sábado, 31 de maio de 2014

Pepe Escobar: “Bravo antiquado (excepcionalista) mundo”

30/5/2014, [*] Pepe Escobar, RT - Moscou
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


“Nada a perguntar. Não, não, nunca explicar coisa alguma.
E removeram os ossos e a pele de Harry para o necrotério, na Ala Oeste”
[King Diamond, em “To The Morgue”/Para o necrotério]


“Acrescente-se o risco real de guerra nuclear, e a questão se impõe: por que nós, cidadãos do mundo, toleramos os EUA?”.


Barack "excepcional" Obama discursando para cadetes de West Point em 28/5/2014
“Acredito com cada fibra do meu ser no excepcionalismo dos EUA” [1]. Pois foi isso. Saído diretamente da boca do leão, quer dizer, do presidente Barack Obama dos EUA.

O resto são detalhes: detalhes mortíferos, como os EUA ainda plantados “no núcleo” da visão de mundo excepcionalista; o Pentágono a reservar só para ele o “poder de lançar ataques unilaterais sempre que interesses dos EUA sejam diretamente ameaçados”; oito ou nove guerras bem longe de casa já arquitetadas para o futuro imediato e sem final à vista; e a mais espantosa das ideias, ali claramente admitida: o “fulcro” da política exterior dos EUA de agora em diante será limitar/controlar [orig. curb] a “agressão” russa e chinesa!

Quer dizer que correr atrás dos restos da Al-Qaeda, como se podia prever e previu-se, sempre foi brincadeira preparatória de jardim-de-infância; agora é negócio de gente grande, o dragão e o urso.

Quer dizer, mesmo, é que Obama continua a ser refém incapaz e impotente da lógica da “guerra ao terror” do governo de Dick Cheney, sempre a enfatizar a “capacidade dos terroristas para causar dano”. Mas agora o modus operandi foi suavizado: podem chamar de doutrina do “Removam-o-Cadáver-para-o-Necrotério [2] – Sem alarde”.

A doutrina do “Removam-o-Cadáver-para-o-Necrotério – Sem alarde” será aplicada ao renovado “apoio” para a “moderada” oposição síria, que continuará a arrastar para o fundo do poço a Jordânia, o Líbano, a Turquia e o Iraque. Leslie Gelb, ex-presidente do ultra-pró-establishment Conselho de Relações Exteriores, sugere que o governo Obama pode ter finalmente compreendido que a verdadeira luta é contra os jihadis do tipo Frente al-Nusra e Estado Islâmico do Iraque e Levante [orig. Islamic State of Iraq and the Levant (ISIL)], não contra Bashar Assad. Mas... ainda não está provado que o governo Obama tenha compreendido coisa alguma.

Enquanto isso, a doutrina do “Removam-o-Cadáver-para-o-Necrotério – Sem alarde” já está em ação nesse instante, em Donetsk, com os mudadores de regime em Kiev – totalmente apoiados por Washington – negando, à moda do Pentágono, que haja sequer um civil morto na operação “antiterroristas” em andamento. Civis de Donetsk são os novos alvos em voga, substituindo os noivos e convidados de casamentos pashtuns em áreas tribais paquistanesas.

É a doutrina do “Removam-o-Cadáver-para-o-Necrotério – Sem alarde”

Obama quer que o Congresso aprove um novo “Fundo de Parcerias Contra-Terrorismo” de $5 bilhões, cuja tradução é “Removam-o-Cadáver-para-o-Necrotério – Sem alarde”, com chuva de dinheiro dos contribuintes, aplicada ao Iêmen, Somália, Líbia, Mali e às mais variadas latitudes não especificadas a serem saqueadas e destruídas pelo Comando [dos EUA] na África, AFRICOM.

Vladimir Putin, Rússia ; Nursultan Nazarbayev, Casaquistão; Alexander Lukashenko, Bielorússia reunidos em Astana para o Supremo Conselho Econômico Eurasiano em Astana 
Obama quer “mobilizar aliados e parceiros para empreenderem ação coletiva”, tipo ressurreição da era da “coalizão de vontades” que foi marca registrada do regime de Dick Cheney. Ferramentas de ação “ampliadas” podem – e a palavra de trabalho é “podem” – incluir diplomacia e desenvolvimento. Mas se trata, sim, de fato, só de “sanções e isolamento”, como se aplicaram ao Irã, à Síria e, agora, à Rússia.

Haverá também “apelos à lei internacional; e, se justa, necessária e efetiva, ação militar multilateral”. Tradução: a “lei internacional” será descaradamente atropelada e os EUA zombarão dela, como em casos do besteirol sobre “responsabilidade de proteger” [orig. “responsibility to protect” (R2P)]; e quando tudo falhar, uma boa velha e “justa” guerra à moda da tal “coalizão de vontades” volta à pauta.

Todo o planeta deve engolir tudo isso sem estrilar, porque, afinal, o governo Obama será “transparente sobre as bases de nossas ações e o modo como as executaremos, sejam ataques com drones ou treinamento de parceiros”.  

Claro: que ninguém jamais esqueça que “os EUA devem liderar pelo exemplo” e não dão sequer a mínima bola a coisa alguma que não seja “levar a paz e a prosperidade à volta do globo”. Quer dizer: calem o bico, todo mundo aí, nada de perguntas sobre a imundície secreta da guerra de drones da CIA no Paquistão, ou sobre “danos colaterais” em Donetsk.

