quarta-feira, 1 de junho de 2011

O retorno de Bandar

22/4/2011, John Hannah, Foreign Policy
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu (por expressa ordem do Gato Filósofo)
John Hannah

Diz Nosso Especialista n. 1 (NE-1):
“O artigo é uma merda: põe os EUA no centro do mundo; só considera interesses dos EUA; trabalha a favor de mais guerra; e põe reis e embaixadores e presidentes como protagonistas da história”.

Diz o Gato Filósofo, sultão da Vila Vudu:
“Certíssimo. Mas o artigo é crônica exemplar da narrativa que fantasia que os EUA seriam o centro do mundo; e que reis e embaixadores – e políticos, e ‘autoridades’ e ‘especialistas’ ‘ocidentais’ e respectivas ‘declarações’ – seriam protagonistas da história. Isso não é o máximo que nós temos de entender: é o mínimo.
Pela Palestina Livre! Traduzam já!”.
__________________________________________________ 


Príncipe Bandar bin Sultan
Como Simon Henderson comentou recentemente, “Bandar está de volta. Deslocado do centro do palco há alguns anos, por alguma combinação de doença e intriga palaciana, o legendário ex-embaixador da Arábia Saudita em Washington príncipe Bandar bin Sultan volta a ser presença destacada no cenário mundial. O governo Obama muito bem faria se prestasse atenção ao retorno de Bandar. Operando em harmonia com os EUA, os excepcionais talentos de Bandar sem dúvida seriam considerável reforço no trabalho de encaminhar as revoltas de 2011 no Oriente Médio em direção que sirva aos interesses dos EUA. Mas, aplicados a outros fins, os mesmos talentos podem levar a resultados que Washington talvez venha a descobrir que são, digamos, menos agradáveis. 

É fácil adivinhar o motivo pelo qual Bandar foi chamado com urgência de volta ao serviço. Se muitos, no ocidente, viram promessa de democracia e liberdade no torvelinho político que agita terras árabes, os sauditas só viram desastre. Os sauditas veem tudo por um único prisma: a luta existencial em que estão engajados contra um Irã ameaçador e que, se não for vencida, levará ao colapso toda a ordem existente no Oriente Médio, abalará a Casa de Saud e dará ao Irã controle e influência sobre os locais sagrados do Islã em Meca e Medina. O Reino só tem um parâmetro para avaliar os atuais desenvolvimentos: somam ou abatem no saldo líquido das contas da teocracia persa no Golfo, que busca afirmar a própria hegemonia em toda a região. 

Por esse parâmetro, o resultado não tem sido bom. O regime de Hosni Mubarak – há muito tempo aliado dos sauditas; pilar da estabilidade regional; feroz opositor dos mulás – foi-se. O Iêmen, na fronteira sul do reino, oscila à beira da anarquia. Mais grave que isso, a poucas milhas da costa saudita, no minúsculo Bahrain – virtual protetorado do reino e ponte para sua província sul, rica em petróleo –, a monarquia sunita al-Khalifa foi empurrada ao limite do suportável pelos manifestantes sunitas que, estimulados pelo Irã, acenaram ameaçadoramente com a ideia de mudança de regime. Desafiados abertamente a defender uma de suas mais visíveis linhas vermelhas, os sauditas responderam conforme o esperado, com intervenção militar em larga escala para conter, brutalmente, a escalada da crise.  

Em Riad, a situação foi exacerbada pela crescente queda na confiança que tivessem no poder dos EUA. Contra todos os conselhos dos sauditas, o governo Obama trabalhou ativamente na engenharia da saída de Mubarak. No Bahrain, altos funcionários do governo dos EUA pressionaram publicamente a família reinante a fazer concessões aos manifestantes – literalmente horas antes de os tanques sauditas porem-se em marcha. Mais recentemente, movimento tardio e hesitante da força militar dos EUA fracassou na tentativa de derrubar o coronel Gaddafi da Líbia, homem que, há poucos anos, contratou o assassinato do rei saudita Abdullah. Em flagrante contraste com o muito público esforço de Washington para afastar seu antigo aliado egípcio – “de ontem”, para citar Robert Gibbs –, a equipe Obama tem mantido embaraçador silêncio ante os persistentes protestos e a carnificina em andamento na sempre antiamericana Síria, regime que orgulhosamente se expõe como principal aliado do Irã no mundo árabe. 

