Terry Eagleton |
23/3/2011, Terry Eagleton, The Times Literary Supplement
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Esta tradução foi postada a propósito do artigo de Laerte Braga, “O Brasil na Corda Bamba”, com o qual não concordamos absolutamente, dada a adolescência IDEOLÓGICA e POLÍTICA do mesmo.
Sobre: DANCHEV, Alex (ed.), 2011, 100 ARTISTS’ MANIFESTOS. From the Futurists to the Stuckists, 496pp. Penguin. Paperback, £12.99, ISBN 978 0 141 19179 9
No mundo das letras polidas contemporâneas, a literatura é inimiga de programas políticos, polêmicas, rancor sectário, até do odor das ortodoxias doutrinárias. É o lar do particular único, da tentativa, do exploratório, de tudo que resiste a ser reduzido a esquemas ou agendas. Esse ponto de vista, vale lembrar, é muito recente. A ideia de que a literatura nada teria a ver com a ortodoxia doutrinária soaria escandalosa a Dante ou Milton. Swift é grande artista, e sempre pleno do mais furioso rancor sectário. Termos como “tentativa” e “exploratório” nada jamais tiveram a ver com as concepções literárias de Samuel Johnson.
Os mesmos termos tampouco têm a ver com as ideias das várias vanguardas do século 20, decididas a demolir precisamente essa concepção de arte. Dos Futuristas e Construtivistas aos Surrealistas e Situacionistas, a arte tornou-se militante, partidarizada e programática. Tinha de ser libertada das bibliotecas e museus e integrada à vida diária. Com o tempo, a distinção entre arte e vida, entre brincadeira e ação programática seria apagada. Já não haveria artistas profissionais. Só cidadãos comuns que vez ou outra escreveriam um poema ou esculpiriam uma escultura. A ordem seria abandonar os pincéis e projetar objetos úteis aos trabalhadores, como fizeram alguns dos Construtivistas russos. Os poetas deveriam ler seus poemas com megafones no chão-de-fábrica, ou escrever seus versos em camisetas de estranhos com os quais cruzassem pela rua. Meteu-se um bigode na Mona Lisa. Um diretor soviético de teatro ocupou um porto inteiro por vários dias, com navios de guerra e trabalhadores, e tomou, para seu elenco, 300 mil cidadãos.
Nos teatros, o público podia ser convocado a votar ao final da apresentação, ou a marchar em massa até o prédio da Prefeitura local. Da agitprop ao design de cartazes, a arte era instrumento a serviço da revolução política. Para alguns “avant-gardistas”, sequer haveria objetos artísticos permanentes, porque estariam condenados a sofrer a indignidade de tornar-se bens de consumo, commodities. Em vez de criar objetos, portanto, dever-se-iam criar gestos, happenings, situações, instalações, intensidades, eventos que se autoconsumiriam no ato de produção. “Para Chopin, a cadeira elétrica!” fulminou o fundador do Estridentismo mexicano. “A Vênus de Milo é exemplo gráfico da decadência”, declara Kasimir Malevich em seu longo Manifesto Suprematista de 1916 (reproduzido em100 Manifestos). O palavrão máximo era “acadêmico”.
Nessa revolução cultural, podem-se distinguir duas amplas correntes. Na banda mais positiva, o vanguardismo procurou alterar as percepções humanas, para adaptá-las à nova era tecnológica. Os vanguardismos tendem a criar raízes nas sociedades que ainda vivam o primeiro fluxo da modernização, quando os aspectos opressivos das novas tecnologias ainda são menos óbvios que os aspectos excitantes. A história parece correr tão depressa que a única imagem do presente é o futuro.
Nada mais típico desses ativistas que a leviana celebração da novidade – uma firme convicção de que raiam novos tempos, uma época absolutamente nova, a humanidade do século 20 estaria às portas de maiores e mais rápidas mudanças do que jamais outra humanidade estivera em tempo algum (nisso, como adiante se veria, acertaram), e o acontecido há dez minutos já é história antiga. Como alguém conseguiria identificar o absolutamente novo simultaneamente para todos é problema lógico que nunca deteve vanguarda alguma.
Esse fetichismo do futuro aparece em praticamente todas as páginas desse 100 Artists’ Manifestos, habilmente selecionados e introduzidos com estilo por Alex Danchev. O Manifesto Futurista de Marinetti de 1909, o qual, como Danchev observa, fundou não só o Futurismo, mas também a ideia do manifesto de artistas, celebra “a beleza da velocidade”. “Um carro de corridas, os canos de escapamento, serpentes de hálito galvânico... é mais belo que a Vitória Alada de Samotrácia”. Outra proclamação futurista incita os confrades a destruir todas as roupas “passadistas” (roupas sem cor, funéreas, decadentes) e a inventar roupas futuristas “trajes ousados, com cores brilhantes e linhas dinâmicas”.