Pânico em Bilderberg

Imediatamente depois de Obama anunciar seu novo pivoteamento comandado pelo Pentágono em torno dos próprios calcanhares, os Mestres do Universo reúnem-se em conclave anual e sempre secretíssima conferência de Bilderberg no Marriott em Copenhagen. Bilderberg é puro excepcionalismo atlanticista em ação. Sempre uma gozosa experimentação em matéria de preliminares, por ali.

E a lista de convidados de Bilderberg, só ela, já é delícias sós – de Breedlove, Lagarde e Rasmussen-Fog-da-Guerra-da-OTAN, a Petraeus, Kissinger e Zoellick, o livro inteiro do “Quem é Quem” da banqueiragem ocidental, os suspeitos de sempre, no campo “jornalístico”, de The Economist a Financial Times, Eric Schmidt da Google, O Princípe das Trevas, Richard Perle, e também – o que é fascinante! – pela primeira vez, um alto funcionário do governo chinês.

Liu He
O homem é Liu He – vice-diretor da Comissão de Desenvolvimento Nacional e Reforma e a verdadeira eminência parda por trás da complexa rede pequinesa de comissões e políticos encarregados de implementar ampla, ambiciosa, reforma econômica. Liu He terá sido convidado para Bilderberg como operação de sedução? Ou Pequim conseguiu infiltrar Liu He, graças a seus vastos, vastíssimos, contatos atlanticistas?

Seja como for, fato é que os “Mestres do Universo” estão em pânico. Há dois principais temas interconectados a discutir em Copenhagen, e nos dois a figura central é o presidente Vladimir Putin: o confronto entre Rússia e OTAN na Ucrânia; e a avançada dos BRICS para construir uma nova ordem mundial multipolar.

Bilderberg acontece imediatamente depois do Fórum de São Petersburgo, que consolidou a aliança Rússia-China; e exatamente quando a União Econômica Eurasiana acaba de ser lançada oficialmente em Astana. A marcha inevitável rumo a um sistema multipolar faz avançar o progressivo ultrapassamento do dólar norte-americano e, consequentemente, enfraquece o eixo OTAN/atlanticistas. A lista de convidados para Bilderberg é negócio, eminentemente, da OTAN.
Marriott Hotel em Copenhague - local da Conferência de Bilderberg

Quer dizer: imaginem várias reuniões para discutir, por exemplo, o fato de que o Banco da China e o VTB, segundo maior banco da Rússia, fazem e recebem agora os pagamentos de seus negócios em yuan ou em rublos; e estabeleceram uma comissão bilateral de investimentos. Para nem falar das reuniões para discutir o modo como os BRICS e as 115 nações do Movimento dos Não Alinhados (MNA) estão desenvolvendo parcerias estratégicas NADA EXCEPCIONALISTAS, que incluem, crucialmente, negócios feitos nas respectivas moedas nacionais, sem dólares norte-americanos.

E há também a revolta das massas contra a União Europeia cristalizada nas eleições do domingo passado para o Parlamento Europeu. Com muitas nuances de cinza, é revolta anti-excepcionalismos. Ameaça diretamente uma nova frente de ataque à moda Bilderberg: os cidadãos europeus opõem-se ampla e declaradamente à Parceria Trans-Atlântica de Comércio e Investimentos [orig. Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP)] negociada sempre secretamente.

Não é acaso que o principal negociador dos EUA das duas parcerias, na TTIP e na Parceria Trans-Pacífico (orig. Trans-Pacific Partnership (TPP)] – cerebradas para “isolar” a China na Ásia – seja Michael Froman, representante comercial de Obama, típico excepcionalista de Wall Street.

Entrementes, em Xangrilá...

Ah! Há também o Diálogo Shangri-La, em Cingapura, que descrevi ano passado como os Spielbergs & Clooneys do universo militar, todos numa única sala de Guerra nas Estrelas (de fato, é o salão de baile do Shangri-La Hotel). É excepcionalismo marinado em temperos asiáticos.

E mais uma vez, a China atrai todas as atenções, mandando para lá a formidável Fu Ying, (vídeo, em inglês, no fim do parágrafo) também conhecida como “A Dama de Ferro”, atualmente presidente da Comissão de Relações Exteriores do Congresso Nacional do Povo Chinês. É negociadora duríssima, do tipo que não carrega prisioneiros. Será fascinante vê-la em ação, em luta contra, cara a cara, o convidado de honra desse ano em Xangrilá, o primeiro-ministro japonês, militarista e protégé dos EUA, Shinzo Abe.


Tradução: seja em Copenhagen seja em Cingapura, Pequim ganhou assento às mais privilegiadas mesas da ordem unipolar excepcionalista. Autoconfiante, a China simplesmente não se interessa por degustar o banquete dessa festa feia: quer estragar aquele banquete, pouco a pouco, de dentro para fora. A massa excepcionalista é suficientemente esperta para já ter visto que a crescente aliança Rússia-China e a avançada no rumo de uma ordem alternativa estão lentamente fazendo derreter seu sonho de bravo antiquado (excepcionalista) mundo.

