40 anos depois do vazamento dos “Pentagon Papers” do Vietnã
Daniel Ellsberg |
13/6/2011, Daniel Ellsberg, Guardian, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A liberação e divulgação online da versão original integral dos Pentagon Papers (“Documentos do Pentágono”) – o relatório de 7 mil laudas, super secreto, elaborado pelo Pentágono, sobre as decisões tomadas pelos EUA no Vietnã no período 1945-67 – acontece agora, 40 anos depois que entreguei aquele mesmo relatório a 19 jornais e ao senador Mike Gravel (exceto os volumes sobre negociações, que só entreguei à Comissão de Relações Exteriores do Senado dos EUA). Gravel protocolizou no Congresso o material que lhe entreguei e mais tarde publicou praticamente tudo, em livro editado pela Beacon Press.
Somado ao que a imprensa divulgou e a uma edição da imprensa oficial do governo dos EUA que foi pesadamente editada, mas coincide em boa parte com a edição do senador Gravel, praticamente todo aquele material já está à disposição da opinião pública e de estudiosos desde 1971. (Os volumes que contêm relatórios das negociações foram liberados há alguns anos; o Senado, se não o próprio Pentágono, deveria ter divulgado tudo, no mínimo, logo depois do final da guerra, em 1975.)
Em outras palavras, o fim do sigilo de todo aquele material chega com 36-40 anos de atraso. Mas, infelizmente, aquele estudo ainda chega em hora oportuna. Os EUA estão outra vez afogados em guerras – sobretudo no Afeganistão –, em situação espantosamente semelhante ao conflito de 30 anos no Vietnã, e ainda não há informação e análise comparáveis àquelas, que ajude os cidadãos a entender como e por que nos metemos lá e o que o futuro nos reserva.
Nesse junho de 2011, os EUA precisam, não de “Documentos do Pentágono” sobre o Vietnã, mas de “Documentos do Pentágono” sobre o Iraque, o Afeganistão, o Paquistão, o Iêmen e a Líbia.
É praticamente impossível que obtenhamos essa informação, que talvez nem exista, ou não, pelo menos, no formato compreensível e útil dos documentos sobre o Vietnã. Seja como for, os documentos sobre o Vietnã são substituto surpreendentemente útil para a informação que não temos hoje, e não há dúvida de que precisam ser conhecidos com a máxima profundidade possível.
Sim, as línguas e as etnias que os EUA não entendem são diferentes no Oriente Médio, das que encontramos no Vietnã; o clima, o terreno, as emboscadas possíveis são também muito diferentes. Mas, como os “Documentos do Pentágono” explicam muito bem, os EUA empenham-se outra vez, também no Afeganistão, em localizar e destruir guerrilhas e guerrilheiros nacionalistas, ou em tentar convencê-los a não atacar invasores e forças ocupantes estrangeiras (dessa vez, os EUA) e a parar de resistir contra déspotas locais corruptos, gananciosos, traficantes de drogas ou armas, que os EUA apóiam.
Como no Vietnã, quanto mais soldados enviarmos e quanto mais inimigos os EUA matarem (além de civis inocentes), mais soldados perderemos e mais os guerrilheiros encontrarão solidariedade e apoio das populações locais – porque é a presença dos EUA, as operações secretas e não secretas, o apoio que os EUA dá a regimes sem qualquer legitimidade, que facilitam e dão força ao recrutamento de forças de resistência.
Como no Vietnã, quanto mais soldados enviarmos e quanto mais inimigos os EUA matarem (além de civis inocentes), mais soldados perderemos e mais os guerrilheiros encontrarão solidariedade e apoio das populações locais – porque é a presença dos EUA, as operações secretas e não secretas, o apoio que os EUA dá a regimes sem qualquer legitimidade, que facilitam e dão força ao recrutamento de forças de resistência.
