sábado, 31 de dezembro de 2011

2012: Guerras tribais na Líbia?


Franklin Lamb


30/12-1/1/2012, Franklin Lamb (de Trípoli), Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Até o momento NADA foi realizado pelo novo governo líbio e a revolta popular está aumentando...

Faz um frio incompreensível em Trípoli, nesse fim de semana de Ano Novo, muita chuva que inunda as ruas, o que me faz lembrar Londres nessa época do ano, como se eu não estivesse no litoral Mediterrâneo do Maghreb. Estou hospedado num modesto hotel familiar, perto da rua Omar Muktar, barato e limpo, mas meu quarto não oferece outro aquecimento além de uma pilha de acolchoados turcos, de veludo.

Muito mais importante que os cobertores, para mim e para o outro único hóspede do hotel, um engenheiro líbio de Sirte, cuja casa foi incendiada pelos rebeldes no início de outubro, é o proprietário, que reabriu o hotel no início de dezembro, depois de ter permanecido fechado desde março passado. O homem é uma enciclopédia viva de informação e opinião sobre “a atual situação” por aqui. Mas o dono do hotel e seus dois filhos que falam inglês não são os únicos que começam a falar cada vez mais fortemente, sobre a realidade na “nova Líbia”, já quase dois meses depois de a OTAN ter declarado mais uma vitória e ter parado de, sistematicamente, embora, pelo que se vê aqui, sem olhar para onde atirava, atacar todos os prédios e casas, até reduzir a ruínas esse país essencialmente sem defesa militar, país do Terceiro Mundo, que foi atacado, com todo o mais moderno arsenal bélico, pelos maiores exércitos do Primeiro Mundo.

Conto com a sorte, nessa viagem, para encontrar meu melhor amigo nos meses que passei na Líbia, no verão passado. “Ahmad,” como a maioria dos contatos, desapareceu sem deixar rastro dia 22 de agosto, quando as forças da OTAN tomaram Trípoli. Como muitos disseram a vários de nós, que procurávamos por pessoas conhecidas, as pessoas que conhecemos no verão ou fugiram, ou estão presas ou foram mortas. Mas “Ahmad” ressurgiu em setembro, por e-mail, para dizer que estava escondido. Viajara para o sul da Líbia, para uma pequena vila no Sahara, cujo nome, disse-me ele, nunca seria encontrado em nenhum mapa, muito menos no Google Earth.  Mas depois daquilo Ahmad novamente desapareceu, quando se aventurou a vir a Trípoli ver a família. Foi traído por amigos que receberam dinheiro das milícias para entregá-lo, foi preso, torturado e esquecido na prisão, sem qualquer acusação formal, simplesmente porque sua família é conhecida por apoiar Gaddafi. Na última semana que permaneceu preso (e só foi libertado, porque um dos guardas, seu ex-colega de escola, reconheceu-o), Ahmad e outros mais de 100 prisioneiros, inclusive Sheik Khaled Fantouch, todos mantidos numa grande sala improvisada como prisão pela milícia de Misrata, nada comeram e só se mantiveram vivos porque dividiam entre eles uma pequena ração de água.

A vida é hoje mais complicada na Líbia praticamente para todos, inclusive visitantes estrangeiros. Por exemplo: no verão, antes de 21 de agosto, se você cruzasse numa rua lateral com tipos com caras de poucos amigos e pesadamente armados, boa ideia seria sussurrar “Alá, Muammar, Líbia, al bas(é tudo de que precisamos!), e havia boa chances de você ser bem tratado e bem recebido. Hoje, é muito mais difícil. Mais de 55 diferentes milícias rebeldes, um total de mais de 30 mil homens armados, controlam diferentes áreas de Trípoli, e muitas dessas milícias não têm qualquer ligação direta com o Comandante Belhaj, chefe do Comando Militar de Trípoli, e não se sabe, de fato, a quem obedecem.

Belhaj, ex-comandante da Al-Qeada, esteve preso na Líbia durante sete anos, quando EUA e Grã-Bretanha o entregaram ao governo Gaddafi, como parte de um programa dos serviços secretos daqueles países, que entregavam prisioneiros para serem interrogados em “ditaduras amigas” dos EUA e Grã-Bretanha. O partido de Belhaj, que está sendo formado com quadros da Fraternidade Muçulmana, tem boas chances de vencer as eleições previstas para o próximo mês de junho. A milícia comandada por Belhaj é a terceira, em tamanho, em Trípoli. A maior das milícias que operam na cidade é comandada por Salh Gait, de Trípoli, e, segundo seu vice-comandante, reúne 5.000 homens e continua recrutando.

Nesses dias, em Trípoli, é boa medida de segurança decorar os nomes da maior milícia local e o nome do respectivo comandante. Assim, quando abordado por milicianos na rua, sempre se pode tentar esfregar os dedos indicadores, pronunciar o nome do comandante e acrescentar “mieh, mieh” i.e. “bom, bom.” O maior risco é não coincidirem o nome que você disser e o nome do comandante daquele específico miliciano. As coisas andam difíceis entre as várias milícias que circulam na cidade, depois de semanas de escaramuças sobre as quais nada se noticia.

As escaramuças entre as várias milícias não são noticiadas, embora o governo de transição não faça outra coisa senão repetir que, afinal, há no país total liberdade de imprensa, para os, dizem eles, 43 jornais e revistas editados livremente na cidade. Dito, parece ótimo, embora o número de jornais e revistas varie semanalmente: há muitas promessas de empréstimos estrangeiros para financiar publicações, mas muitas delas jamais se cumprem, ou os empréstimos são suficientes apenas para publicar as primeiras edições de jornais ou revistas, que surgem e logo desaparecem.

O que mais chama atenção nessa “nova Líbia livre, nova imprensa livre” é que 100% de tudo que se publica são matérias favoráveis ao “novo governo”. Sei que, em parte, é temor das consequências, caso alguém destoe do aparente apoio universal ao Governo Nacional de Transição. Outra razão, segundo um embaixador ocidental que voltou ao posto, é que a nova imprensa está nascendo da imensa variedade de milícias, e todos estão presos na armadilha psicológica de, para não verem os problemas muito visíveis, acabarem por não ver, de fato, coisa alguma que acontece ao redor. Ahmad concorda. “Envolveram-se tanto com a OTAN e os rebeldes da OTAN, que não conseguem admitir que erraram muito. Agora, já nem veem o que acontece à frente deles, todos os dias”.