Não surpreende que estejam com muito muito medo.



Notas dos tradutores

[1] 28/5/2014: Na Academia de West Point, o presidente Obama diz:


  • (...) acredito no excepcionalismo dos EUA com cada fibra do meu ser – mas, na sequência, no mesmo discurso, repete 16 vezes a palavra “parceiro” ou “parceria” [risos, risos].
  • É prova provada de política externa contraditória, sem rumo.
  • Obama trocou a expressão “ação coletiva” pela expressão “ação multilateral” várias vezes.
  • Sobre a evidência clara de que OTAN e ONU dominarão toda a política externa dos EUA, Obama disse: Essa é a liderança dos EUA, a força dos EUA. [risos, risos]

[2] Orig. To The Morgue, King Diamond (ouve-se a seguir):


[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009. 

O gás de xisto vai de mal a pior

29/5/2014, [*] Nick CunninghamTestosterone PIT
Traduzido por mberublue


"Fraccking" - fraturação da rocha xistosa. Processo de extração
O setor de extração de gás/petróleo do xisto dos Estados Unidos pode ser bem menos forte do que muita gente pensa. Em análise mais recente, Bloomberg News descobriu um elevado nível de endividamento das indústrias do setor, com muitas companhias se endividando mais e mais, desapontadas com suas receitas.

Nos últimos quatro anos, relata a pesquisa, quase dobrou a dívida contraída pelas empresas de petróleo e gás de xisto. Enquanto as companhias perfuradoras necessitaram dobrar os empréstimos para se expandir, suas receitas nesses quatro anos não seguiram o mesmo ritmo, crescendo meros 5,6%.

O caso é que embora muitos poços de petróleo e gás de xisto ofereçam uma produção inicial espetacular, esta cai verticalmente após o primeiro ou segundo ano. Se as empresas não conseguirem pagar suas dívidas nesse pico inicial, acabam com muito mais dificuldades nos anos seguintes do que anteciparam. Elas caem em uma espiral descendente em que uma grande parte de suas receitas tem que ir para o pagamento de dívidas.

Das 61 companhias pesquisadas, a Bloomberg concluiu que mais ou menos uma dúzia está gastando 10 % de suas receitas apenas para pagar os juros das dívidas contraídas.

Diagrama de prospecção de gás de xisto
O que significa haver tantas companhias de perfuração de gás/petróleo de xisto lutando para obter algum lucro? Quer dizer que o entusiasmo com o qual tantos investidores colocaram dinheiro nas companhias do xisto pode ter chegado ao fim. A indústria está abalada.

As empresas em pior situação – aquelas que estão muito endividadas – sem um portfólio de produção em crescimento, podem estar a caminho da falência. Conforme vão caindo os elos mais fracos, consolidam-se e permanecem em campo apenas os produtores mais fortes e organizados.

É normal que qualquer indústria sofra um abalo, quando diminui o ímpeto inicial de crescimento. Ocorre que, ao contrário da indústria de tecnologia, por exemplo, na indústria do gás/petróleo de xisto, a sorte econômica das companhias ramifica-se para além delas, atingindo seus empregados e investidores.

Se as companhias perfuradoras começam a fracassar, o crescimento da produção de óleo e gás natural pode diminuir drasticamente ou mesmo parar. A administração de informações energéticas projeta em seu mais recente Panorama Anual de Energia que a produção de gás natural nos Estados Unidos crescerá a um percentual de 1,6% ao ano até meados de 2040, o que quer dizer que a produção deverá se expandir para admiráveis 55%.

Os dados podem estar sendo oferecidos de forma muito otimista, levando-se em consideração que as empresas neste mesmo instante estão lutando para ter rentabilidade na venda do xisto. Dito de outra forma, nos preços atuais, a produção pode não ser sustentável. Para que o crescimento continue no mesmo nível, o preço tem que subir.

Movimentação do solo superficial causada por "fracking"
Seja o crescimento mais lento, sejam os preços mais elevados, de qualquer maneira, ambos os cenários alterariam de forma dura as expectativas sobre a imagem vendida pelos Estados Unidos quanto à sua matriz energética. Como exemplo, se para manter o crescimento, o preço do gás necessitar de uma majoração, isso diminuiria muito a oportunidade da exportação de grandes volumes de gás natural liquefeito (GNL), porque as companhias americanas enfrentariam difícil competição para a venda do gás americano que teria que ser liquefeito para ser depois vendido a preço mais elevado para os consumidores ávidos no leste asiático.

Como resultado, as companhias que investem dinheiro na construção de terminais de exportação de gás natural liquefeito, que custam bilhões de dólares, poderia começar a achar esse gasto um tanto exagerado.

Um abalo na indústria do xisto teria consequências também no setor de energia elétrica, dado que o estancamento da produção de gás de xisto seria como uma espécie de bênção para a energia renovável. Esperava-se que o gás natural seria usado em grande escala para a geração de energia elétrica, mantendo os preços da eletricidade estáveis, mesmo porque a produção de gás estaria sempre em ascensão. Como essas expectativas parecem erradas, abre-se espaço para outras formas de geração de energia elétrica. Já que carvão e a energia nuclear são cada vez menos competitivos no século 21, criou-se uma janela de oportunidades enorme para a energia renovável.

