15/7/2014, [*] Conflict
Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Mundo muçulmano - xiitas e sunitas (clique na imagem para aumentar) |
O sunismo
sempre teve um vínculo especial com o estado. (Não em termos de Westphalia, com suas identidades nacionais
homogêneas, mas relação mais complexa, com diferentes etnias, seitas e tribos
reunidas sob uma única autoridade forte). Os sunitas sentem-se de algum modo
intimamente conectados ao estado, de modo diferente dos demais. O que se quer
dizer com isso é que os sunitas sentem que fundaram o estado, que de algum modo
são “o estado” e são “do estado”. Concomitantemente, os xiitas são
frequentemente chamados, pejorativamente (quase sempre por sunitas), de “os
rejeicionistas” (do estado “dos sunitas”), e são vistos como excessivamente
ligados às próprias noções de justiça, para fazerem adaptações confiáveis, na
pragmática arte de construir estados.
Em resumo, os
sunitas veem os xiitas como potencialmente naturalmente subversivos, e, até,
revolucionários. E os xiitas veem os sunitas como excessivamente pragmáticos no
exercício do poder, a ponto de perderem de vista o componente espiritual radical
da mensagem do Profeta.
Mas no
período recente, os estados sunitas não têm dado muito certo. Os chamados “modelos”
de governança para os sunitas, ou implodiram ou estão largamente
desacreditados. A “esfera” sunita está visivelmente em processo de degradação.
E, dado que a “identidade” sunita está tão intimamente ligada à noção de um
estado poderoso (o ideal é os primeiros anos da expansão islâmica, depois da
morte do Profeta), o processo de degradação surge acompanhado por uma
fragmentação psicológica e profundo senso de que o “modo de ser” sunita – seus “valores
culturais” estão sendo de algum modo ignorados e atropelados.
E tudo isso
vem à luz precisamente num momento de renovação e de nova energia no âmbito dos
xiitas, o que só faz aumentar ainda mais o desconforto dos sunitas. Não é
surpresa portanto que estejamos testemunhando ressentimentos profundos na Sunnah,
de desconstituição e perda de posições de liderança “mantidas por direito”;
sentimentos de frustração (pelo que ressentem como redução de status dos
sunitas no comando do futuro do Islã e da região – e ressentimento pelo que os
sunitas veem como marginalização deles, na discussão das questões.
ISIS no Iraque |
Grande parte
disso é mais imaginado, que real – o que em nada reduz significação psicológica
e política. Mas, sim, os modelos de “estado” sunita estão em crise: e, sim, os
sunitas foram marginalizados no Iraque; mas na região em geral (incluindo a
Síria), não é correto sugerir que os sunitas seriam de algum modo “vítimas”,
ameaçados de serem varridos pela maré cultural “estrangeira” que emana do Irã.
Os sunitas são a maioria (mas não na extensão frequentemente sugerida para toda
a região), e continuam a controlar predominantemente as alavancas de controle
político e econômico. Mas a região está se reequilibrando; e isso,
compreensivelmente, é fator desestabilizante e causa do torvelinho.
Mais significativo
politicamente é que Europa e EUA tenham absorvido de modo tão pouco crítico a
narrativa dos sunitas “vítimas”, que o dito “ocidente” tenha ficado confuso e
passivo ante a ascensão do ISIS. Sim, o Islã xiita está conhecendo um
renascimento, mas é raciocínio simplório atribuir a perturbação psicológica dos
sunitas simplesmente ao ressurgimento dos xiitas. Os fracassos dentro do
próprio Islã sunita têm também muito a ver com isso – como também tem a crescente
autoconfiança do Irã. Em resumo, os sunitas têm, sim, de responder à própria
circunstância deles: não é possível atribuir tudo a forças externas.
Afinal de
contas, os governantes mais desacreditados nos recentes levantes árabes foram
governantes sunitas. No coração daqueles levantes estava o rompimento do
contrato social dos sunitas, não alguma “maquinação” que emanasse do Irã.
Apesar disso, essa visão simplória (de que a perturbação que os sunitas estão
sofrendo seria causada basicamente pelo “ativismo” dos xiitas e do Irã)
tornou-se consenso estabelecido, definitivo, para europeus e para os EUA.