Um caso exemplar aconteceu ontem, à minha frente, na “Praça Verde”. “Todos ainda chamam de “Praça Verde”, não de “Praça dos Mártires”, como o Conselho Nacional de Tradição decidiu batizar a praça” – explicara o proprietário do hotel –, “porque foi “Praça Verde” durante décadas. E, afinal, qual é o problema de a praça ser “Praça Verde”? Se alguém diz que vai se encontrar com você na “Praça dos Mártires”, a coisa soa esquisita para todos, nessa cidade. E se os militares no Egito resolverem mudar o nome da Praça Tahrir? Os egípcios aceitariam?”

O que me surpreendeu ontem é que havia duas manifestações, razoavelmente cheias de gente, ambas contra o Conselho Nacional de Transição, em dois cantos opostos da praça, que é enorme. Uma delas era liderada por duas mulheres que conheci no verão, que eram e dizem abertamente que continuam, apoiadoras do regime de Gaddafi. Uma delas, no verão, animava um grupo de advogadas; a outra, um grupo de feministas. A manifestação liderada pelas duas exigia que se garantisse a cidadania líbia para maridos e filhos de esposas e mães líbias – a mesma luta que continua, década após década, também no Líbano.

A outra manifestação, liderada pela advogada que falou numa conferência no Corinthia Hotel, a que assisti, poucos dias antes da queda de Trípoli, era organizada por um grupo que exigia notícias dos muitos desaparecidos, mantidos presos aos milhares em prisões secretas das várias milícias, por todo o país. Segundo a equipe de pesquisas do próprio grupo, além dos mais de 7.000 apoiadores de Gaddafi que o Conselho Nacional de Transição já anunciou que mantém presos, 80% dos quais identificados pelo nome, o Comitê de Justiça para os Desaparecidos diz que há mais de 35 mil líbios presos em prisões secretas das milícias que não obedecem ao CNT e sequer lhe reconhecem qualquer autoridade. Ahmad concorda com esse número, a partir do que soube na prisão. Disse que pode mostrar uma escola, próxima do meu hotel, fechada para as férias escolares até o dia 7 de janeiro, e onde, se se passa pela rua à noite, quando não há ruídos de trânsito, ouvem-se gritos dos policiais e dos prisioneiros.

Parece que, pelo menos por hora, as manifestações populares estão sendo permitidas, embora sempre se vejam observadores que tudo olham. O que não se sabe é quem é observador a serviço do Conselho Nacional de Transição, quem é das milícias e de que milícia é cada observador.

Ahmad chegou com a notícia de que nenhuma das manifestações do dia anterior foi noticiada nos jornais da manhã seguinte, porque nada se publica que não sejam elogios ao governo da nova Líbia.

A líder do grupo de feministas tem planos para convocar outras manifestações: há muitas mulheres desaparecidas, mas, estranhamente, são mulheres que, de um dia para o outro simplesmente desaparecem das ruas e dos locais onde normalmente moravam e circulavam diariamente.

Uma das suspeitas do grupo de feministas é que muitas delas estejam vivendo em casas que pertenceram a parentes e apoiadores do regime de Gaddafi. Ela estima que haja mais de 90 dessas casas em Trípoli, todas em regiões ricas da cidade, muitas à beira mar, e que foram invadidas por gangues rebeldes, saqueadas, várias delas já vendidas e compradas nos mercados de rua.

Depois de invadidas e saqueadas as casas, muitos membros das milícias parecem ter tido outra ideia. Por que voltarem, por exemplo, para Benghazi ou Misrata, se podiam ficar vivendo em Trípoli, com relativo luxo? Centenas de milicianos estão fazendo isso, diz “Mara”, a líder do grupo de feministas. “São sempre pesadamente armados, vivem do pequeno soldo que as milícias pagam, e moram naquelas casas; alguns até alugam quartos e cobram aluguel. Mara conta:

“Se encontram uma casa vazia, sobretudo se é casa grande, bem construída, logo assumem, quase sempre corretamente, que pertenceu a parente de Gadaffi, alto funcionário ou apoiador do governo Gaddafi. E invadem a casa, como se lhes pertencesse, como parte do butim de guerra. E desafiam qualquer outra milícia ou a inexistente polícia do inexistente novo governo, a tentar desalojá-los. Não têm qualquer intenção de voltar para suas cidades, nem de depor armas. Atualmente, já armazenam armas e explosivos, tanto para se protegerem, como para aumentar o próprio poder de barganha. Pelo que se vê, é como se a Líbia estivesse aberta a qualquer tipo de saque: seja o saqueador, ou líbio, ou de alguma operação estrangeira”.

A mesma senhora diz que a população de Trípoli aumentou em cerca de um milhão de novos moradores, e os locais querem que os “de fora” voltem às suas cidades originais e devolvam Trípoli aos seus moradores, para que possam recomeçar a reconstruir a cidade. Com os recém chegados, aumentaram os problemas de tráfego e aumentou a insegurança, sobretudo noturna, na cidade.

Em muitas das casas invadidas, já moram famílias inteiras vindas de outras partes da Líbia. Em vários casos, há suspeita de que mulheres não líbias, das muitas que viviam no país, vindas de outros países africanos, estejam sejam mantidas em condições de cárcere privado, como empregadas domésticas. Os grupos feministas também suspeitam que as milícias estejam seqüestrando mulheres nas ruas, para mantê-las como serviçais nas casas convertidas em fortalezas das milícias armadas.

O que mais enfurece muitos, hoje, em Trípoli, é que o novo governo não dê qualquer sinal, sequer, de suspeitar da existência desses problemas. É como se o novo governo não tivesse qualquer interesse em qualquer tipo de investigação pela Corte Criminal Internacional, porque não querem investigadores internacionais na cidade, fazendo perguntas.

Líbios que viviam no interior do país, e os que se refugiaram em países vizinhos, estão começando a voltar às suas grandes tribos originais, e começam a organizar-se para pôr fim a esses e a muitos outros problemas.

Um dos locais onde se ouve dizer que a situação está prestes a explodir em violência, áreas como Bani Wallid e Sirte, onde a OTAN e seus aliados locais mataram muitos civis – mortes que nem os grupos de direitos humanos sabem estimar com alguma precisão. Um comandante de uma milícia local disse a mim e a dois outros jornalistas alguma coisa do que ouviu, numa operação de prisão clandestina: “Se, há um ano, havia divisões intratribais ou disputas por território entre as tribos, hoje os problemas estão multiplicados por 500. As tribos estão-se armando e já deram ao novo governo vários prazos para que comece a reconstruir as casas e os estabelecimentos comerciais que foram destruídos, para ajudar as famílias que perderam tudo, para desarmar os milicianos que andam pelas ruas, e para desmobilizar as gangues armadas, fazendo os milicianos voltarem para as cidades de origem. Até agora, o novo governo nada fez nessa direção, e as pessoas estão cada dia mais furiosas.”

