechem por causa
da crise ucraniana, segundo Moody’s Investors Service and Fitch Ratings.
Empresas terão cerca de US$ 100 bilhões em dinheiro e valores à disposição
delas durante os próximos 18 meses, disse Moody’s, em análise de 47 empresas.
Quase todas as 55 empresas examinadas por Fitch estão “bem posicionadas” para
resistir contra mercado fechado para refinanciamento até o final de 2014, disse
Moody’s em nota de 16 de abril de 2014. Os
bancos têm mais de US$ 20 bilhões em moeda estrangeira para emprestar, se as
tensões levarem os consumidores a converter as poupanças que hoje estão rublos –
disse o ZAO Raiffeisenbank.
“A quantidade
de dinheiro que se vê nos balanços de empresas russas, linhas de crédito de
bancos e fluxos de caixas que terão é suficiente para que as empresas atendam
confortavelmente aos seus compromissos” – disse por telefone, de Moscou, um
analista da Moody’s.
Cuidado com minhas sanções! |
Difícil não
concluir que a escalada dos EUA contra a Rússia (contra Putin pessoalmente) tem
mais a ver com táticas da política doméstica – e falta de interesse ou desejo
de compreender os riscos estratégicos inerentes se se deixar que a incoerência
domine todo um vasto quadro de situações voláteis. Só para ser claro: não se
trata de sugerir que os EUA ou a Europa devam atuar mais. Não devem
atuar mais. Mas, se supõem que seja “mais fácil” deixar que ‘os eventos que
deem conta deles mesmos”, sem que ninguém tenha de dedicar-se a compreender
melhor os eventos, então que ninguém estranhe se os eventos os
ultrapassarem e surpreenderem. O que falta é compreensão, entendimento mais
profundo, do que se passa.
Essa omissão
define a qualidade do risco geopolítico que hoje enfrentamos.
E por que as
coisas chegaram a esse ponto?
Por que
tantas questões tão altamente perigosas – o repetido reaquecimento do islamismo
sunita radical; a guerra por procuração na Ucrânia; os conflitos na Síria e no
Iraque e a aproximação do fim das negociações sobre o Irã; e a repressão
violenta em Gaza – estão sendo, elas todas, abordadas por uma mesma estratégia
sem coerência alguma? Não é que os altos funcionários ‘não entendam’. Muitos
deles entendem perfeitamente: mesmo assim parecem fechados numa redoma
intelectual e política, que os torna incapazes de tomar decisões ou de se
contrapor a velhos e gastos refrãos políticos.
Já escrevemos
sobre o “vazio” que se abriu na política
ocidental, surgido do desengajamento
e do desencantamento do “povo” de/com os partidos políticos – e como,
concomitantemente, políticos centristas, dos anos 1980s em diante, foram
deliberadamente se autoretirando da política (desdenhando até, de fato, dos
seus próprios partidos) – e posicionando-se como se de algum modo levitassem
“acima da ideologia”, “acima da ética”; e que exultam por ter, sabe-se lá como,
‘despolitizado’ a tomada de decisões políticas, tornando-se mais tecnocráticos
e confiando cada dia mais no aconselhamento de ‘técnicos especializados’ como
banqueiros, grandes empresários e tecnocratas, que tenham “expertise”, do que
no aconselhamento do próprio gabinete ou do próprio partido. Esse é o processo
que permite que Tony Blair, por exemplo, diga que, de fato, jamais fez
política.
Claudio Gallo |
Consequência
disso foi um vácuo na política. Os eleitores brincaram com a evidência de que
não lhes restara poder algum, até que o próprio poder-zero afetou-os
pessoalmente; com o advento da ‘austeridade’, a tolerância popular diminuiu. As
pessoas sentem que estão pagando o preço mais alto pelos fracassos dos sistemas
financeiros. Para
Claudio Gallo, a raiz dessa deriva está na despolitização, na
emergência do neoliberalismo que brotou de raízes do liberalismo europeu – embora o segundo, como ele enfatiza,
permaneça diferente do primeiro. (Mas a análise de Gallo não considera a
influência do trotskyismo no
neoliberalismo, particularmente nos EUA). Outros documentaram muito bem o modo
como o zeitgeist [al. no orig., “o espírito do tempo”] neoliberal foi
adotado por “partidos de centro” europeus, como o Labour Party, os quais, simplesmente e
pragmaticamente concluíram que a ideologia de Wall Street ou da City de Londres não poderia ser
contraditada – e que, para que o partido fosse politicamente bem-sucedido (quer
dizer: os candidatos recebessem votos), o neoliberalismo financeiro tinha de
ser assimilado.