Em situação em que a região parece estar escapando de qualquer controle, e seu mais importante parceiro dá sinais de oscilar entre a fraqueza, a incompetência e o engenho mais vacilante, a Casa de Saud pôs mãos à massa, convocou o Time A – cada um escolha a metáfora que preferir. Todas as metáforas encaminham na direção do príncipe Bandar – um dos estadistas mais criativos, dinâmicos e agressivos surgidos nos últimos 30 anos –, afinal resgatado do purgatório diplomático onde permaneceu até recentemente e convocado para ajudar a enfrentar crise que o reino saudita considera sem precedentes. Make no mistake – como costuma dizer o presidente Obama –, os sauditas sentem-se hoje plenamente em guerra contra o Irã, embora por outros meios. Do ponto de vista de Riad, disputa-se hoje nada menos que o futuro do Oriente Médio árabe e a sobrevivência da Casa de Saud. E essa força da natureza que atende pelo nome de Bandar bin Sultan já foi bem visivelmente plantada na vanguarda do plano de combate dos sauditas.  

Já perdi a conta dos muitos que, há muito tempo, perguntam “O que aconteceu com Bandar?” Agora, de repente, Bandar está em todos os lugares. No início do mês, o secretário de Defesa Gates visitou Riad para ver o rei Abdullah. Lá estava Bandar. Dias depois, o conselheiro de Segurança Nacional Tom Donilon tomou o mesmo rumo, levando mensagem do presidente Obama para Abdullah. Outra vez, lá estava Bandar em todas as fotos. Mais interessante – e sem dúvida muito preocupante –, no final de março, às vésperas da intervenção saudita no Bahrain, Bandar foi mandado ao Paquistão, à China e à Índia, em busca de apoio para a abordagem linha dura que o reino adotaria imediatamente contra os levantes populares na região. 

Os formidáveis talentos de Bandar outra vez ativados a serviço de uma Arábia Saudita que se sente cada dia mais encurralada e desconfiada da eficácia da proteção dos EUA são certeza de dificuldades – cuja gravidade aumenta, quando Paquistão e China e assemelhados são acrescentados à mistura. Ninguém esqueça que, no final da década dos 1980s, foi Bandar quem coordenou a entrega de mísseis chineses de médio alcance à Arábia Saudita – movimento que pegou Washington de surpresa e que só por um triz não gerou grave crise com Israel. Hoje, o perigo é, claro, que os sauditas sintam-se suficientemente ameaçados e sozinhos a ponto de abraçar outros movimentos desse mesmo tipo, de autoajuda. 

E se decidirem modernizar seu arsenal de mísseis? Ainda pior: e se o reino decidir comprar armas atômicas ou, no mínimo, se convidar o Paquistão a armazenar parte de seu arsenal nuclear no reino? Analistas especulam há muito tempo sobre se o dinheiro saudita não estaria financiando o programa nuclear do Paquistão, em troca da promessa de que, sendo necessário, os frutos daquele programa seriam postos à disposição de Riad. Com o Oriente Médio em convulsão e o Irã cada dia mais próximo de adquirir capacidade para construir armas nucleares, teria chegado a hora? 

