29/7/2014, [*] MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Barack Obama anuncia sanções à Rússia (29/7/2014) |
Se historiadores futuros quiserem ver
quando aconteceu de a era do pós-guerra fria converter-se em neo-Guerra Fria,
bem farão se examinarem de perto a semana em curso. O governo Barack Obama está
em astral triunfalista na sequência de alguns sucessos: afinal, conseguiu pôr
ordem entre os principais aliados dos EUA na Europa – Grã-Bretanha, França,
Alemanha e Itália – todos numa mesma estratégia concertada pra isolar a Rússia
da Europa e impor sanções fortes contra a Rússia.
Obama poderia talvez ter feito discurso
incendiário à moda da Cortina de Ferro essa semana – não pôde, por causa da
Líbia, do Iraque, da Síria, do Afeganistão et allii, e por causa do
horrendo massacre em Gaza que já conspurcou também a reputação dele; além do
mais, não esqueçam, Obama é “Prêmio Nobe” e não pode ser visto por aí dando
gritos de guerra.
Mesmo assim, a videoteleconferência
de Obama com seus contrapartes europeus na 2ª-feira para mostrar o acordo “sobre
medidas coordenadas de sanções contra a Rússia” sugere, além de qualquer
dúvida, que está terminando o período pós-guerra-fria.
Nas próximas “12-48 horas” Bruxelas
anunciará novas sanções contra Moscou baseadas no roteiro dos EUA
envolvendo amplo pacote de medidas que visam a pôr de joelhos a economia russa.
Washington, na sequência, anunciará suas próprias sanções contra a Rússia.
Essas chamadas
Terceira Rodada de sanções estão previstas para atingir instituições
financeiras russas, negócios de armas e de tecnologia de exploração de energia.
Os bancos russos serão impedidos de operar com novos títulos russos ou
substituí-los por outros equivalentes (ing. listing
new bond or equity issues) em
Bolsas Europeias, e serão banidos nas transferências de tecnologias sensíveis
que possam ser usadas em perfuração em mar profundo, exploração no Ártico e
extração de xisto betuminoso. O embargo deve incluir também a proibição de
futuros negócios de armas com a Rússia.
Putin no Conselho de Segurança da Rússia (28/7/2014) |
Moscou adivinhou o que viria e começou a
organizar a defesa. 3ª-feira o presidente Vladimir Putin teve reunião do
Conselho de Segurança da Rússia no Kremlin, o mais alto corpo para proposição
de políticas externas e de segurança. Putin fez ali um importante discurso,
para um grupo cuja agenda era, sem dúvida, discutir as opções estratégicas da
Rússia no novo clima de Guerra Fria em todas as áreas de políticas nacionais –
políticas domésticas, política exterior, política militar e, até, “guerra de
informação”.
Putin disse:
Nossas Forças Armadas continuam a ser a mais importante garantia de nossa
soberania e da integridade territorial da Rússia. Reagiremos apropriadamente e
proporcionalmente à abordagem pela infraestrutura militar da OTAN contra nossas
fronteiras, e não deixaremos de perceber qualquer expansão dos sistemas de
mísseis globais de defesa e aumentos nas reservas de armamento estratégico não
nuclear de precisão (...). Estamos vendo claramente o que está
acontecendo hoje: grupos de tropas da OTAN estão claramente sendo reforçados em
estados da Europa Oriental, inclusive no Mar Negro e no Mar Báltico. E a escala
e a intensidade do treinamento operacional e de combate estão aumentado. É
imperativo implementar todas as medidas planejadas para reforçar a capacidade
de defesa de nosso país, plenamente e conforme o cronograma. (Kremlin website [em tradução]).
Os eventos dessa semana simplesmente
liquefizeram qualquer resíduo que ainda houvesse de possibilidade de acomodação
entre Washington e Moscou. Assim também, o papel mediador da Europa – de França
e Alemanha em particular – também se está esvaindo. A avaliação dos EUA é que
eles estão numa situação de “ganha-ganha”, porque, como Dmiti Trenin, professor
da Carnegie, observou essa semana,
Dmitri Trenin |
Ainda que nenhum líder pró-ocidente venha a substituir Putin no Kremlin (...)
a Rússia sucumbirá ante outro período de tumultos, tornando-se o maior problema
para ela mesma e sem meios para criar problemas para Washington.