Poluição dos aquíferos causada pela extração de gá de xisto por "fracking"
Em relação ao petróleo, uma produção fraca do xisto quer dizer que os Estados Unidos continuarão a contar com a importação de petróleo no lugar da produção nacional. Mesmo que isso não queira dizer grande coisa, o fato é que a indústria americana de petróleo não pode mais vir com a conversa fiada de “independência energética” o que quer dizer que o Congresso terá que se confrontar com o fato de que os EUA precisam encontrar alternativas ao petróleo no longo prazo.

Caso a indústria de gás/petróleo do xisto começar a vacilar, começará também a mudar esse ópio para muitos problemas energéticos dos Estados Unidos que se chama revolução do xisto.

Em tempo: Aqui está o porquê de ser uma ilusão, conversa fiada, vento quente, o papo de que a exportação de gás natural liquefeito dos EUA “vai tirar a Europa das Garras da Rússia” e ganhar muito dinheiro abastecendo o Japão sedento de energia. Não passa de uma isca suculenta no jogo das grandes negociatas.


[*] Nick Cunningham é um escritor que vive em Washington DC - escreve sobre assuntos que envolvem desde energia até questões ambientais. 
Pode ser encontrado no twitter: @nickcunningham1 

Rússia e China: Aliança estratégica, eficaz, discreta, sem alarido...

29/5/2014, Dmitry MININ, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

— E isso significará que Moscou e Pequim juntam forças para lançar poderosa contraofensiva no Ocidente?
— Não, de modo algum. Nem Rússia nem China precisam disso. Esses países precisam, isso sim, de concorrência leal, sem manipulação, sem duplifalar e hipocrisia e sem atividades clandestinas de subversão e terrorismo.

Maio - 2014: China e Rússia selam acordo estratégico nas áreas de comércio, energia, infraestrutura, tecnologia e de segurança.
A visita do presidente Vladimir Putin da Rússia a Xangai nos dias 20-21 de maio/2014, atraiu a atenção do mundo inteiro, mas, por várias razões, a significação dessa visita ainda não foi plenamente declarada. É como se o ocidente não conseguisse abrir mão da ilusão de uma sua supremacia, e preferisse não ver a alternativa que se vai configurando e emergindo, no formato de uma aliança russo-chinesa. Além disso, diferente de práticas passadas, Moscou e Pequim não querem alertar o oponente com declarações grandiloqüentes, mas nem sempre claras ou específicas, e têm preferido trabalhar metodicamente e em silêncio, construindo suas relações bilaterais com conteúdo abrangente e exequível.

A maioria dos relatos jornalísticos sobre a visita de Putin − por isso, se centraram nos acordos de gás – e os componentes militares, políticos e estratégicos de seus encontros em Xangai estão passando praticamente sem um registro sequer pelos especialistas. Os críticos reduziram tudo ao fornecimento de matérias primas russas e à “penetração chinesa” no mercado russo... Mas o verdadeiro sentido dessa visita é muito mais profundo, e talvez só possa ser devidamente apreciado, em toda sua significação, por historiadores, no futuro.

Se se examina de perto a “Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China sobre um novo estágio de parceria em ampla escala e relações estratégicas” (orig. ing. Joint Statement of the Russian Federation and the People’s Republic of China on a new stage in full-scale partnership and strategic relations [1]) assinado pelos chefes de estado, não é difícil ver que o documento contém vários elementos similares a acordo que crie uma aliança militar e política, mas sem implementação final por lei.

Afinal, se o procedimento de implementação que talvez venha a ser necessário algum dia pode ser feito em bem pouco tempo, o mais difícil e mais demorado é definir os princípios em torno dos quais os signatários estão de acordo. Mas sim há, pronto, uma espécie de acordo “de reserva”, a ser desenvolvido, se preciso.

Oleogasoduto Russia-China de US$ 400 bilhões (Acordo Santo Graal)
(clique na imagem para aumentar)
Rússia e China chamaram a coisa de “um novo tipo” de relações entre estados, enfatizando que

(...) o resultado de uma parceria ampla e igualitária, de confiança e cooperação estratégica em nível muito mais alto será fator chave para preservar e garantir os interesses vitais dos dois países no século XXI, e para criar uma ordem mundial justa, harmoniosa e segura.

Trata-se disso. Isso, precisamente, terá de ser levado em conta por todos, em todo o planeta.

A Declaração Conjunta delineia a filosofia geral da atitude dos dois países em relação aos problemas globais do nosso tempo, chamando sempre a atenção para a natureza fundamentalmente firme, profunda e orgânica – nunca oportunista – da nova parceria. A Declaração Conjunta declara, por exemplo, que

(...) os dois países continuarão a garantir um ao outro firme apoio em questões relacionadas a interesses-núcleo, como soberania, integridade territorial e segurança. Os dois países opor-se-ão a qualquer tentativa por quaisquer métodos de intervenção em assuntos internos, e apoiarão total adesão às provisões fundamentais da lei internacional consolidada na Carta das Nações Unidas; respeito incondicional aos direitos dos parceiros a escolher independentemente a própria via de desenvolvimento; e respeito incondicional ao direito de defender os próprios valores culturais, históricos, éticos e morais.