Esse foi o
coração da ‘revolução” do New Labour
[neotrabalhismo britânico]. Gallo argumenta que o liberalismo, desde a origem,
tendeu a se apresentar como “acima da moral”. Observa que, mesmo antes de
publicar A Riqueza das Nações (publicado em 1776), Adam Smith já se
dedicava a estudar os sentimentos morais; e que a ação econômica em Adam Smith
é “atropelar a moralidade sem chamar (sic) a atenção”.
O
neoliberalismo, como o neotrabalhismo e os Democratas de Clinton
apresentaram-se eles próprios sob a ideologia da neutralidade: a ideologia do
fim da ideologia. Não um sistema político dentre outros, historicamente e
socialmente determinado, mas um fato natural imemorial. O mercado
autorregulador torna-se ideologicamente uma espécie de categoria universal
eternamente presente na história humana desde o início.
A questão
aqui é que na sociedade neoliberal, não há ninguém que realmente administre o
poder político. A economia se autorregula (mediante indivíduos que maximizam o
próprio interesse material; todos esses interesses materiais individuais, no
agregado, cresceriam juntos e maximizariam o bem-estar da sociedade como um
todo). Os neoliberais sempre buscam deixar que essas forças invisíveis do
mercado trabalhem sem impedimento, para que possam emitir “o veredicto do
mercado”.
O que estamos
vendo é que os mesmos princípios “tecnocráticos” estão sendo aplicados à
política exterior. Na política exterior, as dinâmicas do poder são hoje vistas
como capazes de gerar o seu próprio “veredicto do mercado” – com os jogos do
poder deixados entregues às próprias dinâmicas (e eles “que deem conta deles mesmos”).
O “mercado”
internacional do poder, por extensão, deve ser deixado agir ou atuar também o
mais desimpedidamente possível. Os governos são organizados por técnicos
racionais que simplesmente permitem que o mercado funcione efetivamente e
adaptam-se ao veredicto do mercado. Assim, afinal, os políticos podem dizer que
vivem “acima da ideologia” e acima de qualquer ética. Evidentemente, trata-se
de uma máscara ideológica, uma fachada ideológica. E manter essa fachada, levar
as pessoas a crerem que isso seria “a realidade”, tem sido uma das grandes
forças que influenciam a modelagem pela mídia e pela cultura contemporânea.
Será que se
encontra aí pelo menos alguma resposta parcial ao problema da acumulação de
tanta estratégia sem coerência, ao longo da última década? Claro, o “vácuo” que
se abriu – quando governantes e governados afastam-se da política – e as
tentativas para gerenciar o vácuo – quando um novo populismo, tanto à esquerda
quanto à direita, empurra na direção do espaço esvaziado – sem dúvida também
explica boa parte da paralisia na tomada de decisão em política exterior.
Tempos de perigos.
Notas dos tradutores
[1] Pela definição da CIA: “Breakout
capacity” [de CIA Glossary, aprox. “capacidade básica para
conversão”]. “Conhecimento, infraestrutura e material que comumente
permanecem abaixo do nível de tornarem-se suspeitos, mas que podem ser
rapidamente adaptados ou reorganizados para permitir que o mesmo processo seja
usado para produzir armas. Essa capacidade exige recursos previamente
organizados e frequentemente se serve de tecnologia, equipamento ou
conhecimento de duplo uso”.
[2] Russian eurobond. Tipicamente, o eurobond é
um título/ação lançado por empresa não europeia para ser comercializado na
Europa. Os eurobonds russos são
títulos/ações lançadas por empresa russa no mercado europeu, que paga juros e
principal em dólares norte-americanos (Webster's New World Finance and
Investment Dictionary.
__________
[*] Alastair Crooke, às vezes erroneamente
referido como Alistair Crooke, (nascido em 1950) é um diplomata britânico,
fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o
engajamento entre o Islã político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura
proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União
Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana
(1997-2003), no cargo de High Representative for Common Foreign and Security
Policy da União Europeia. Foi ácido crítico da violência e saques militares
contra os territórios palestinos e movimentos islâmicos de 2000-2003. Esteve
envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade, em Belém.
