31/7/2014, [*] Mouin Rabbani, London Review of
Books, vol. 36, n. 15, p. 8
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Ilustrações de Latuff - via web
Não alimente o criminoso |
Em 2004, um
ano antes de Israel retirar-se da Faixa de Gaza, Dov Weissglass, eminência
parda de Ariel Sharon, explicou o objetivo da iniciativa, em entrevista ao
jornal Haaretz:
O significado do plano de desengajamento é congelar o
processo de paz (…) e quando se congela aquele processo, impede-se o
estabelecimento de um estado palestino, e impede-se que se discuta a questão
dos refugiados, as fronteiras e Jerusalém. Efetivamente, todo esse pacote
chamado o estado palestino, com tudo que implica, foi removido por prazo indefinido,
de nossa agenda. E isso tudo com (...) as bênçãos do presidente dos EUA e a
ratificação das duas casas do Congresso (...). O desengajamento é, de fato,
formol. Fornece a quantidade necessária de formol para que não haja processo
político algum com os palestinos.
Em 2006,
Weissglass era igualmente franco sobre a política de Israel para os 1,8 milhão
de habitantes de Gaza:
A ideia é pôr os palestinos em regime de restrição de
comida, não matá-los de fome.
Não falava
metaforicamente: soube-se depois que o Ministério da Defesa de Israel havia
feito pesquisa detalhada sobre como pôr em prática seu projeto, e chegou ao
número limite de 2.279 calorias por pessoa por dia – cerca de 8% menos que
cálculo anterior, porque a equipe de pesquisa havia esquecido, da primeira vez,
de considerar os fatores “cultura e experiência”, no cálculo para determinar as
“linhas vermelhas” nutricionais.
Não foi
exercício acadêmico. Depois de aplicar uma política de integração entre 1967 e
o final da década dos 1980s, a política israelense deu uma guinada no rumo da
separação durante os levantes de 1987-93, e da fragmentação durante os anos de
Oslo. Para a Faixa de Gaza, área do tamanho da Grande Glasgow, essas mudanças
implicaram gradual rompimento e separação do mundo exterior, com a entrada e
saída de pessoas e bens para dentro e para fora do território já cada vez mais
difíceis.
Povo Escolhido Povo Caçado |
Os parafusos
foram sendo arrochados cada vez mais durante o levante de 2000-5, e em 2007
afinal a Faixa de Gaza foi efetivamente fechada para o mundo. Todas as
exportações foram proibidas e só 131 caminhões de comida e alguns produtos
essenciais podiam entrar, por dia. Israel também controlava rigorosamente que
produtos podiam e não podiam ser importados. Itens proibidos incluíam papel A4,
chocolate, coentro, lápis de cera, geleia, macarrão, xampu, sapatos e cadeiras
de rodas.
Em 2010,
comentando essa degradação premeditada e sistemática do padrão de humanidade de
uma população inteira, David Cameron disse que a Faixa de Gaza era um “campo de
concentração de prisioneiros” e – pela primeira vez – não suavizou a avaliação
acrescentando-lhe um comentário sobre o direito de os carrascos defenderem-se
contra o “perigo” que seus prisioneiros e vítimas representariam.
Tem-se
repetido que a razão pela qual Israel sempre torna cada vez mais violento o seu
regime de castigo coletivo seria derrubar o Hamás, que chegou ao poder em 2007,
em Gaza. É só, uma mentira a mais. Remover o Hamás do poder é objetivo dos EUA
e da União Europeia desde o dia em que o movimento venceu as eleições
parlamentares de 2006; e os esforços combinados daquelas forças para derrubar o
Hamás do poder ajudou a preparar o cenário para que Israel se dedicasse a
aprofundar o cisma palestino.
A agenda de
Israel é bem outra. Se quisesse pôr fim ao poder do Hamás, já o teria feita e
até bem facilmente, sobretudo antes, enquanto o Hamás ainda consolidava seu
controle sobre Gaza em 2007,
a sem necessariamente reverter o desengajamento de 2005.
Mas, não. Israel viu o cisma entre o Hamás e a Autoridade Palestina como uma
oportunidade para aprofundar suas políticas de separação e fragmentação, e para
aliviar a crescente pressão internacional para pôr fim a uma ocupação da
Palestina que já durara meio século.
Os ataques
massivos de Israel contra a Faixa de Gaza em 2008-9 (Operação Chumbo Derretido)
e em 2012 (Operação Pilar de Defesa), além dos incontáveis ataques individuais
entre uma grande guerra e outra, foram, nesse contexto, exercício para o que os
militares israelenses chamaram de “aparar a grama”: enfraquecer o Hamás e
ampliar os poderes “de contenção” de Israel. Como o Relatório Goldstone de 2009
e outras investigações demonstraram, às vezes em detalhes horrivelmente
dolorosos, a “grama” é gente, pessoas, civis palestinos não combatentes,
tomados como alvos humanos da artilharia indiscriminada dos israelenses.