Nada além de um modelo liberal tristemente mediano. Mas muito distante do “modelo” que tem sido universalmente imposto pelo Ocidente. Os dois países destacam a necessidade de

(...) rejeitar a linguagem das sanções unilaterais, ou a organização, ajuda, apoio, financiamento ou encorajamento de atividades que visem a mudar o sistema constitucional de qualquer outro país, ou de arrastar ou empurrar qualquer outro país para qualquer tipo de bloco unilateral ou união.

Mapa dos países sancionados unilateralmente pelos EUA
Em outras palavras, é a rejeição categórica de incontáveis “revoluções coloridas” orquestradas por todo o planeta pelo Ocidente; e da expansão de tradicionais blocos de estilo militar e político, como a OTAN. As relações desse “novo tipo” escolhido por Moscou e Pequim são também convenientes, porque não deixam aos EUA nenhum espaço ou terreno para justificar qualquer tentativa para expandir o bloco.

Mas, no processo, China e Rússia admitem a expansão de sua própria “proto-união”, mediante a inclusão de mais uma das grandes potências da política mundial – a Índia. Consideram a interação dessas três potências como

(...) importante fator para garantir segurança e estabilidade tanto na região como no mundo. Rússia e China continuarão seus esforços para fortalecer o diálogo estratégico trilateral para aumentar a confiança mútua, desenvolver posições comuns sobre questões regionais e globais importantes, e promover cooperação prática mutuamente benéfica.

Narendra Modi
Deve-se lembrar que o recém empossado novo primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, a julgar por suas declarações, está pronto para trabalhar desse modo.

Permanece a necessidade de reformar a arquitetura financeira e econômica internacional, de realinhá-la às necessidades da economia real, e de aumentar a representação e o direito de voto de mercados emergentes e países em desenvolvimento no sistema da governança econômica global, para restaurar a confiança no sistema.

Deve-se observar que Rússia e China consideram o G-20 como o principal fórum de cooperação econômica internacional, não o notório “G7”, e empenharão esforços ativos para fortalecer a união e aumentar a efetividade das atividades do G-20. Celebrações pelo “ocidente” depois de a Rússia ter sido expulsa do “G8” foram pois precipitadas.

Rússia e China visam a transformar também outro grupo, o dos países BRICS,

(...) num mecanismo para cooperação e coordenação com ação em ampla gama de questões financeiras, econômicas e políticas globais, incluindo o estabelecimento de parceria econômica mais próxima, a necessidade de criar-se brevemente um Banco de Desenvolvimento dos BRICS, e a constituição de uma cesta de moedas de reserva para os negócios internacionais.

Nova Rota da Seda (em pontilhado)
Foram firmados importantes acordos também para a criação de um corredor de transporte para a Rota da Seda, cuja criação o ocidente também muito desejava, por acreditar que seria uma alternativa à rota de trânsito eurasiana pela Rússia, e uma espécie de coluna de contenção nas relações russo-chinesas. Esse projeto, que preocupou a Rússia durante muito tempo, revela-se hoje como item importante e benéfico na cooperação russo-chinesa. Moscou já declarou que

(...) considera importante a iniciativa da China, para o desenvolvimento do “Cinturão Econômico Rota da Seda”; e aprecia a disposição da China para tomar em consideração os interesses da Rússia, no curso do desenvolvimento e da realização desse projeto. Os dois países continuarão a procurar meios possíveis para unir o projeto do “Cinturão Econômico Rota da Seda” e a União Econômica Eurasiana que está sendo criada.

Implica que a nova Rota da Seda não servirá aos interesses geopolíticos do ocidente. Em vez disso, responderá às demandas urgentes de China e Rússia, inclusive em termos da presença estratégica de ambos os países em regiões adjacentes à própria Rota da Seda. Mediante esforços conjuntos, Moscou e Pequim são perfeitamente competentes para tirar a área das mãos do ocidente – o que configura mais uma gigantesca derrota para Washington.

A participação de Putin ao lado do líder chinês Xi Jinping na abertura dos exercícios navais conjuntos na Base Naval Woosung acrescentou mais um tom simbólico à visita de Putin a Xangai. Vale recordar que reunião semelhante aconteceu no início do que viria a ser a Entente Franco-Russa, que foi marcada pela chegada do esquadrão francês a Kronstadt.

Vladimir Putin e Xi Jinping na Base Naval Woosung  29/5/2014
Os países também decidiram realizar exercícios conjuntos para comemorar o 70º aniversário da vitória contra o fascismo alemão e o militarismo japonês nos teatros europeus e asiáticos da IIª Guerra Mundial, além de continuar em sua “oposição decidida contra tentativas de falsear a história e minar a ordem do mundo do pós-guerra”. Essa é questão considerada de alto significado estratégico, além do alto significado histórico.

De fato, Moscou e Pequim, em 2014, estão reconhecendo reciprocamente o papel decisivo de ambas as nações na vitória contra a Alemanha, pelo lado russo; e na vitória contra o Japão, pelo lado chinês. Afinal o ocidente sempre se empenha em reduzir, ou até apagar o papel que Rússia e China desempenharam naquela guerra mundial. Os EUA impuseram à força, a todo o planeta, a ideia de a contribuição dos EUA na vitória na IIª Guerra Mundial teria sido decisiva, se não na Europa, pelo menos na Ásia.