Europeus e norte-americanos estão (e tinham de estar), é claro, sinceramente
desentendidos e perturbados pelo ISIS e a inesperada tomada de porções
de território do Iraque, mas também foram colhidos de surpresa pelo apoio de
alguns sunitas populares e do Golfo ao ISIS: como observou um importante comentarista político, funcionários dos EUA percebem que o ISIS obtém apoio significativo da população sunita, o que leva à percepção
de que os EUA deveriam tomar medidas antissunitas [se interviessem para
apoiar o Iraque]”. De fato, um ex-embaixador do Qatar nos EUA alertou o
governo Obama contra qualquer intervenção militar a favor de Maliki: seria vista como ato
de “guerra” por toda a comunidade dos árabes sunitas,
disse ele.
Nouri al-Maliki, Primeiro-Ministro do Iraque |
Essa
aceitação da narrativa sunita (a ideia descabida e sem lógica de que a ascensão
do ISIS seria atribuível ao presidente Assad e ao sectarismo do
primeiro-ministro Maliki) paralisou as reações iniciais do ocidente ao pedido
de ajuda feito pelo Iraque, e deixou a política externa ocidental em estado de
contradição explícita fundamental – com os EUA aumentando o apoio financeiro à
insurgência síria (campo fértil do qual, aí sim, o ISIS emergiu e foi
armado), enquanto, simultaneamente, os EUA hesitavam em oferecer ajuda
crucialmente necessária ao governo do Iraque para que derrotasse o ISIS.
Já
escrevemos sobre a natureza radical do ISIS e
a significação verdadeiramente revolucionária de seu historicismo revisionista,
mas o que é mais importante para compreender a significação do ISIS é
essa mudança paradigmática da ênfase, das ações do próprio Profeta e de Medina,
como modelo societal – para privilegiar a conduta do primeiro e segundo Califas
(Abu Bakr, cujo nome o novo “Califa” assumiu como “nome de guerra”; e o segundo
Califa, Umar). Essa mudança diz muito sobre essa nova orientação de pensamento,
e por que está tendo apelo tão amplo, cobrindo todo o espectro, de jovens
muçulmanos sunitas irados, até líderes do Golfo.
Num sentido,
o pensamento do ISIS parece oferecer a jovens muçulmanos uma solução
romântica, “heróica”, à crise sunita de modelos de governança desacreditados
(no Boston Globe, 28/6/2014, lê-se
coluna cheia de elogios a um novo modelo de cidadania que o ISIS
estaria criando, e praticamente sem nenhuma referência ou crítica ao apoio
saudita e do Golfo ao ISIS e a jihadistas radicais).
Abu Bakr e
Umar, sim, à maneira deles, consolidaram o “estado”. Fizeram guerras contra
apóstatas e inimigos de Deus, e não hesitaram em usar “terrível violência”,
queimando pessoas vivas e executando inimigos por degolamento. (Vê-se a mesma
abordagem no Iraque hoje).
Mas Abu Bakr
e Umar são também conhecidos por mitigar a espiritualidade e a radicalidade da
mensagem do Profeta, cercando-as nos, e apresentando-as conforme aos hábitos e
práticas culturais árabes do período. Não só adotaram o estilo de guerra
tradicional – um tradicional estilo árabe bélico – mas também o patriarcado
tradicional, com primado do homem, foram
reinseridos nas interpretações e comentários às falas e
ações do Profeta. As mensagens do Profeta sobre relações sociais foram “temperadas”
por uma recuperação da cultura árabe tradicional (foi o que fez Umar,
principalmente, como Califa).
Abu Bakr al-Baghdadi |
Assim, se se
lê a literatura do ISIS, a ênfase em Abu Bakr e Umar sugere nem tanto um
retorno ao modelo de Medina (ao qual aspira a Fraternidade Muçulmana, como a
maioria dos salafistas); mas, mais, a um modelo do Estado Islâmico que é
pré-islâmico, nas principais características. A noção da “Constituição
de Medina” como modelo de sociedade política (redigida durante a
estadia do Profeta em Medina) não aparece na narrativa do ISIS, como
tampouco aparece ali a noção, cara à Fraternidade Muçulmana, de que as
primeiras Comunidades basearam-se na soberania dos povos. A reorientação do ISIS
representa mudança dramática e significativa no islamismo dos sunitas, que se
move na direção de estruturas pré-islâmicas de estado e de sociedade.