Como o Romantismo, a vanguarda revolucionária visava aos jovens, cheios de desprezo pelos mais velhos que desafiavam experimentalmente. Nos momentos mais efusivos, dos quais houve muitos, aquela vanguarda elevava a adolescência ao status de uma ideologia. Revolucionários que cantam loas ao progresso tecnológico são como bispos que recomendem o adultério.
Esses experimentos culturais parecem não se dar conta de que nenhum sistema social na história jamais foi mais criativo e dinâmico que o capitalismo, e que a crença ingênua nas virtudes da novidade sempre foi a crença básica da própria classe média que aquelas vanguardas pretendiam “agitar”.
É verdade que essa fé estava sendo muito furiosamente atacada no início do século 20; e seria deixada agonizante, sangrando, nos campos de batalha da 1ª Guerra Mundial. Mas ainda assim, tentar usar a crença no progresso tecnológico das classes médias contra o conservadorismo cultural das mesmas classes médias sempre foi tática muito cheia de perigos.
Escandalizar uma burguesia cujo netos viriam a ter de pagar preços astronômicos pelas mesmas obras de arte que escandalizaram seus avós significou mais do que rejeitar uma ou outra convenção. Envolveu ataque e assalto diretos à ideia de homens e mulheres pensados como indivíduos autônomos e com rica vida interior. Aquela interioridade – proustiana – que estava então madura foi dilacerada, esquartejada, por uma arte feita de externalidades, mecanicista e de desconstrução.
Pela primeira vez na história da Estética, a fragmentação e a deslocação sobrepujaram o impulso de unificação. O “Homem Velho” (privado, espiritual, contemplativo) foi trinchado. E o “Novo Homem” (ativo, coletivista, móvel, anônimo) seria montado para substituí-lo. Isso implicou uma terrível campanha machista contra a moralidade, o realismo e o Romantismo, que foram descartados, num mesmo pacote, com os sentimentos femininos.
O Manifesto Futurista condena o feminismo, além de bibliotecas, museus e academias. A vanguarda foi negócio muscular, masculino; seus hinos à luxúria e o culto do desejo à moda-Deleuze excluíram qualquer ser provido de útero. Um Manifesto da Mulher Futurista ordena que “a mulher reencontre a crueldade e a violência que a fazem atacar os derrotados porque são derrotados”. Há fortes doses desse ímpeto sub-Nietzscheano em praticamente todos os manifestos futuristas. Os valores dados como decadentes, da piedade e da compaixão – meras máscaras para a burguesia predatória – deveriam dar lugar a uma espécie de brutalismo dito “ético”.
Na banda mais negativa da revolta vanguardista, com suas complexas relações com o bolchevismo, o trotskismo e (no caso de Marinetti) o fascismo, floresceu um ramo mais negativista, pode-se dizer nihilista, segundo o qual o establishment cultural suportaria ataques contra um ou outro significado; mas seria destruído por um ataque frontal ao próprio significado como significado. De onde se concluiu que a arma revolucionária mais letal seria o absurdo. Num período em que reinava o mais selvagem irracionalismo, que ia das batalhas do Somme à ascensão de Hitler, sãos seriam, só, os perfeitamente lunáticos. A própria razão seria força de opressão. “Louco” passou a ser título de nobiliarquia. “Lógica” seria o resto do qual se teriam de servir os incapazes de criar. Dado que os próprios manifestos tinham propósito compreensível, o que significava que tinham algum significado, eles também tão prestavam. “Manifestos, nunca mais!” clamava um manifesto Dadaísta. “DADA SIGNIFICA NADA”, anunciava outro.
A palavra “Dada” rapidamente se converteu em significante dos significantes, significado flutuante, aplicável a qualquer coisa que alguém aprovasse, “A face de DADA é ampla e sua voz é afinada pelo tom das sereias” declara, informativamente, um militante. Alguns manifestos, como Danchev observa, assumiram feições de poemas modernistas, cheios de sinais tipográficos e obscurantismo salpicado de obscenidades. “Trágico humor é marca de nascimento do Norte”, escreveu Wyndham Lewis, aspirando a nenhum significado, num manifesto publicado em seu jornal Blast.