Outro problema que provoca profundo descontentamento são os preços, que não param de aumentar – exceto eletricidade, que ninguém no país paga, segundo minhas fontes, desde fevereiro. Mas os cortes de eletricidade são hoje similares aos que aconteciam durante o bombardeio pela OTAN. A falta de dinheiro também é problema, porque ninguém pode retirar dos bancos mais que 750 dinars por mês. O dinheiro é relativamente escasso. Sabe-se que foram sacados dos bancos líbios cerca de 7 bilhões, por ex funcionários e empresários líbios no início da primavera; e que mais de 8 bilhões haviam sido sacados pelos cidadãos, no verão anterior, no pânico que se criou, pouco antes de o governo Gaddafi limitar o saque, nos bancos, a 500 dinars mensais.

Ouvi, pessoalmente, em países vizinhos e dentro da Líbia, dito por funcionários da administração das áreas tribais, que a guerra recomeçará, provavelmente, dia 1º de março. “Nossa história, nossa cultura, nossa dignidade estão ameaçadas. É responsabilidade das tribos limpar o país, expulsar daqui esses fora-da-lei, exatamente como já fizemos com os colonizadores italianos”.

Numa reunião em país vizinho da Líbia, ouvi de um apoiador de Gaddafi: “Sabemos quais as tribos que trabalharam aliadas à OTAN e traíram seus deveres tradicionais. Também aconteceu no tempo dos italianos e ao longo do tempo, quando tribos aliaram-se às empresas estrangeiras de petróleo. Vamos à guerra, para restaurar a trilha dos povos líbios, sem ignorar os erros que foram cometidos pelo governo Gaddafi, mas sem esquecer que temos apoio de 90% da população nas áreas da tribo Wafala, como Ban Walid; e de cerca de 60%, em Trípoli. Gaddafi está morto. Mas muitas de suas boas políticas prosseguirão. Ihshallah.”

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

FELIZ HOMEM NOVO


Raul Longo


Que não seja mais
   um ano
      de tudo de novo
         do mesmo velho Homem.

Que esse Homem
   solitário e mesquinho,
      voltado a si mesmo,
         se faça farto e pleno
             e não abandone ninguém
               no caminho,
                  a esmo.

   Que seja o ano do
      Homem Sol,
         alimento.

   Que não seja o ano
      de tudo de novo.
         Do mesmo preconceito,
            da mesma prepotência.

   Um ano sem a sempre ausência
      que envergonha a espécie
         a cada lamento de criança
            com fome.
               A cada mulher
                  à qual não se respeita
                     nem o nome
                        nem a essência.

   Para que não seja
      apenas mais um velho
         ano novo.

   Que seja, enfim e de fato,
      o ano do Homem Novo
         e do enquanto
            da noite de hoje,
               desponte o encanto
                  do Sol
                     da eternidade do amanhã.

Feliz Homem Novo!

“A Rússia pagou mais caro pelo fim da URSS, que pela II Guerra Mundial”


O “colapso” da União Soviética e o escândalo da privataria russa
Evgeny Primakov

26/12/2011, Entrevista -  Evgeny Primakov, Russia Today
 (“Projeto 20 anos do colapso da URSS”)
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

O ex Primeiro-Ministro russo Evgeny Primakov é um dos poucos que assistiram, por dentro dos corredores do poder em Moscou, ao desenrolar do “colapso” da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e o consequente processo de privatizações, há exatamente vinte anos. Aqui, a entrevista que concedeu há dois dias, a Russia Today.

A entrevista, em russo no original, está traduzida para o inglês on time no vídeo abaixo:


Russia Today: O senhor com certeza lembra-se de que disse, uma vez, que nunca entendeu o quê impediu o presidente da URSS, Mikhail Gorbachev, de usar força militar para impedir que se assinasse o tratado que determinou a dissolução da URSS, em 1991. O senhor ainda acha que a URSS deveria ter sido preservada a qualquer custo?

Evgeny Primakov: De fato, nunca pensei que fosse necessária alguma força militar. O que poderia ter sido feito – e é minha opinião, outros têm outras ideias... Mas eu penso que os policiais do distrito militar da Bielorrússia poderiam ter cercado aqueles três políticos em Belovezhskaya Pushcha [1], que lá estavam, bêbados, mal se segurando sobre as pernas, e que só pensavam em assinar logo os documentos daquele tratado, e, simplesmente, tê-los levado, no camburão, cada um para sua casa. Bastaria prendê-los, tirá-los de lá, apreender aqueles documentos e levar os bêbados para casa. Mas isso não foi o mais importante. 

O mais importante – e Gorbachev sabia que havia essa proposta, porque eu, pessoalmente, falei-lhe sobre isso, na presença de outras pessoas – é que, naquele momento, o que se deveria assinar seria um tratado econômico.

Se tivéssemos assinado um simples tratado econômico, que criasse um único espaço econômico [como depois fez a Europa e hoje a América Latina procura fazer], acho que teríamos dado o passo oportuno e necessário, naquele momento, na direção de preservar uma União Soviética aprimorada, modernizada, que, adiante, teria os meios necessários para livrar-se das partes necrosadas do seu próprio legado. Um dia depois de termos apresentado a ele essa ideia e esse projeto, Gorbachev fez uma declaração pública, em que disse que não acreditava que um tratado econômico devesse ser assinado antes dos demais, porque tinha certeza de que o tratado econômico poria em risco a assinatura do tratado político que ele supunha que já estivesse negociado e acertado. 

Por isso, não se chegou a considerar adequadamente a ideia de que, uma vez criada uma zona econômica comum, criar-se-iam as condições para que se desenvolvessem as importantes estruturas supranacionais indispensáveis. E elas surgiriam, seria inevitável. Por isso deveríamos ter começado por um tratado econômico. Muitos estavam já convencidos disso e dispostos a trabalhar nessa direção. Até os estados do Báltico estavam dispostos a trabalhar sobre a ideia de preservar um espaço econômico comum.

RT: Se se considera a história, todos os grandes impérios acabaram por fragmentar-se, mais cedo ou mais tarde. O senhor acredita que uma zona econômica comum bastaria para impedir a fragmentação?