Essencialmente,
o ISIS está empurrando o paradigma, do período Profético (a era de
Maomé), para o período pós-Profético (i.e. para o período do Império Islâmico),
caracterizado mais pela eficácia militar como seu ethos regente. Nesse
espírito foi que os dois primeiros Califas reinstauraram muitos dos modos
pré-islâmicos de governar e de guerrear.
O que se tem
então é o ISIS a apresentar aos jovens muçulmanos o governo pré-islâmico
como “solução” para o sofrimento contemporâneo dos sunitas. É o mesmo que dizer
que a “solução” do ISIS é o Islã implantando no modelo de estado árabe
pré-islâmico tradicional – com Abu Bakr e Umar na função de protagonistas
modelos.
Esse é modelo
autocrático e que exige completa submissão e obediência sob pena de morte aos
que se rebelem. Sob esse aspecto (a insistência no quesito autoridade), não é
difícil entender por que os autocratas do Golfo são seduzidos pelo “modelo” –
apesar de o ISIS ter rejeitado a alegada legitimidade
daqueles monarcas. O romantismo
de “lutar pelo Islã” como fizeram os primeiros “mestres combatentes”, e a irrestrita
entrega exigida a um “ideal”, sempre atrairão os mais jovens, que se veem
afinal conseguindo livrar-se e superar a corrupção e a putrefação de uma
sociedade degradada.
Em resumo, o ISIS
é uma manifestação mais de fragmentação e de esgotamento psicológico, que algum
tipo de real solução política. Pode ressoar na psique contemporânea de muitos
sunitas, por enquanto; mas é difícil ver os luminares da inteligência sunita
suportando por muito tempo a vida nesse novo califado. Ele é, em todos os
casos, um modelo no qual a eficácia se sobrepõe à moralidade, e permanece com a
mesma falha essencial que assombrava o Islã nos primeiros tempos: a opacidade
na metodologia para escolher quem se torna Califa. Se a eficácia é o critério
decisivo, então terá de ser julgado por esse padrão (e muito provavelmente não
corresponderá integralmente).
Abdulrahman Al-Rashed |
A resposta
saudita (exposta num editorial assinado por colunista
top da empresa-imprensa do establishment saudita, Abdulrahman
Al-Rashed, presidente da TV Al-Arabiya)
foi que a ameaça imposta pelo ISIS tem de ser corretamente compreendida
– porque há uma “genuína” [quer dizer, sunita] revolução contra um governo
sectário repugnante tanto na Síria como no Iraque. O ISIS foi contagiado
por essa “ira sunita” e tornou-se “a estrela do show para sunitas por
todo o mundo” (...). Mas “não fosse por Assad e Maliki, o ISIS e a
Frente al-Nusra nunca teriam existido”. (Esse é o refrão-meme saudita, a “narrativa”
que foi quase universalmente acolhida e reproduzida por toda a grande
imprensa-empresa ocidental).
A Arábia
Saudita está preparada, Abdulrahman sugere, para o confronto contra o ISIS,
mas só e somente só “se se impuser alguma
solução política contra Síria e Iraque” – mudança de regime que leve a
mobilização mais ampla de sunitas. As políticas sectárias de Assad e Maliki “geraram esse caos. Portanto, a solução está
em governos centrais fortes em Bagdá e Damasco, com apoio dos EUA, do ocidente
e regional”.
Mas sejamos
claros: quando Abdulrahman insiste que Nouri al-Maliki “tem de sair”, não está
propondo que outro xiita assuma seu posto – como aconteceria no atual quadro
político, no qual os xiitas chegam a 60-65% do eleitorado. Está clamando por
derrubada do sistema – com um “homem-forte” sunita (ou um Iyad Alawi aprovado
por Riad) posto no poder (à moda Sisi). O mesmo, para a Síria. É o chamamento pelo
expurgo do Oriente Médio.
É difícil ver
essa grandiosa demanda saudita levando os demandantes a lugar algum. Com o
passar do tempo, o ISIS perderá o fulgor; os xiitas do Iraque estão-se
mobilizando; e se reorganizarão, eles mesmos, para iniciar a tarefa de derrotar
o ISIS. Não será rápido, mas já começou.