Quanto a Washington, os relatórios de repetidas decisões de ‘aprofundar’ a guerra que se leem nos “Documentos do Pentágono” são como versão antecipada do livro que Bob Woodward publicou ano passado Guerras de Obama [1], sobre as longas discussões que antecederam a decisão do presidente Obama, de triplicar o efetivo militar dos EUA no Afeganistão. (O livro de Woodward também é baseado em vazamento de informação altamente secreta. Infelizmente, toda aquela informação só veio à luz depois de as decisões terem sido tomadas, e sem a documentação oficial correspondente – que Woodward ou suas fontes muito bem fariam se entregassem imediatamente a WikiLeaks.)
Nesses dois conjuntos de relatórios secretos de duas guerras, separadas por 40 anos e um mundo de distância, leem-se sobre os mesmo objetivos autorreferentes, que interessam ao presidente e aos congressistas, de manter viva uma guerra que os EUA não podem vencer e jamais vencerão. O principal desses objetivos é não agir de modo a que os rivais políticos possam acusá-los de ‘fraqueza’, ou de ter perdido uma guerra que só alguns generais ensandecidos e irracionalmente ambiciosos ainda supõem que possam vencer. Se se somam as realidades da política e do campo de combates, vê-se que o futuro é sempre um mesmo impasse sangrento, sem fim – a menos que e até que, sob pressão popular, o Congresso ameace cortar o suprimento de dinheiro (como em 1972-73) e force o executivo a uma retirada negociada.
Para motivar os eleitores e o Congresso a nos arrancar dessas guerras presidenciais, precisamos conhecer, imediatamente, os “Documentos do Pentágono” sobre as guerras do Oriente Médio, e precisamos conhecê-los imediatamente. Não daqui a 40 anos. Não depois, sequer, de mais dois ou três anos de envolvimento em guerras injustificadas, injustificáveis e que os EUA não vencerão.
Contudo, nada sugere que os norte-americanos tenhamos acesso a esses documentos com a necessária urgência. Os vazamentos não autorizados, pela página WikiLeaks, do ano passado, são os primeiros, em 40 anos, que se aproximam à escala de vazamentos dos “Documentos do Pentágono” (e até os superam, na quantidade e no tempo que cobrem).
Infelizmente porém, a corajosa fonte desses relatórios secretos, de material de campo – o cabo Bradley Manning é o único acusado, embora não haja até agora qualquer prova de que seja o autor dos vazamentos – não teve acesso às decisões secretas dos altos escalões, às avaliações, recomendações e decisões de comando político e militar de alto nível.
Muito poucos, pouquíssimos, dos que têm acesso àquele nível de informação manifestam qualquer interesse em arriscar suas autorização de segurança e suas carreiras – e é altíssima a possibilidade de que, sob o governo do presidente Obama, sejam acusados de traição e processados –, se denunciarem ao Congresso e à opinião pública nos EUA as políticas que mesmo eles, pessoalmente, consideram desastrosas, mas que são protegidas por alto sigilo e sobre as quais todos mentem à opinião pública.
Houve tempo em que eu também – e de modo algum fui o único – tive acesso àquele nível de informação altamente secreta, quando fui assessor especial do secretário assistente de Defesa para assuntos de segurança internacional no Pentágono, em 1964-65. (Meu superior imediato, McNaughton, principal assistente de Robert McNamara para questões do Vietnã, tinha acesso também àqueles documentos, como se lê em seu diário pessoal recentemente publicado.)
Sempre lamentei que não me tivesse ocorrido, em agosto de 1964, a ideia de divulgar os documentos aos quais tinha acesso, e que teriam exposto a mentira oficial de que teria havido ataque “inequívoco, não provocado” (que jamais houve) contra nossos destróieres no Golfo de Tonkin: são os precursores da “evidência acima de qualquer dúvida” de que haveria armas de destruição em massa (que nunca existiram) no Iraque; com essa mentira, o Congresso foi mais uma vez manipulado, e aprovou resolução que é, em tudo, idêntica à resolução sobre o Golfo de Tonkin.
O senador Morse – um dos dois únicos senadores que votaram contra a autorização inconstitucional, cheque em branco, sem data, para a guerra presidencial de 1964 –, disse-me pessoalmente que, se eu lhe tivesse oferecido os documentos-provas naquele momento (em vez de só entregá-los em 1969): “A resolução sobre o Golfo de Tonkin jamais teria sido aprovada na Comissão; e se a discussão chegasse ao plenário, teria sido derrotada.”