EP: É claro que não bastaria. Mas teria sido passo importante para impedir a fragmentação. E é claro que não se pode comparar aquele momento e o que temos hoje, são situações completamente diferentes. Naquele momento, na União Soviética, tudo era centralizado e tudo era dirigido por um único sistema. Mas ninguém ganhou coisa alguma com a dissolução. Ninguém. A Rússia talvez se tenha saído melhor que os demais, porque é maior e mais forte e tinha economia mais desenvolvida. Mas no plano geral, ninguém ganhou coisa alguma. Isso é indiscutível. Hoje, as repúblicas estão convertidas em estados soberanos, que trilharam um duro caminho e já desenvolveram conexões e relações com outros estados no ocidente, e com a China, etc. O quadro hoje é completamente diferente.

Mas mesmo hoje, já se vê a importância de criar uma zona econômica comum. Se a coisa é feita adequadamente, na escala adequadamente ampla – e, de fato, a Rússia já tem acordos com a Bielorrússia e com o Cazaquistão e é possível que o Quirguistão logo se una, também –, se tudo for conduzido adequadamente, o que se está vendo é que a formação de blocos econômicos – não a dissolução dos blocos existentes – é um dos pilares indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento locais.

RT: O senhor acha possível restaurar alguma coisa semelhante à União Soviética, com uma Comunidade Econômica Eurasiana que reúna várias das repúblicas pós-soviéticas?

EP: Não. Não penso, de modo algum, em alguma coisa semelhante à União Soviética. Nada mais, hoje, pode, sequer remotamente, ser semelhante à União Soviética, de modo algum. Mas a integração é uma das forças mais ativas da globalização. Isso, precisamente, é o que se vê hoje, em todo o mundo. E se nos pusermos a andar a favor dessas forças... Hoje, pode-se dizer que o que se vê em todo o mundo é a tendência à transnacionalização nos negócios e no comércio. E também há transnacionalização e integração dos processos no plano dos estados. Portanto, se conseguirmos andar a favor dessas tendências, para chegar aos fóruns planetários, para promover neles nossa agenda... A verdade é que esse tipo de movimento em nada difere do que o Ocidente está fazendo! A vantagem, no nosso caso, é que nós, desse lado do mundo, sempre teremos de nos focar mais nos interesses de cada um dos estados-membros da Comunidade Econômica Eurasiana. Acho que essa será uma grande vantagem.

RT: Como o senhor disse, é fato sabido que os problemas econômicos foram o principal fator que levou à dissolução da URSS. Hoje, se se veem EUA e União Europeia sacudidos por graves crises econômicas, deve-se esperar que a Europa ou o bloco norte-americano dividam-se, de algum modo, como a URSS dividiu-se?

EP: Não, não acho. Claro que algum impacto sério nessa direção é inevitável, no caso da Europa. Lembro de uma conversa que tive com um homem a quem respeito muito, o ex-Chanceler [Helmut] Schmidt, da Alemanha Ocidental, que está hoje com 92, 93 anos e, continua como sempre foi, muito brilhante. Ano passado, tive uma conversa interessantíssima com ele. Para o Chanceler Schmidt, sim, os eventos na eurozona terão, sim, um impacto. Para ele, esse impacto pode empurrar, por um lado, para integração maior de vários estados dentro da União Europeia, em termos de política exterior, defesa e outras questões. Mas, por outro lado, os mais “velhos” da União Europeia, os que estão integrados há mais tempo, os que terão de fazer concessões, serão forçados a ver com outros olhos os mais ‘novos’, os que se uniram mais recentemente à União Europeia. Haverá impacto também nessa direção.

RT: Agora, uma questão hipotética. Anos depois do colapso da URSS, a OTAN bombardeou a Iugoslávia. Sem o colapso da URSS, o senhor imagina que a OTAN teria prosseguido nas operações contra a Iugoslávia, o Afeganistão, o Iraque, a Líbia?

EP: Sobre o envolvimento da OTAN na Iugoslávia, acho que aconteceria mesmo que a URSS estivesse ainda viva, porque a Aliança agiu sem autorização do Conselho de Segurança da ONU. Mas a questão é muito mais complicada que isso. 

Nos primeiros anos depois da dissolução da URSS, ainda na primeira metade dos anos 1990s, nossa política exterior nada fazia senão mostrar apoio às posições dos EUA, seguir exatamente as pegadas dos EUA. O ministro das Relações Exteriores, ele próprio, disse o seguinte: “Precisamos desesperadamente nos incorporar ao mundo civilizado, custe o que custar. O resto é perfumaria”. Evidentemente, o ocidente via esse sentimento na Rússia pós-soviética. E esse sentimento, me parece, ainda prevalece em alguns círculos. Por isso, a OTAN age como sempre agiu, sem tomar conhecimento, nem da União Soviética nem da Rússia.

RT: Que preço a Rússia teve de pagar por essa política exterior sem espinha dorsal, quando, como o senhor disse, seguia as pegadas dos EUA?

EP: O preço foi tremendo. Em termos econômicos, a Rússia pagou mais caro pelo fim da URSS, que durante toda a II Guerra Mundial. O custo alcançou essa escala. Tremendo. Todos veríamos mais claramente o que a Rússia pagou pelo fim da URSS, se todos pudessem assistir às audiências, em Londres, dos processos em curso, aos quais respondem Boris Berezovsky e Roman Abramovich, e se todos ouvissem as histórias horrendas de como os empresários gozavam da proteção de funcionários do Kremlin.

Ou se todos conhecêssemos os detalhes dos processos de privatização, na Rússia. Se se sabe daqueles crimes, ninguém, em sã consciência, jamais dirá que o país obteve qualquer ganho, qualquer avanço, do que se fez nos anos 1990s.

RT: Uma última pergunta. A URSS promovia uma determinada ideologia. Estados fortes precisam de ideologia. O senhor acha que a Rússia, hoje, tem algum pensamento próprio?

EP: Ainda não há, articulada, coisa alguma que se aproxime do que se chama “ideia nacional”. Estamos todos trabalhando para melhorar a vida das pessoas, para que tenham vida melhor, mais segura. A situação demográfica precisa de atenção. O modelo econômico precisa de reforma geral, porque o que havia antes da crise de 2008 não servirá para o futuro. Esses desafios são evidentes. E todos eles, tomados em conjunto, manifestam a ideia nacional da Rússia.