Trenin pintou um cenário em traços
simplificados:
Já não se trata de lutar pela Ucrânia, mas de batalha pela Rússia. Se
Vladimir Putin conseguir manter o povo russo ao seu lado, vencerá. Se não, vem
por aí mais uma catástrofe geopolítica.
Claro que Trenin exagera. Para começar,
a popularidade de Putin é mais que o dobro da de Obama. Os russos admiram Putin
como patriota e líder firme; e os norte-americanos, cada dia mais, veem Obama
como vacilante e incompetente, não importa a pose que faça.
Mas o verdadeiro perigo não está aí:
está na evidência de que a comunidade internacional pode ter tido de pagar
preço caro demais pelas tenebrosas transações em que Obama os está metendo, em
cenário de uma nova Guerra Fria. Se o Irã, como já se viu, não foi destruído
por sanções, o que leva Obama e seus colegas europeus a crer que país
muitíssimo mais poderoso, como a Rússia, poderia ser destruído?
Será que a força somada de EUA e seus
aliados europeus basta para “resetar” a ordem mundial e isolar a Rússia, a
qual, por falar dela, também é voraz globalizadora (diferente, nisso, da União
Soviética)?
Se a Europa não vai comprar petróleo
russo e diversificará... o que acontecerá ao mercado de petróleo que serve
também o resto do mundo? O que acontece à própria recuperação econômica da
Europa, se o preço do petróleo subir à estratosfera?
É absolutamente óbvio que, se a Rússia
vê a OTAN e seus sistemas de mísseis antibalísticos como desafio existencial,
como admitirá, algum dia, a implantação de bases militares de EUA-OTAN no
Afeganistão? E, mais uma vez: se a Rússia é país adversário, por que
continuaria a cooperar com os EUA (e com o ocidente) no Irã, Síria ou Iraque?
BRICS - Os Presidentes (16/7/2014) |
E onde tudo isso deixa os outros maiores
países dos quintais não ocidentais do mundo – Índia, Brasil ou China? Será que
o ocidente conta com que esses países pactuarão com o regime de Terceira Rodada
de sanções contra a Rússia? E se não pactuarem?
Não, Sr. Trenin, o senhor errou. Não se
trata absolutamente do regime russo. Trata-se, isso sim, da ordem mundial. O
que está em jogo é o sistema de Bretton Woods e o desafio contra ele que Putin
comanda – como se viu bem claramente na reunião dos BRICS em Fortaleza, Brasil.
O que estamos vendo é o contra-ataque de
Obama numa guerra de guerrilhas – assustado, ele, ante o desafio que não para
de crescer contra a supremacia do dólar norte-americano. O caso é que, sem
liberdade total-total para imprimir notas de dólar, a economia dos EUA será
fulminada.
O resto do mundo compreende
perfeitamente do que trata essa neo-Guerra-Fria. Nem os europeus são perfeitos
idiotas; eles também compreendem o que se passa – a forte resistência que
manifestaram contra o desejo dos EUA de isolar a Rússia, e que tirou o sono de
Obama durante várias semanas e meses, é prova disso.
Com certeza absoluta, não há ideologia,
dessa vez. Não é guerra contra o socialismo ou contra o terrorismo, nem é
guerra intrinsecamente pela Ucrânia ou pela Rússia. Em termos simples, a nova
Guerra Fria é sobre a perpetuação da dominação pelos EUA em mundo global.
Sem o sistema de Bretton Woods, sem a
OTAN, sem superioridade nuclear sobre a Rússia, os EUA já anteveem a
possibilidade real de, com o tempo, se irem tornando potência muito reduzida.
Sem a liderança trans-Atlântica, os EUA ficam reduzidos ao que foram antes da Iª
Guerra Mundial, há cem anos: uma potência regional, com influência só no
Hemisfério Ocidental.
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata
de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Oriente Médio, Afeganistão e Paquistão e
escreve sobre temas de geopolítica, de energia e de segurança para várias
publicações, dentre as quais
The Hindu,
Asia Times Online, Al Jazeera, Counterpunch, Information Clearing
House e muitas
outras. Anima o blog Indian
Punchline no sítio Rediff BLOGS. É o filho mais velho de MK Kumaran
(1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala, Índia.
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