Foi membro do Comitê Mitchell sobre as causas da Segunda Intifada, em 2000.
Manteve encontros clandestinos com a liderança do Hamas em junho de 2002. É
defensor ativo do engajamento do Hamas no processo de paz na Palestina, a quem
ele se referiu como “Combatentes da Resistência".
Crooke estudou na University
of St Andrews (1968–1972) do qual ele obteve um mestrado em Política e
Economia. Seu livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolutionfornece
informações sobre o que ele chama de “revolução islâmica” no Oriente Médio,
ajudando a oferecer insights estratégicos sobre as origens e a
lógica de grupos islâmicos que adotaram resistência militar como uma tática,
incluindo Hamas e Hezbollah. Seguindo a essência da Revolução islâmica desde as
suas origens no Egito, através de Najaf, Líbano, Irã e da Revolução Iraniana
até os dias de hoje, desbloqueando algumas das questões mais espinhosas que
cercam estabilidade na atual paisagem do Oriente Médio
___________________
[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão
mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente
Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes:
observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas
para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a
forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até
mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas,
desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas
resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para
abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEstimado Castor,
ResponderExcluirTu disseste que "Mas a análise de Gallo não considera a influência do trotskyismo no neoliberalismo, particularmente nos EUA". Não é certo. O trotskysmo nada tem a ver com o neoliberalismo nem nos Estados Unidos nem em qualquer parte. Alguns ex-trotskistas, como Paulo Wolfowitz, secretário de Ronald Rumsfeld extremaram-se no anti-stalinismo e tornaram-se neoconservadores, a favor da expansão dos Estados Unidos contra a União Soviética. E o trotskismo, que ainda existe, está completamente superado.
Che Guevara sofreu forte influência das ideias de Trotsky. Os próprios dirigentes soviéticas o consideram trotskista. E o próprio Fidel militou, quando estudante, em uma organização trotskista em Havana. Leias, por favor, a 2. edição meu livro De Martí a Fidel - A revolução cubana e a América Latina. Em anexo segue um artigo sobre esse livro publicado em CartaCapital.
É necessário, porém, não olvidar a influência que Sílvio Frondizi, fundador do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR-PRAXIS), de tendência trotskista, exercera na esquerda latino-americana, inclusive, discretamente, em Cuba. Essa organização, fundada em 1956, era anti-stalinista, mas não aceitava as diretrizes dogmáticas da IV Internacional, embora defendesse, o princípio de que a revolução, nos países da América Latina, teria de avançar da etapa democrático-burguesa para o socialismo, porquanto a economia mundial capitalista estava unificada sob o predomínio do imperialismo americano. Era o substrato da teoria da revolução permanente, formulada por Trotsky. Em 1959, após a vitória da revolução cubana, o piloto peruano Ricardo Napurí, exilado em Buenos Aires e ligado, foi a Havana e intermediou um convite para que Sívio Frondizi, a quem era ligado, para lá viajasse e conversasse com Che Guevara. Os dois - Che e Sílvio Frondizi - entenderem-se. E Che, que havia lido, entrementes, La Revolución Permanente, de Trotsky, que Ricardo Naporí lhe dera, concordou com a opinião de Sílvio de Frondizi de que a revolução democrática em Cuba devia evoluir para o socialismo e de que seu destino dependia da revolução em toda a América Latina.
Fidel Castro, por sua, fora filiado, quando estudante na Universidade de Havana, à União Insurreccional Revolucionaria (UIR), fundada por um trotskista e daí sua iniciação no marxismo.
Por fim, creio que tu sabes que Carlos Lacerda e Roberto Campos foram militantes do PCB, mas nem por isso se pode dizer que o stalinismo teve influência no neoliberalismo no Brasil.
Com um abraço, Moniz
Prezado professor Moniz Bandeira
ResponderExcluirQuem escreveu "Mas a análise de Gallo não considera a influência do trotskyismo no neoliberalismo, particularmente nos EUA" foi o prof. Alastair Crooke, autor do "Comentário". Estou enviando esta sua resposta a ele. Em português mesmo.
Castor