Mas ridicularizar todo esse ultra-esquerdismo é tão fácil quanto arriscado. Um documento dadaísta exige “refeições diárias à custa do estado para todos os homens e mulheres intelectuais criativos na Praça Potsdamer”, e prossegue, exigindo também “regulação imediata de todas as relações sexuais, segundo as ideias do dadaísmo internacional, com estabelecimento de um centro sexual dadaísta”. Quem descarte a coisa toda como ridícula, estará na mesma posição que o bispo do século 18 que disse que jogara ao fogo As Viagens de Gulliver porque não acreditava numa linha do que lá se lia. Porque a coisa, é claro, foi pensada como autoparódia, e nunca é fácil decidir quando esses incendiários artísticos falam sério ou só trabalham para se autopromover. O ultraje, a extravagância e polêmicas cenografadas ao extremo são elementos do próprio gênero do manifesto que, ele próprio, é um tipo de ficção.
Quando o Manifesto Comunista – protótipo de todos aqueles gritos de fúria – declara que os trabalhadores do mundo nada têm a perder além de suas cadeias, ninguém espera que se tome a declaração como prescrição, como se alguém declarasse que excesso de rapadura faz mal à saúde. Marx e Engels sabiam que os trabalhadores que se levantassem contra os patrões corriam risco maior de perder a vida, que as cadeias. A declaração é peça retórica, e peças retóricas visam a obter um efeito.
Como esses manifestos de artistas, são mais performances, que proposições. São exemplos da arte agressiva, absurdista pela qual advogam. E aquela arte não era, de modo algum, brincadeira de crianças. Entre os artistas associados aos grupos que produziram os manifestos que se leem nessa edição estão Rodchenko, Kandinsky, Mayakovsky, Vertov, Eisenstein, Brecht, Mondrian, Le Corbusier, Max Ernst, André Breton e muitos outros nomes igualmente ilustres. Os Futuristas, os Surrealistas e os demais várias vezes criavam embaraços, se tomados por escrito, mas foram muito bem sucedidos na prática. Se algumas vezes soavam como autistas autorreferentes grosseiros, apalhaçados que ridiculamente se dão importância demais, alguns deles produziram também obras que se listam entre as mais ousadas e imaginativas de seu tempo. Entediantes, nunca foram.
Várias daquelas seitas evaporaram quase tão depressa quanto emergiram; mas o que aproxima muitas delas é o clamor por algo que Mayakovsky chamou de revolução espiritual. Todos eles sabiam que qualquer transformação social que não cortasse até suficientemente fundo – que se limitasse a propor mudança econômica, mas deixasse de lado toda a questão da subjetividade humana – estaria condenada à irrelevância. Foi predição que se provou tragicamente acurada. Mayakovsky suicidou-se em 1930, desencantado com a vida e com a União Soviética.
A arte das vanguardas talvez pareça piada de mau gosto aos olhos de acadêmicos conservadores, mas Joseph Stalin nada viu nela de engraçadinho: viu uma ameaça ao Estado, que tinha de ser destruída. E quando o cetro dos pioneiros culturais do bolchevismo passou aos seus contemporâneos na República de Weimar, os nazistas logo entraram em cena e também ali deram cabo da arte da vanguarda (ou, no mínimo, de grande parte dela).
Em formato reduzido, aquela avant-garde sobreviveu até nossos dias. O livro 100 Artists’ Manifestos começa com Marinetti e Kandinsky e termina com Gilbert and George [filminho ótimo, sobre estes (NTs)].
Poder-se-ia dizer que a vanguarda clássica acabou em 1971, com o fim dos Situacionistas liderados por Guy Debord, beberrão dedicado e estrategista brilhante. Charles de Gaulle foi outro político que via os revolucionários da cultura como piada, até que, sob bandeiras do Situacionismo, eles comandaram parte importante das rebeliões estudantis do final dos anos 1960s. Os slogans surrealistas de Maio-68 são descendentes em linha direta de Mayakovsky e André Breton.
Encontra-se no livro de Alex Danchev também o manifesto dos Stuckistas britânicos, no qual se encontra a sugestão subversiva de que “Artistas que não pintam não são artistas”. Hoje, rejeitar os pincéis é tão convencional como o pentassílabo iâmbico, e tornou-se muito mais fácil, posto que, para começar, são raros os artistas celebrados que algum dia pegaram algum pincel.
A cultura pós-moderna é, dentre outras coisas, piada doentia narrada à custa da tradição, em etapas que se registram nesse livro. A arte foi realmente integrada à vida de todos os dias; mas aconteceu sob a forma de publicidade, relações públicas, mídia, “showmícios”, o que está a léguas de distância do que os Surrealistas e Futuristas tinham em mente.
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