Mas hoje se sabe que as forças terrestres do Japão foram dizimadas principalmente na China, e que a Wehrmacht foi dizimada no Front Oriental. O que os norte-americanos fizeram foi, quase exclusivamente, dizimar populações civis nas Ilhas do Japão, em violentas campanhas de bombardeios aéreos, quando usaram inclusive bombas atômicas. Não é mistério o motivo pelo qual o exército Kwantung japonês, de um milhão de soldados, não marchou na direção da Sibéria; não marchou contra a Sibéria porque não conseguiu sair da China, onde foi detido pelos chineses.

Naquela guerra, morreram meio milhão de norte-americanos. Mas morreram 35 milhões de chineses. Toda a glória a todos que morrem em luta por causa justa, mas esses números mostram com clareza qual o país que carregou nos ombros o verdadeiro peso da vitória na IIª Guerra Mundial. Assim afinal se corrige, não só o conteúdo de uma lembrança histórica, mas, também, a verdade histórica sobre o papel especial que duas potências – Rússia e China – desempenharam para determinar a ordem mundial do pós-guerra.

Nova série MC-21 de aviões de passageiros de médio alcance já para 2014
Dos acordos econômicos práticos firmados pelos dois países, além dos planos de energia, o acordo sobre desenvolvimento conjunto de aviões de grande porte é particularmente interessante. Prevê-se que, no verão de 2014, a Russian United Aircraft Corporation (UAC) e a Commercial Aircraft Corporation COMAC, da China, apresentarão um estudo de viabilidade do projeto aos respectivos governos. O investimento dos países na empresa conjunta ainda não foi especificado, mas a russa UAC informou que será comparável ao projeto do Boeing 787 (cerca de 32 bilhões de dólares norte-americanos) e ao projeto do Airbus 350. Dado que a Rússia já domina o processo de produção dos Sukhoi Superjet 100 de curto alcance e em breve iniciará a produção dos MC-21 de médio alcance, Rússia e China, e adiante talvez Rússia e Índia, poderão entrar na produção de itens para toda a linha de aviões de transporte civil, com motores especiais e alta proporção de itens de tecnologia avançada. Além disso, terão uma vantagem competitiva sobre as empresas Boeing e Airbus, porque estarão orientadas para o mercado doméstico – cerca de 2,5 bilhões de pessoas. Há planos também para o desenvolvimento de um helicóptero de grande porte, sucessor do ainda insubstituível Mi-26. E não é só o esperado sucesso comercial desses projetos que importa. A maior importância deles está em que, com eles, cria-se um novo centro global, independente do ocidente, para produção de tecnologias críticas.

Sukhoi Superjet 100 de curto alcance já em operação comercial
O analista norte-americano Robert Parry escreveu que a aproximação entre Rússia e China é “histórica”, entendendo que a crise ucraniana deu à China, país cujo poder econômico está em franco crescimento, e à Rússia, com sua abundância de recursos naturais, ímpeto novo e muito significativo.

China e Rússia uniram-se recentemente num bloco no Conselho de Segurança da ONU, para bloquear iniciativas do ocidente. Significa que, em vez de ter isolado a Rússia na ONU, a abordagem linha-duríssima do Departamento de Estado dos EUA na ONU no caso da Ucrânia teve efeito exatamente oposto: a Rússia tem hoje um novo e poderoso aliado.

E isso significará que Moscou e Pequim juntam forças para lançar poderosa contraofensiva no Ocidente? Não, de modo algum. Nem Rússia nem China precisam disso. Esses países precisam, isso sim, de concorrência leal, sem manipulação, sem duplifalar e hipocrisia e sem atividades clandestinas de subversão e terrorismo a serviço dos “negócios” dos EUA e da União Europeia.

Tudo isso considerado, em breve será possível comparar e aferir, para determinar qual o melhor modelo. A cada ano que passar, mais e mais difícil será, para o ocidente, continuar a ignorar as justas demandas propostas, cada dia mais claramente, pelos novos polos da política global.




Nota dos tradutores

[1] Não se encontra outra versão, de fonte oficial, pelo menos por enquanto. Há matéria oficial da China, sobre o encontro (em inglês). 

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Pepe Escobar: “O futuro visível em São Petersburgo”

30/5/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online − The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

“O modelo de ordem mundial unipolar falhou”
22/5/2014, Vladimir Putin, São Petersburgo

Centro de Convenções do Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo
Em mais de um sentido, o último fim de semana viu nascer um século eurasiano. Claro, com o negócio de gás de US$400 bilhões entre Rússia e China, anunciado no último minuto em Xangai, na 4ª-feira (28/5/2014)(complemento do negócio de petróleo, para 25 anos, assinado em junho de 2013, de $270 bilhões, entre a Rosneft russa e a CNPC da China).

Depois, na 5ª-feira (29/5/2014), a maioria dos principais atores lá estavam, no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo – resposta russa a Davos. E na 6ª-feira (30/5/2014), o presidente Vladimir Putin, ainda sob a aura da glória alcançada em Xangai, falou aos participantes do FE; a casa veio abaixo, de tantos aplausos.