O que temos
aqui? A Arábia Saudita realmente acredita que o modelo ISIS seja
sustentável além do pico de adrenalina das vitórias militares iniciais do ISIS?
A Síria aí está para mostrar que não. E se o ISIS não é senão genuína
revolução contra governo sectário repugnante, como Abdulrahman sugere, então
por que a Arábia Saudita está reunindo 30 mil soldados na fronteira com o
Iraque? Bem visivelmente os sauditas
estão mais nervosos do que estão admitindo publicamente.
Arábia Saudita - Família al-Saud |
A família
al-Saud está em conflito e dividida. O que essa validação (qualificada) do ISIS,
por agente bem posicionado, sugere é, isso sim, que a Arábia Saudita está sem
leme, à deriva – e está mostrando-se incapaz de “desfazer” velhas políticas –
mesmo quando elas já ameaçam diretamente o bem-estar do reino. “Assad tem de
sair”; “Maliki tem de sair” e o ISIS encaixam-se como luva velha:
política no piloto automático, e ninguém – pelo que se vê – tem os meios para
mudar coisa alguma, pelo menos por enquanto.
Mas a
situação se encaminha para futuro muito incerto. Maliki pode não ser muito
admirado, e está sendo pesadamente criticado pelos fracassos do exército em
Mosul, mas, sem dúvida, é mestre na pilotagem da política iraquiana. Até aqui,
está sobrevivendo. Verdade é que a própria tentativa de derrubá-lo que os EUA
fizeram pode ter tido efeito inverso – atraindo a rápida ajuda militar de
russos e iranianos – interessados em bloquear a tentativa dos EUA para
chantagear o parlamento iraquiano (os EUA condicionaram a ajuda militar contra
o ISIS, à derrubada de Maliki). “Os sapatos estão nos pés trocados: se
os EUA não se envolverem militarmente, ninguém sentirá a falta deles”, como escreveu
um comentarista.
Irã e Rússia
estão operando em estreita coordenação, e o Irã define a incursão do ISIS
como a entrada da Arábia Saudita na guerra regional contra o país. Políticos
iranianos apontam o dedo responsabilizando a Arábia Saudita pelo ISIS e
(como só fazem muito raramente) bem explicitamente: “A Arábia Saudita é patrocinadora-apoiadora espiritual, material e
ideológica do ISIS, e o rei
saudita nomeou o ex-chefe de inteligência do país [príncipe Bandar], para a
missão especial de apoiar o ISIS”.
(Mohammad
Hassan Asafari, membro destacado do Parlamento iraniano). E a
imprensa conservadora iraniana é ainda mais dura: “A segunda maior aposta dos EUA no Iraque já começa a cheirar a derrota.
Enquanto o exército popular do Iraque e as forças de voluntários vão limpando a
cidade de Tikrit (...) os norte-americanos não se dispõem a ajudar o governo
legalmente eleito do Iraque a derrotar terroristas; até tomaram posições que
garantem apoio ao ISIS. Em vez
de desacreditar os terroristas, (...) funcionários dos EUA acusaram [Maliki] de
monopólio e de guerra sectária!” (Keyhan, 30/6/2014).
A
ambivalência de EUA e Europa (o ocidente dançando pela música do Golfo, de que
o ISIS seria apenas um “fato” com o qual o ocidente tem de
reconciliar-se, não uma frente terrorista dedicada a assassinar todos os “apóstatas”)
– está gerando suspeitas crescentes e reação hostil entre os mais altos
políticos iranianos. Estamos nos aproximando do 20 de julho/2014, data limite
para as negociações nucleares. Difícil ver como esse clima deixará de
fortalecer ainda mais os iranianos, determinados a defender seus interesses na
última rodada das negociações do P5+1, antes de que se esgote o prazo. Por
enquanto, tampouco há
sinal algum de “entendimento” entre
Arábia Saudita e Irã, que estabilizaria a região: só se veem sinais de
movimento na direção contrária.
[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão
mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente
Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes:
observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas
para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a
forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até
mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas,
desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas
resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para
abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
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