Nota dos tradutores
[1] Belovezhskaya Pushcha é uma floresta, a última porção remanescente da floresta primeva que cobriu toda a planície europeia; a floresta foi praticamente destruída durante a II Guerra Mundial (a fronteira entre a Polônia e a Bielorrússia passa por dentro dessa floresta). Em 1944, o Conselho dos Comissários do Povo da União Soviética declarou a floresta patrimônio da URSS, reciclando um projeto do czar Alexandre II, que fizera da floresta sua reserva privada de caça. Implantou-se ali, então, uma área de preservação ambiental, onde se desenvolveu projeto pioneiro de recomposição dos rebanhos de bisontes, hoje o maior do mundo. Em 1992, a Unesco declarou a floresta Patrimônio Natural da Humanidade. Para os povos eslavos ocidentais, a floresta é ‘casa’ do Dzied Maroz, contraparte regional do “Papai Noel”. Na parte bielorrussa da floresta, fica a dasha onde foram assinados os “Acordos de Belavesha”, pelos presidentes da Ucrânia, Rússia e Bielorrússia (os “três bêbados” a que se refere Evgeny Primakov, acima) que decretaram a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

A palavra do ano é “Occupy”


Samy Alim

26/12/2011, Samy Alim, New York Times
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O New York Times volta a falar do lugar que a palavra “ocupar” [#Occupy] passou a ter nos movimentos sociais que se multiplicaram esse ano em todo o planeta. E propõe que se colha a oportunidade para “ocupar a linguagem” e refletir sobre como damos nomes às coisas e às pessoas – em especial aos estrangeiros.

Em outubro passado, parti de San Francisco, sobrevoando os portos da costa oeste dos EUA paralisados pelo movimento Occupy Oakland, antes de chegar à Alemanha, em meio aos tumultos provocados por Occupy Berlin. Hoje, só resta constatar que o movimento Occupy transformou, não só o espaço público, mas, também transformou o discurso público. 

Occupy [1]. Hoje, já é praticamente impossível ouvir essa palavra, sem pensar nos militantes instalados nas praças e ruas do mundo. 

Até o célebre lexicógrafo Ben Zimmer estima que Occupy tem grandes chances de ser escolhida “a palavra do ano” pela American Dialect Society. O vocábulo já conseguiu modificar os termos do debate, tirando de cena “teto de endividamento” e “crise orçamentária”, substituídos por “desigualdade” e “ganância”. 

A ironia da palavra “ocupar”, para designar uma corrente social progressista que visa a redefinir o debate em torno das noções de equidade e democracia, certamente está bem visível. Afinal, na linguagem corrente, só países, exércitos, polícias, “ocupam” territórios, praticamente sempre pela força. Sobre isso, aliás, os EUA nada têm a aprender. 

E em apenas poucos meses, o movimento Occupy mudou completamente o significado da palavra “ocupação”. Até setembro, “ocupar” significava operação militar. Hoje, “ocupar” é sinônimo de luta política progressista [e quem, no ocidente, queira falar do que Israel faz na Palestina, ficam com a tarefa revolucionária de buscar, ou de inventar, palavras mais adequadas para o que Israel faz na Palestina: invasão pela força, com violência, ilegal, contra a razão democrática e civilizada do mundo (NT)]. 

Hoje, “Ocupar” é denunciar injustiças, desigualdades, abusos de poder. E em nenhum caso se trata de apenas impor-se num espaço: hoje, ocupar significa também transformar os espaços. Nesse sentido, o movimento Occupy Wall Street ocupa literalmente a língua, e é hoje autor [não proprietário (NT)] da palavra OCUPAR! 

A primeira vez que a palavra “ocupar” apareceu em inglês, associada a manifestações sociais, remonta aos anos 1920s, quando operários italianos decidiram ocupar as fábricas em que trabalhavam, até que suas reivindicações fossem satisfeitas. Já foi uso muito distante da origem da palavra. O Dicionário Oxford English ensina que, na origem, “occupy” significou “ter uma relação sexual”. Hoje, a mesma palavra, já ressignificada, serve para preencher [ocupar?] muitos vazios gramaticais do discurso. 

E se mudássemos mais uma vez o significado da palavra “ocupar”? Mais exatamente, e se pensássemos no “discurso do movimento Occupy” não mais como discurso dos militantes de Occupy, mas como movimento total, ele todo, de Ocupar a Linguagem? E o que desejariam esses “ocupantes da linguagem”?

Occupy a Linguagem” [ing. Occupy Language] bem poderia inspirar-se, ao mesmo tempo, no movimento Occupy – que nos faz lembrar que as palavras sempre significam e que a língua não é estática, fechada – e dos movimentos locais que contestam os usos locais da linguagem e fazem lembrar que a língua pode ser tanto ferramenta de libertação quanto ferramenta de opressão; tão potente para unir, quanto para segregar. 

O movimento, portanto, poderia começar por refletir sobre ele mesmo. Em recente entrevista, Julian Padilla, do People of Colour Working Group [Grupo de Trabalho das Pessoas de Cor], convocava os militantes a examinar as próprias escolhas lexicais:

“Ocupar significa tomar posse de um espaço, e acho que ver um grupo de militantes anticapitalismo tomar posse do espaço na Rua do Muro [ing. Wall Street] é um símbolo muito potente. Mas gostaria que eles se dessem conta da história dos povos nativos, dos peles vermelhas e dos peles negras e dos pele amarela do imperialismo em todo o mundo. E que passassem a chamar o próprio movimento de “Descolonizar a Rua do Muro” [orig. fr. “Décoloniser Wall Street”]. Ocupar um espaço não é necessariamente ação negativa. Tudo depende de o que se faz, como e por quê. Quando os colonizadores brancos ocupam um país, eles não vêm para ficar, vêm de passagem, vêm para pilhar e destruir. Quando descendentes de tribos nativas dos EUA ocupam Alcatraz (entre 1969 e 1971), é ato de contestação.” 

O movimento “Occupy Language” também poderia fazer campanha para impedir que os veículos de mídia continuem a usar o adjetivo “ilegal” aplicado a imigrados sem documentos. Os que defendem essa causa explicam que o adjetivo illegal em inglês [em português do Brasil, em termos jurídicos precisos,  também (NT)], só se aplica a ações e objetos inanimados. Usar o termo “os ilegais” [ing. illegals; fr. les illégaux) aplicado a pessoas, opera portanto, em primeiro lugar, a des-humanização das pessoas às quais se aplica.

Mas o New York Times só recomenda aos seus jornalistas que evitem as expressões “estrangeiro ilegal” [ing. illegal alien; fr. étranger illégal] ou “estrangeiro sem documentos” [ing. Undocumented alien; fr. sans-papiers]. O New York Times nada diz sobre não usar a expressão “os ilegais” [ing. illegals].