Será preciso mais tempo para avaliar o redemoinho que se viu semana passada, em todas as suas complexas implicações. Nessa página veem-se alguns dos destaques de São Petersburgo, em algum detalhe. Haveria menos altos executivos e presidentes de empresas ocidentais na cidade, porque o governo Obama pressionou-os a não ir – como parte da política de “isolar a Rússia”? Talvez um ou outro a menos, mas não muitos a menos; Goldman Sachs e Morgan Stanley não deram as caras, mas os europeus que realmente contam lá estavam, foram, viram, falaram e suplicaram por negócios.

Mais importante, havia asiáticos por todos os lados. Considere isso aqui como mais um capítulo do contragolpe-revide à chinesa contra o tour do presidente dos EUA Barack Obama pela Ásia em abril, amplamente descrito como tour de contenção contra a China.

Li Yuanchao e Vladimir Putin no 18o. Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo
No primeiro dia do fórum em São Petersburgo, assisti a sessão crucial (vide o programa), sobre a parceria estratégica Rússia-China. Prestem bem atenção: o mapa do caminho está, inteiro, ali. Como o vice-presidente da China, Li Yuanchao declarou:

Planejamos combinar o programa para o desenvolvimento do Extremo Leste da Rússia e a estratégia para o desenvolvimento do Nordeste da China, num conceito integrado.

É apenas um aspecto da coalizão Eurásia que está emergindo muito rapidamente, destinada a desafiar até o osso os excepcionalistas “indispensáveis”. Comparações com o pacto sino-soviético são infantis. O putsch na Ucrânia – parte do “pivô” de Washington para “conter” a Rússia – só serviram para acelerar o pivô da Rússia em direção à Ásia, o qual, mais cedo ou mais tarde se tornaria inevitável.

Tudo começa em Sixuan

Em São Petersburgo, de sessão em sessão e em conversas cuidadosamente selecionadas, o que vi foi a construção de blocos cruciais da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda chinesa, cujo objetivo final é unir, pelos negócios e pelo comércio, nada menos que China, Rússia e Alemanha.

Para Washington, é além e muito pior que anátema. A resposta foi empurrar alguns negócios que, em tese, garantiriam o monopólio dos EUA sobre dois terços do comércio global: a Parceria Trans-Pacífico [orig. Trans-Pacific Partnership (TPP)] – que, na essência, foi rejeitada por asiáticos-chave como Japão e Malásia durante a viagem de Obama; e a ainda mais problemática Parceria Trans-Atlântico [orig. Trans-Atlantic Partnership (TAP) com a União Europeia, que os europeus médios absolutamente detestam. Esses dois negócios estão sendo negociados em segredo e só são lucrativos, de fato, para as corporações multinacionais norte-americanas.

Para a Ásia, a China por sua vez propõe uma Área de Livre Comércio do Pacífico Asiático; afinal, a China já é o maior parceiro comercial da Associação de Nações do Sudeste Asiático [orig. Association of Southeast Asian Nations (ASEAN)], de dez membros.

E para a Europa, Pequim propõe uma extensão da estrada de ferro que em apenas doze dias de viagem liga Chengdu, a capital de Sichuan, a Lodz na Polônia, cruzando o Cazaquistão e a Bielorrússia. O negócio total é a rede Chongqing-Xinjiang-Europa, com uma estação final em Duisburg, Alemanha. Não surpreende que esteja sendo planejada como a mais importante rota comercial do mundo.

Nova Rota da Seda entre Chongqing-Xinjiang-Duisburg na Alemanha
E tem mais. Um dia antes de ser assinado o negócio Rússia-China de gás, o presidente Xi Jinping pregou a criação de nada menos que uma nova arquitetura de cooperação para segurança asiática, incluindo é claro Rússia e Irã e excluindo os EUA. Ecoando de certo modo o que Putin dissera, Xi descreveu a OTAN como relíquia da Guerra Fria.

E adivinhem quem estava presente ao anúncio em Xangai, além dos “-stões” da Ásia Central: o primeiro-ministro do Iraque, Nouri al-Maliki; o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai e, crucialmente importante: o presidente Hassan Rouhani do Irã.

Os fatos em campo falam por eles mesmos. A China está comprando pelo menos metade da produção de petróleo do Iraque – e está investindo pesadamente na infraestrutura de energia iraquiana. A China investiu pesadamente na indústria afegã de mineração – especialmente na mineração do lítio e do cobalto. E é óbvio que China e Rússia continuam a fazer negócios no Irã.

Quer dizer... Eis o que Washington conseguiu com uma década de guerras, abusos incessantes, sanções as mais sórdidas e trilhões de dólares desperdiçados, mal gastos.

Não surpreende que a sessão mais fascinante à qual assisti em São Petersburgo foi sobre as possibilidades comerciais e econômicas em torno da expansão da Organização de Cooperação de Xangai [orig. Shanghai Cooperation Organization (SCO)], cujo convidado de honra foi ninguém menos que Li Yuanchao. Pode-se dizer com razoável certeza que eu era o único ocidental na sala, cercado por um oceano de chineses e centro-asiáticos.

A SCO trabalha para converter-se em algo que superará em tamanho uma espécie de contraparte da OTAN, focada principalmente no combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas. Quer fazer grandes, grandes negócios. Irã, Índia, Paquistão, Afeganistão e Mongólia são observadores, e mais cedo do que se supõe serão aceitos como membros plenos.