É um peso que carrego, e que mais ainda pesa quando penso que, em setembro [de 1964], eu já tinha uma gaveta cheia de documentos super secretos (outra vez: que lamentavelmente não foram publicados até 1971) que provavam que a promessa de Johnson, na campanha eleitoral (“no wider war”, aproximadamente, “a guerra não será ampliada”) não foi feita para ser cumprida; que os planos para descumpri-la já estavam em andamento; e que, de fato, a decisão de ampliar a guerra já estava tomada antes das eleições, uma guerra que o próprio Johnson, privada e realistamente, considerava já perdida.
Se eu ou algum dos muitos agentes que, então, conhecíamos os mesmos segredos de alto nível que eu conhecia tivéssemos agido naquele momento, em nome do juramento que fizéramos – e ninguém jamais jurou obedecer cegamente o presidente em atos ilegais, nem guardar segredo no caso de o presidente descumprir, ele, o juramento que fez; todos nós e o presidente juramos exclusivamente “apoiar e defender a Constituição dos EUA” – é bem possível que aquela guerra terrível tivesse sido evitada. Mas, para que se pudesse pelo menos esperar que assim fosse, teríamos de ter divulgado os documentos quase em tempo real, quando as decisões estavam sendo tomadas, e antes de a guerra já ter sido ampliada – não cinco, sete, sequer dois anos depois de todas as mais fatídicas decisões estarem tomadas e de a guerra já estar em andamento.
Essa é uma terrível lição que se aprende ao ler os “Documentos do Pentágono” sobre o Vietnã, agora que já sabemos o que aconteceu depois. Hoje, a todos que trabalham no Pentágono, no Departamento de Estado, na Casa Branca, na CIA (e em agências equivalentes na Grã-Bretanha e em outros países da OTAN), e que têm, como eu tive, acesso equivalente ao que eu tive, a praticamente todos os segredos, digo o seguinte:
Não cometam o erro que eu cometi. Não façam o que eu fiz. Não esperem que comece uma nova guerra no Irã, não esperem que novas bombas tenham já matado mais gente no Afeganistão, no Paquistão, na Líbia, no Iraque ou no Iêmen. Não esperem que haja novos milhares de cadáveres. Procurem imediatamente a imprensa, o Congresso, e contem a verdade, e exibam as provas das mentiras, dos crimes, as projeções internas de custos e riscos. Não esperem 40 anos, para que os documentos sejam abertos ao conhecimento público. Não esperem, sequer, os sete anos que eu esperei. Divulguem imediatamente o que tenham em mãos e todos os documentos correspondentes.
Há graves riscos pessoais. Mas é absolutamente necessário evitar uma guerra e salvar muitas vidas.
Nota de tradução
[1] Sobre o livro, de um blog português de direita, Exílio de Andarilho:
“No seu mais recente livro, Woodward (Obama Wars) fala de Obama e da sua estratégia antiterrorista (indicando que os Estados Unidos estão preparados para receberem em casa um novo ataque terrorista) e no facto a América ter no Afeganistão uma unidade de comandos formada por cerca de 3.000 afegãos, treinados e financiados pela CIA, com a missão de limpar o país de unidades e comandos da Al Qaeda.
Mais que uma Força de Intervenção Rápida, a unidade de combate é uma unidade de guerra preemptiva autorizada pelo punho do Presidente Democrata e dirigida a cortar a atacar refúgios da Al Qaeda e dos talibã.
A revelação é muito curiosa (...). Antagonista dos métodos preemptivos da Administração Bush, durante toda a campanha eleitoral, Obama ter-se-á deixado seduzir – como realista que é – pela necessidade de sacrificar os princípios ‘bonitos’ à necessidade de resultados operacionais.
Como está bem de se ver, as unidades não estão propriamente no terreno para respeitar as leis da guerra e da paz que tanto alegram os nossos juristas internacionalistas, mas para matar terroristas
Curiosa será a explicação que Obama terá adiantado ao jornalista, para esta cedência “manifesta” aos métodos Rumsfeld com que Obama tanto se empertigou na sua campanha presidencial”
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