Nota dos tradutores
[1] A palavra Occupy [nas redes sociais, sempre #Occupy] é, sim, um belo achado, uma bela invenção internacionalista, dos muitos que se dizem, nós-vós-vóz-de-nós-mesmos: “ocupai/ocupar/ocupemos!”.
Em português, há aí também um traço performativo de palavra-de-ordem: “Ocupai!” – modo imperativo, 2ª pess. do plural, do verbo ocupar, como “falai!”, “cantai!”, “sentai!”, “andai!”, “marchai!”, “manifestai!”, “ocupai e não arrastais o pé daí, nós-vós-vóz-de-nós-mesmos, os 99%”. Em inglês, há aí, o traço declarativo (também performativo, portanto) do infinitivo (“ocupar”) que ecoa, também para os bilíngues, com inglês, em todo o mundo.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Turquia abre caminho para a Rússia rumo à Europa


29/12/2011, *MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


O evento marco de 2011, na geopolítica da segurança energética, não será o negócio de petróleo que a China firmou na quarta-feira com o Afeganistão[1]. Na madrugada da quinta-feira, chega a notícia de que Rússia e Turquia acertaram os ponteiros sobre o gigantesco gasoduto South Stream, que levará energia russa ao sul da Europa. [2]  

Ainda não se sabe o que levou a Turquia a mudar de opinião. Terão os russos feito concessões que os turcos consideraram interessantes? Seja como for, toda a geopolítica da segurança energética do mundo mudou, literalmente, do dia para a noite. 

Os dois eventos – o negócio sino-afegão e o gasoduto South Stream – estão “correlacionados”, na medida em que a China chega afinal às reservas de energia da Ásia Central, ao mesmo tempo em que a Rússia olha para o ocidente e fortalece seu status de potência fornecedora de energia para a Europa. 

De fato, nem as incertezas da segurança regional na Ásia Central impedem que a China ponha dinheiro sobre a mesa e busque novos métodos, criativos, para construir situações de “ganha-ganha”  [3]. Nem, simultaneamente, os percalços no relacionamento com o ocidente (e, particularmente, o “reset” com os EUA) tiram um átomo do entusiasmo dos russos, que buscam ligar-se, por laços firmes, aos europeus afluentes. (...) Nem o tempo nem as marés esperam pelos retardatários. 

O que a Rússia está fazendo é instalar firmemente, anel após anel, os seus elos de engajamento com Alemanha, Itália e França, de tal modo que se tornem “acionistas” na integração dos russos à Europa. Assim, passarão a ter de dar atenção às sensibilidades russas, em questões controversas, como a expansão da OTAN ou a instalação do sistema de mísseis balísticos de defesa dos EUA – projeto no qual Washington tanto se empenha, e não por motivos de defesa. 

O gasoduto South Stream sempre foi menina-dos-olhos de Vladimir Putin, e torna-se agora seu legado histórico à política externa russa. Não faltaram detratores, mas Putin insistiu sempre, muitas vezes contra todas as probabilidades. Com o outro gasoduto, o Nord Stream (também legado de Putin) já contratado há poucos meses, o South Stream integra ainda mais a Rússia e os mercados europeus de energia, e dá força a Moscou, que busca ganhar espaço no altamente lucrativo mercado de venda a varejo nos países europeus.

Em resumo, a integração doravante só aumentará. 2012 verá como a diplomacia do gasoduto fará aumentar a cooperação necessária para o desenvolvimento do fantástico campo de gás natural que os russos têm em Shtokman.[4] 

A China observará tudo muito atentamente. 2012 será também o ano do ápice da cooperação energética Russia-China, assumindo-se que chegue a bom termo o negócio de trilhões de dólares de gás, que enfrenta dificuldades, hoje, na fixação dos preços. Putin também se envolveu pessoalmente nesse projeto. 

Não há dúvida alguma que Moscou derrotou a diplomacia dos EUA, nas questões de energia do Mar Cáspio.[5] O gasoduto South Stream, que a Rússia quer ter em pleno funcionamento em 2015, também desloca, em importância, o projeto rival Nabucco, que os EUA apóiam. A interdependência entre a Europa ocidental e a Rússia, no campo da segurança energética, é vista com extrema preocupação em Washington, porque trabalha contra a estratégia norte-americana para “conter” a Rússia e debilita a liderança trans-Atlântica dos EUA. Está em curso uma dura batalha de ambições entre EUA e Rússia, ambos tentando ganhar acesso às reservas de gás no Turcomenistão e no Azerbaijão. 

O gasoduto South Stream reduz fortemente a dependência russa da Ucrânia, como país de passagem para o gás exportado para a Europa. O quê, por sua vez, altera a equação Rússia-Ucrânia. 

Kiev pode escolher: ou se une à União Aduaneira de Moscou e obtém dos russos melhores preços pela energia, ou paga preços de mercado. Evidentemente, se a Ucrânia unir-se “ao lar eurasiano comum”, com Rússia, Cazaquistão e Bielorrúsia, Moscou terá deixado para trás o colapso da União Soviética – que muitos importantes líderes russos, como Evgeny Primakov[6], ainda entendem que nunca foi tão inevitável quanto tem sido pintado. 

Não há dúvida de que a possibilidade de Putin voltar ao Kremlin desestabiliza o pessoal em Washington.



Notas dos tradutores

[1] 28/12/2011, People Daily, Pequim, Afghanistan, China sign agreement on oil extraction (em ingles).  
[2] 28/12/2011, Reuters Africa,UPDATE 2 – Turkey, Russia reach South Stream gas deal(em ingles).
[3] 28/12/2011, The Raw Story, Afghanistan signs “$7 bn” oil deal with China(em ingles).
[4] 28/12/2011, The Moscow Times, Shtockman Gas Investors To Discuss Project’s Fate(em ingles).
[5] 9/9/2011, MK Bhadrakumar, Asia Times Online, Putin's European goal no longer a pipe dream (em ingles).  
[6] 26/12/2011, Russia Today, Soviet collapse more costly than WWII – Primakov(em inglês)   

*MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online 

Pepe Escobar: “Alteram-se as tendências, na disputa por recursos vitais”



27/12/2011, Pepe Escobar (entrevistado por Lars Schall), Consortium News

Shifting Ground for Vital Resources

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu




A disputa por petróleo, água e outros recursos intensifica-se, as relações globais mudam, criando o pano de fundo para uma cadeia de conflitos, do Iraque à Líbia. Pepe Escobar, jornalista nascido no Brasil e um dos mais sensíveis analistas dessas tendências, fala aqui, em entrevista ao jornalista alemão Lars Schall.