Mesmo que não se realizem esses cenários extremos, há inúmeras outras possibilidades também preocupantes. Foi noticiado que, na viagem ao Paquistão, Bandar discutiu a possibilidade de o Paquistão, em determinadas circunstâncias, enviar milhares de soldados adicionais para o Bahrain e Arábia Saudita, com a explícita missão de quebrar crânios xiitas. O Irã condenou o noticiário, o que fez aumentar as tensões e o risco de que a situação degenere em guerra entre sunitas e xiitas. Além disso, ninguém pode subestimar o perigo de, encurralado contra a parede, o reino saudita inventar de outra vez acender o pavio da velha rede Jihadista e apontá-la contra o Irã xiita – deixando para nós, o resto do mundo, o problema de enfrentar as consequências não desejadas da loucura desses bem financiados takfiristas [1]. 

Para minimizar o risco de que algum desses perigos venha a confirmar-se, o governo Obama bem faz em cuidar de reparar as trincas que surgiram na confiança de Riad. As visitas de Gates e Donilon ao reino visaram claramente esse objetivo e, segundo a maioria dos relatos, foram bem sucedidas e controlaram a hemorragia que ameaçava matar o relacionamento. Mas é esforço que terá de ser sustentado. 

O governo também daria sinal de inteligência se restabelecesse forte linha de comunicação com Bandar, agora que ele volta a ter papel importante na política saudita. Bandar trabalhando sem qualquer atenção aos interesses dos EUA é motivo para preocupação. Mas Bandar operando em parceria com Washington contra o Irã como inimigo comum é importante ativo estratégico. Apoiado nos recursos e no prestígio dos sauditas, a engenhosidade de Bandar e sua tendência a favor de ações marcantes poderia ser excelentemente usada em toda a região, de modo a reforçar as políticas e a defesa dos interesses dos EUA: mediante ações econômicas e políticas que enfraqueçam os mulás iranianos; para minar o regime de Assad; em apoio a uma transição bem-sucedida no Egito; viabilizando a saída de Gaddafi; reintegrando o Iraque no mundo árabe; e encorajando uma solução negociada no Iêmen. Mesmo no Bahrain, se alguém na hierarquia saudita pode algum dia entender que é necessário buscar solução estável, que não se esgote na repressão, esse alguém, muito provavelmente, é Bandar. 

Em abril de 2002, o então príncipe coroado Abdullah da Arábia Saudita chegou ao Texas, para encontro com o presidente Bush. Era momento tenso das relações EUA-sauditas. Dizia-se que o príncipe coroado estava profundamente incomodado com a crescente violência entre israelenses e palestinos, e irritado por o presidente Bush não ter acolhido sua sugestão de que empreendesse ação agressiva para por fim àqueles conflitos. O que se dizia é que a passividade dos EUA ante a “agressão” israelense estaria fortalecendo o Irã e tornando mais insustentável, dia a dia, a aliança entre sauditas e Washington. 

Um dia antes da reunião, o New York Times publicou matéria de primeira página, sob o título “Sauditas alertam Bush sobre política israelense”. Na matéria, alto funcionário do governo saudita, não identificado, ameaçava sem meias palavras:

“Erra quem suponha que nosso povo não fará o que tiver de fazer para sobreviver. Se isso implicar ir mais à direita que bin Laden, assim será; mais à esquerda que Gaddafi, assim será; voar para Bagdá e abraçar Saddam como irmão, assim será. Nossa parte do mundo é muito solitária, e já não temos como defender, ante nosso povo, nosso relacionamento [com os EUA].”

Todos imediatamente identificaram aí a fala do embaixador saudita, príncipe Bandar. Bombástico? Sim. De enfurecer? Sem dúvida. Mas não manifestava também pelo menos parte da realidade à Hobbes que a política exterior dos EUA tinha de enfrentar, por menos agradável que fosse? Infelizmente, sim. Enquanto essa realidade não mudar, os EUA devem trabalhar o mais que puderem para impedir que a Arábia Saudita, ou o príncipe Bandar, sofram as dores da solidão. Testar a proposição do príncipe em 2002 é risco ao qual ninguém deve querer expor-se.


Nota de tradução
[1] Muçulmanos que praticam takfiri – acusar outros muçulmanos de apostasia. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.