Operação Chumbo Derretido (Cast Lead) |
O atual
ataque de Israel contra a Faixa de Gaza, que começou dia 6 de julho/2014, com
invasão também por terra iniciada dez dias depois, é mais uma ação na mesma
agenda. As condições foram consideradas maduras no final de abril. Negociações
que se arrastavam há nove meses começaram a parar quando o governo israelense
não cumpriu o compromisso de libertar vários palestinos mantidos encarcerados
desde antes dos Acordos de Oslo de 1993; e pararam, mesmo, quando Netanyahu
anunciou que não mais negociaria com Mahmoud Abbas, “porque” Abbas acabava de
assinar acordo de reconciliação com o Hamás.
Nessa
ocasião, em atitude em tudo diversa da “normal”, o Secretário de Estado dos EUA
John Kerry explicitamente culpou Israel pelo rompimento das conversações. O
enviado especial dos EUA, Martin Indyk, profissional lobbyista pró-Israel, também culpou o insaciável
apetite de Israel por terras palestinas e pela expansão continuada das
colônias, e demitiu-se.
O desafio
lançado contra Netanyahu foi bem claro. Se até os norte-americanos já estão
dizendo ao mundo que Israel não tem qualquer interesse em paz, os mais
diretamente investidos num acordo com vistas a uma solução de Dois Estados –
como a União Europeia, que já começou a excluir entidades israelenses ativas
nos Territórios Palestinos Ocupados, de participação em acordos bilaterais –
podem começar a pensar em novos meios para empurrar Israel de volta para dentro
das fronteiras de 1967.
Negociações
sobre coisa-alguma são planejadas para garantir cobertura política à odiosa
política israelense de anexação. Agora que novamente fracassaram, o patrimônio
estratégico que é a opinião pública norte-americana pode começar a perguntar-se
por que o Congresso dos EUA é mais leal a Netanyahu que o Knesset israelense.
Kerry
trabalhou a valer para conseguir acordo amplo: pegou praticamente todas as
exigências de Israel e enfiou-as pela goela abaixo de Abbas. Pois mesmo assim
Netanyahu continuava a reclamar. Além de se recusar a especificar futuras
fronteiras israelenses-palestinas durante os nove meses de negociação, os
líderes israelenses levantaram tais acusações contra Washington, tão violentas
– de encorajar o extremismo, socorrer terroristas – que quase se poderia
concluir que o Congresso dos EUA apoia o Hamás, não Israel! E ao custo de US$ 3
bilhões anuais.
Israel
recebeu outro golpe dia 2/6/2014, quando tomou posse um novo governo da
Autoridade Palestina, depois do acordo de reconciliação de abril entre os
partidos Hamás e Fatah. O Hamás apoiou o novo governo apesar de não receber
postos no Gabinete e de a composição e o programa do governo serem virtualmente
idênticos aos do governo anterior.
Hamas e Fatah |
Praticamente
sem protesto dos islamistas, Abbas repetiu e proclamou que o governo aceitava
as demandas do “Quarteto do Oriente Médio”: reconhecia Israel, renunciava à
violência e aderia a acordos anteriores. Anunciou também que as forças de
segurança na Cisjordânia continuariam a colaborar com Israel.
Quando
Washington e Bruxelas sinalizaram a intenção de cooperar com o novo governo,
todos os sinais de alarme dispararam em Israel.
O que Israel
repetiu sempre, que os negociadores palestinos falam cada um só por si próprio
– e que, por isso, nenhum acordo seria jamais cumprido – começara a perder
sentido: a liderança palestina não apenas podia dizer que representa a
Cisjordânia e a Faixa de Gaza, como, também, conseguira cooptar o Hamás para
que apoiasse um acordo negociado para Dois Estados, quase, praticamente, no
contexto de Oslo. Sem demora, começariam as pressões sobre Israel para que
negociasse a sério com Abbas. O formol começava a evaporar.
Nesse ponto,
Netanyahu apropriou-se do desaparecimento, dia 12/6/2014, de três israelenses
jovens na Cisjordânia, como um afogado agarra-se a uma boa salva-vidas.
Apesar das
provas que recebeu das forças de segurança de Israel de que os três já estavam
mortos, e não há até hoje prova alguma de que o Hamás tivesse tido qualquer
envolvimento nesses eventos, Netanyahu imediatamente acusou diretamente o Hamás
e, na sequência, lançou vasta campanha para “resgatar os reféns” em toda a
Cisjordânia. Foi, de fato, operação de assalto e saque militar. Incluiu o
assassinato de pelo menos seis palestinos, nenhum dos quais acusado de
participação no desaparecimento dos três israelenses; prisões em massa,
inclusive de deputados do Hamás e a recaptura de prisioneiros libertados em
2011; demolição de muitas casas e invasão e saque de outras; e variedade enorme
de depredações do tipo que Israel elevou à posição de uma das belas artes ao
longo de décadas de ocupação.
Netanyahu
desencadeou festival de fogos de artifício demagógicos contra todos os
palestinos; o sequestro seguido de assassinato – foi queimado vivo – de um
jovem palestino em Jerusalém não pode ser e não será separado dessa mesma campanha
de incitamento ao ódio.