Lars Schall: Pepe Escobar, dada sua experiência nesse campo, qual, em sua opinião, o principal mal-entendido que se constata na opinião pública em geral, relacionado à chamada “Guerra ao Terror”?

Pepe Escobar: A “Guerra ao Terror” foi história-de-capa e cobertura para um “Choque de Civilizações” e uma guerra fria oculta, mas que talvez ‘esquente’, entre os EUA e seus dois concorrentes estratégicos, China e Rússia. Os EUA não poderiam atacar diretamente nenhum desses dois países membros do grupo BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os países emergentes].

Lembremos que antes da “Guerra ao Terror” e depois da queda do Muro de Berlim, os norte-americanos tentavam definir quem seria seu próximo inimigo. Fazia falta um inimigo externo pré-fabricado – antes, foram a União Soviética, a Cortina de Ferro e o demônio do comunismo. Depois que o demônio foi derrotado pela realpolitik – OK, quem é o próximo?

Primeiro, pensaram na China, mas disseram “não, não podemos tomar a China, é uma grande potência, tem armas nucleares. Com a Rússia, a mesma coisa. E os russos estão agindo bem, há lá um fantoche, no Kremlin, Boris Yeltsin, privatizando tudo feito louco e saqueando os recursos da Rússia, hipoteticamente a favor das corporações ocidentais”. Foi assim, até que [Vladimir] Putin virou tudo isso de ponta cabeça.

Assim, a “Guerra ao Terror” pareceu perfeita, porque o Islã pôde ser rotulado como o inimigo. E o 11/9 não poderia ter sido mais conveniente, porque então, embora o conceito já existisse desde antes, havia o “fator Pearl Harbor”. A “Guerra ao Terror” foi conceito que pôde ser vendido não só ao público norte-americano, mas, também, à opinião pública mundial. Mas a agenda oculta, por baixo da “Guerra ao Terror” global, que o Pentágono chama de “A Longa Guerra” – guerra infinita – é, de fato, a emergência de duas potências que são ameaça real e grave aos EUA, Rússia e China.

A Rússia, basicamente porque tem armas atômicas. Naquele momento, sequer pensavam na Rússia como grande exportador de petróleo e gás – foi antes de Putin ter reorganizado a Gazprom, que viria a tornar-se a principal empresa internacional de petróleo e gás.

E a China, a qual, naquele momento, há 10 anos, os americanos viam como ainda desorganizada, talvez enfrentando alguma revolta camponesa, sabe-se lá! Fato é que os EUA não pensavam na China, naquele momento, como concorrente de peso. Hoje, claro, a China tem 3,2 trilhões de dólares norte-americanos nas suas reservas, além dos papéis do Tesouro do EUA etc.

11/9 foi pretexto perfeito, mas, por baixo, oculta, intensificou-se a disputa para chegar às reservas de energia do Golfo Persa e da Ásia Central. E os EUA tinham o plano máster dos neoconservadores. É o mesmo plano que – por difícil que seja acreditar –, está sendo implantado hoje. Esse plano implica desestabilizar esse “Arco de Instabilidade” – expressão cunhada, claro, pelo Pentágono –, do Maghreb pelo norte da África pelo Oriente Médio e direto até a Ásia Central via Afeganistão/Paquistão – que é a intersecção entre a Ásia Central e o Sul da Ásia – até a fronteira da China, em Xinjiang.

Eles precisavam implantar sua estratégica, que foi concebida em sua forma final, depois do 11/9. É a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” do Pentágono, tema sobre o qual você jamais lerá na imprensa dominante nos EUA ou na Europa.

Desde 2002, a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” é doutrina oficial do Pentágono. É intrinsecamente ligada à Segurança Nacional dos EUA: temos de ser principal potência, não só em terra, mar e ar, mas também no ciberespaço e no espaço sideral. Essa é a essência da doutrina da doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”.  [Ver, por exemplo, GARAMONE, Jim (American Forces Press Service): Joint Vision 2020 Emphazises Full Spectrum Dominance, 2/6/2000, Departamento de Defesa dos EUA].
  
 
Está sendo aplicada agora, depois da “Primavera Árabe”. E é inacreditável que ninguém, absolutamente, fale sobre isso. Todos se puseram a falar de uma “Primavera Árabe”, que é termo impreciso, porque faz crer que os árabes tenham estado adormecidos ao longo dos últimos cem anos, e estivessem ‘despertando’ – o que não é verdade. A palavra “Primavera” não é a palavra certa. Eu diria que estamos assistindo a um processo de maior consciência das classes trabalhadoras e classes médias na Tunísia, no Egito, no Bahrain e também em outras partes do Oriente Médio. 

E, em seguida, veio a contrarrevolução, e esse processo contrarrevolucionário está levando diretamente à implantação de outras etapas da doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”. Adiante, podemos voltar a falar sobre isso.

O que estou querendo dizer, basicamente, é que a contrarrevolução, orquestrada pelos EUA e, especialmente, pela Casa de Saud, reinstrumentalizou o que aconteceu na Tunísia e no Egito. Dispararam a contrarrevolução no Golfo Persa e hoje tentam subornar a ditadura militar no Egito para mantê-la lá como ditadura militar. Já deram quase 4 bilhões de dólares à junta militar chefiada por Tantawi, e mais dinheiro virá da Arábia Saudita. Enquanto isso, os EUA, na Ásia Central, tentam reorganizar-se, porque se deram conta de que estão perdendo terreno – e para quem seria? – para China e Rússia.

Isso está acontecendo ao ritmo de novos negócios de petróleo e gás que estão sendo construídos entre China e Rússia, entre o Turcomenistão e a China, e também entre todos esses atores e o Irã – Rússia e China já mantêm cooperação bem próxima com o Irã nos campos de petróleo e gás. Então, disseram os americanos, “OK. Como, então, reorganizamos a coisa toda?” 

Do modo como o Pentágono vê o mundo, a “Guerra ao Terror” está mais ou menos acabada para todas as suas finalidades práticas. E volta a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”: “os EUA temos de controlar tudo”. Significa controlar o Mar Mediterrâneo como “lago da OTAN”, projeto que já implementaram na Líbia e hoje tentam implementar na Síria; controlar o resto da África, enviar tropas para Uganda, como Obama fez há poucas semanas. Mas não se trata só de Uganda; trata-se de todo o coração da África Central, Uganda, Sudão do Sul, República Centro-Africana e Congo – muito petróleo, muitos minérios, muitas terras raras, todos esses recursos extremamente valiosos.