Mais uma vez, eis aí a integração eurasiana em ação. O desdobramento em vários ramos da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda é inevitável; o que faz ver, na prática, integração mais íntima com o Afeganistão (minérios) e o Irã (energia).

O boom na nova Crimeia

São Petersburgo também expôs bem claramente como a China quer financiar uma série de projetos na Crimeia, cujas águas, por falar delas, cheias de riqueza energética ainda não explorada, são hoje propriedade russa. Os projetos incluem uma ponte crucialmente importante que atravessará o Estreito de Kerch para conectar a Crimeia à Rússia continental; expansão dos portos crimeanos; usinas de energia solar; e até zonas econômicas especiais [orig. special economic zones (SEZs)] de manufaturas; Moscou, obviamente, interpretou tudo isso como gesto de aprovação, por Pequim, da reintegração da Crimeia à Rússia.

Depósitos de petróleo e gás no Mar Negro e oleogasodutos da Crimeia 
Quanto à Ucrânia, é preciso, sim, como Putin voltou a dizer em São Petersburgo, que pague as próprias contas. E quanto à União Europeia, como o presidente em final de mandato da Comissão Europeia, Jose Manuel Barroso afinal entendeu, é o óbvio: antagonizar a Rússia não é precisamente estratégia vencedora.

Dmitry Trenin, diretor do Carnegie Moscou Center, foi um dos raros bem informados a aconselhar o ocidente, embora de pouco tenha adiantado o conselho:

Rússia e China certamente passarão a cooperar cada vez mais intimamente (...). Esse resultado com certeza beneficia a China, mas dará à Rússia uma oportunidade para fazer frente à pressão geopolítica dos EUA, compensar pela reorientação da energia na União Europeia, desenvolver a Sibéria e o Extremo Leste da Rússia e ligar-se à região do Pacífico-Asiático.

De novo na estrada (da seda)

A aliança estratégica agora simbiótica China-Rússia – com a possibilidade de estender-se na direção do Irã – é O FATO fundamental em campo nesse jovem século XXI. Terá extrapolações para os BRICS, para a Organização de Cooperação de Xangai, para a Organização do Tratado de Segurança Coletiva e para o Movimento dos Não Alinhados.

Claro que os laranjas & testas-de-ferro de sempre continuarão a “ensinar” e a “noticiar” que o único futuro possível tem de ser qualquer um, desde que liderado por império “benigno”. Como se bilhões de pessoas em todo o mundo real – inclusive atlanticistas bem-informados – fosse idiotas o suficiente para acreditar nisso. É. A unipolaridade pode estar morta, mas o mundo, ainda tem, tristemente, de arrastar às costas o cadáver da unipolaridade. Segundo a nova doutrina Obama, aliás, o cadáver anda “empoderando parceiros”.

Parafraseando Dylan (“I left Rome and landed in Brussels[1] [Deixei Roma e aterrissei em Bruxelas]), eu deixei São Petersburgo e aterrissei em Roma, para acompanhar mais um episódio da lenta decadência da Europa – as eleições parlamentares. Mas antes disso, tive a felicidade de viver uma iluminação estética.

Visitei um quase deserto Instituto de Manuscritos Orientais da Academia de Ciências da Rússia, onde dois pesquisadores importantes, extremamente dedicados e a quem muito agradeço, ofereceram-me um tour privado por algumas peças da coleção que bem se pode dizer que é a mais fantástica do planeta, de manuscritos asiáticos. Como viajante serial fanático da Rota da Seda, eu já ouvira falar de muitos daqueles documentos, mas jamais vira qualquer deles. Até que... lá estava eu, às margens do Neva, menino em loja de doces (históricos), imerso naquelas maravilhas de Dunhuang à Mongólia, em védico ou sânscrito, sonhando passadas e futuras Rotas da Seda. Por mim, lá ficava até o fim dos meus dias.



Nota dos tradutores
[1] Música e letra de “When I Paint My Masterpiece” a seguir:


Oh, the streets of Rome are filled with rubble,
Ancient footprints are everywhere.
You can almost think that you're seein' double
On a cold, dark night on the Spanish Stairs.
Got to hurry on back to my hotel room,
Where I've got me a date with Botticelli's niece.
She promised that she'd be right there with me
When I paint my masterpiece.

Oh, the hours I've spent inside the Coliseum,
Dodging lions and wastin' time.
Oh, those mighty kings of the jungle, I could hardly stand to see 'em,
Yes, it sure has been a long, hard climb.
Train wheels runnin' through the back of my memory,
When I ran on the hilltop following a pack of wild geese.
Someday, everything is gonna be smooth like a rhapsody
When I paint my masterpiece.

Sailin' 'round the world in a dirty gondola.
Oh, to be back in the land of Coca-Cola!

I left Rome and landed in Brussels,
On a plane ride so bumpy that I almost cried.
Clergymen in uniform and young girls pullin' muscles,
Everyone was there to greet me when I stepped inside.
Newspapermen eating candy
Had to be held down by big police.
Someday, everything is gonna be diff'rent
When I paint my masterpiece.
_______________________

[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.