Mahmoud Abbas e o massacre em Gaza |
Por sua
parte, Abbas falhou mais uma vez e não se opôs à operação israelense; até
ordenou que suas forças de segurança continuassem a cooperar com Israel na
caçada ao Hamás. O acordo de reconciliação foi posto sob grave pressão. Na
noite de 6/7/2014, um ataque aéreo israelense resultou na morte de sete
militantes do Hamás.
O Hamás
respondeu com fogo sustentado de foguetes que invadiram o centro do território
israelense; e escalaram novamente depois que Israel lançou campanha de massacre
massivo.
Ao longo do
último ano, o Hamás esteve sempre em posição precária: perdeu suas instalações
em Damasco e o status preferencial de que gozava no Irã, efeito
de o grupo ter-se recusado a declarar apoio ao regime sírio; e enfrentou níveis
sem precedentes de hostilidade, pelo novo regime militar egípcio. A economia
subterrânea dos túneis entre Egito e Gaza foi sistematicamente atacada pelos
egípcios, e pela primeira vez desde que passou a controlar politicamente o
território, em 2007, o Hamás não conseguiu pagar em dia os salários das dezenas
de milhares de funcionários públicos. O acordo de reconciliação com o partido
Fatah foi a tentativa de trocar o próprio programa político pela sobrevivência
imediata: em troca de conceder a arena política a Abbas, o Hamás conservaria o
governo da Faixa de Gaza, com seus funcionários incluídos na folha de
pagamentos da Autoridade Palestina e a passagem de fronteira com o Egito
reaberta.
No evento, a
troca que o Hamás esperava ver realizada não aconteceu; e, segundo Nathan
Thrall do International Crisis Group,
“a vida em Gaza piorou”. “A escalada real”, Thrall escreveu, “é resultado
direto de Israel e o Ocidente terem-se oposto à implementação do acordo de
reconciliação entre os palestinos, de abril de 2014”. Ou, dito de outro
modo: os que, dentro do Hamás, viram a crise como uma oportunidade para pôr fim
ao governo de Weissglass, passaram a controlar o partido. Até agora, parecem
ter com eles a maioria da população – porque preferem morrer sob fogo dos F-16,
do que morrer mergulhados em formol.
Ante o coral
de uivos hipócritas – que dessa vez incluem os guinchos de um acovardado
Cameron – sobre um “direito de autodefesa” que caberia a Israel, e ante a
absoluta negação aos palestinos do mesmo direito, com muita frequência se deixa
passar sem ver o ponto fundamental: que o ataque israelense contra os
palestinos é ilegítimo.
Como
argumentou com muita pertinência o advogado Noura Erakat, “Israel não tem
qualquer direito de autodefesa, nos termos da lei internacional, contra
território palestino ocupado”. O argumento de Israel, de que já não estaria
ocupando a Faixa de Gaza, foi descartado por Lisa Hajjar, da Universidade da
Califórnia, como uma autoemitida “licença para matar”.
Netanyahu e o massacre em Gaza |
Mais uma
vez, Israel está “aparando a grama” em total impunidade, assassinando civis não
combatentes e destruindo infraestrutura civil. Dada a afirmativa repetida dos
israelenses de que usam as armas mais precisas disponíveis e miram atentamente
os alvos, é impossível não concluir que os assassinatos são deliberadamente
mirados.
Segundo
agências da ONU, mais de ¾ dos mais de 260 palestinos mortos até agora são
civis, e mais de ¼ desses são crianças. A maioria foi “mirada’ e morta dentro
das próprias casas: não podem ser apresentados como “dano colateral”, seja qual
for a definição dessa expressão. Claro que os militantes palestinos miram
cruelmente os centros israelenses mais populosos, embora seus ataques só tenham
produzido uma única morte: um israelense que oferecia doces a soldados que
pulverizavam a Faixa de Gaza.
A ONG Human Rights Watch criticou os dois lados, sim. Mas só acusou os palestinos por crimes de guerra...
A ONG Human Rights Watch criticou os dois lados, sim. Mas só acusou os palestinos por crimes de guerra...
[*] Mouin Rabbani nasceu na Holanda. Recebeu seu
Bacharelado em História e Relações Internacionais pela Universidade de Tufts, em 1986; Mestrado em Estudos Contemporâneos árabes na Universidade de Georgetown. Foi analista
político para assuntos do Oriente Médio no International Crisis Group, Diretor do Centro
de Pesquisa Palestino−Americano, Diretor
de Projetos da Associação de
Municípios Países Baixos; Editor Geral voluntário
do anuário Al Haq. Rabbani é
atualmente um membro sênior do Instituto
de Estudos da Palestina, co-editor de Jadaliyya, e
editor colaborador do Middle East Report. Rabbani publicou em vários veículos, incluindo Third World Quarterly, Journal of Palestine Studies, The
Nation, Foreign Policy, London Review of Books, e The Hill . Suas
opiniões e análises tem sido citados por vários meios de comunicação
internacionais, como o The New York
Times, The Guardian, Reuters, Haaretz, The Washington Post, e Al
Jazeera. É ardente defensor da solução de Estado Único para
Israel-Palestina.
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