O Ocidente não pode estar ausente, e os EUA têm de manter-se no controle (“esqueçam a China”). Tudo isso implica ampliar o Comando dos EUA na África (AFRICOM), cuja sede está ainda em Stuttgart, Alemanha, mas logo, provavelmente, será transferida para Benghazi, Líbia.

Há poucos dias, conversei com gente da União Europeia em Bruxelas, dissidentes inteligentes que não concordam com o que está sendo feito lá. Disseram-me off the Record que, sim, haverá uma base militar na Líbia; e que o plano sempre foi esse, desde o início.

Haverá muitos “coturnos em terra”, coturnos europeus, turcos, do Qatar, dos Emirados Árabes Unidos, aqueles mercenários que estão sendo treinados pela empresa Blackwater – hoje, empresa Xe – nos Emirados Árabes Unidos. Todos esses farão parte daquela base, que será a base que a OTAN e o AFRICOM desejavam implantar no norte da África.

Em minha opinião, a principal resposta à sua pergunta é: a “Guerra ao Terror” foi cortina de fumaça que durou mais ou menos dez anos. Hoje, todos eles – o Pentágono, a CIA, o FBI, a Agência de Segurança Nacional, o governo Obama, todos eles – já dizem aos quatro ventos: “a al-Qaeda está operacionalmente desativada” (palavras deles).

Praticamente morreram todos, exceto al-Zawahiri e o novo chefe nomeado para o comando militar, mas nem lembro seu nome, e muda a cada semana. Morreram praticamente todos, já não estão no Afeganistão, têm poucos instrutores nas áreas tribais nos Waziristões, não estão operativos no resto do mundo. Mas, sim, estão no poder, hoje, em Trípoli, porque foram usados pelo ocidente. O pessoal de Benghazi foi treinado num campo militar ao norte de Kabul.

Estive lá no início de 2001; havia muitos líbios. E, sim, aqueles líbios são o Grupo de Combatentes Líbios Islâmicos [orig. Libyan Islamic Fighting Group, LIFG]. Foram treinados naquele campo ao norte de Kabul (e nem foi difícil chegar até lá). Hoje, estão no poder na Líbia. O comandante militar de Trípoli, Abdelhakim Belhadj, e seus homens, muito bem armados, militarmente muito bem treinados, não arredarão pé de lá. Esses jihadis ligados à al-Qaeda deixaram-se manipular pelo ocidente, sem oferecer qualquer resistência.

Você diria que a al-Qaeda, hoje um fantasma da força real que teve ‘nos bons velhos tempos’, foi usada como instrumento da política exterior dos EUA?

Pepe Escobar: Sim, sem dúvida foi! Foi a desculpa perfeita, porque não se afastaram do plano para tentar implementar a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” em todos os pontos nos quais conseguissem implementá-la. Estiveram muito ativos na Ásia Central – até há cerca de dois anos –, desde o governo Bush.

Não esqueça que Cheney visitava a Ásia Central a cada dois, três meses, naquela época. Os EUA tentaram negociar diretamente com os cazaques, com os turcomanos e, especialmente, com o Azerbaijão – a elite do Azerbaijão tem muitos laços com os Republicanos nos EUA. Dick Cheney esteve lá muitas vezes.

E o embaixador especial do governo Bush, que ainda trabalha para o governo Obama, Richard Morningstar, “embaixador do petróleo”, a serviço de Washington na Ásia Central, conhece muito bem todos os personagens. Os EUA tentaram pressioná-los para que não negociassem com os russos, nem com a China, para que deixassem de lado o Irã e negociassem com os norte-americanos. E está acontecendo o quê? Eles negociaram com a Rússia, negociaram com a China, não deixaram de lado o Irã e absolutamente não estão negociando com os EUA.

Em geral, as pessoas esperam, se você faz guerra, que você deseje vencer a guerra. Mas não é o que se vê na Ásia Central, cenário de guerras perpétuas. Manter esse cenário naquela região traria algumas vantagens para o “complexo petróleo-militar” (expressão do economista James K. Galbraith), em relação a China e Rússia? [Sobre a expressão “complexo petróleo-militar”, ver GALBRAITH, James K., “Unbearable Costs of Empire”, orig. The American Prospect magazine, Nov. 2002, inThird World Travelor].
Pepe Escobar: Sim, mas o problema é que o “complexo” não conhece os atores com os quais está lidando. O ‘complexo’ não considera fatores culturais, esquece, por exemplo, que os turcomanos são muito independentes e sempre preferirão negociar com interlocutores que falem a língua deles – o russo. Se Medvedev vai a Ashgabat, para conversar com o presidente Berdimuhamedov, e fala russo, a probabilidade de que se fechem negócios é muito maior.

Quanto aos chineses, vão a Ashgabat e dizem: construiremos qualquer coisa que vocês queiram que seja construída; construímos, nós mesmos, os gasodutos e oleodutos. Façam-nos um bom preço pelo gás de vocês e amanhã nós construiremos esse gasoduto, do leste do Turcomenistão ao oeste da China. Foi exatamente o que já fizeram e, há dois anos, o gasoduto já foi inaugurado. Aplica-se também aos africanos: a China negocia sem pré-condições e sem qualquer interferência na política interna dos outros países.

Durante algum tempo, os norte-americanos tentaram essa via, como com o Uzbequistão e aquele presidente que cozinha o próprio povo, Islam Karimov. Estiveram em negociações bem íntimas, com o governo Bush, e os EUA tiveram uma base militar em Karimabad, cidade próxima da fronteira afegã, e que foi muito útil para os norte-americanos. Mas depois se puseram a criticar os direitos humanos no Uzbequistão. O que disseram os uzbeques? Adeus base militar! Os uzbeques são parte do óleo-gasoduto que vai do Turcomenistão à China, via Uzbequistão. Os EUA mudaram um pouco de tática, mas, no fim, perderam a disputa.

Até que, afinal, os EUA começaram a perceber que perderam terreno para a Rússia e para a China, para ambos os países, na Ásia Central. Então trataram de se reposicionar no Golfo Persa, no norte da África e também dentro da África. A Líbia terá grande serventia para novas explorações de gás e petróleo. Os líbios dizem que manterão os contratos vigentes com os italianos – há um oleoduto do norte da Líbia até a Sicília, e há o óleo exportado para a Itália. Mas os novos contratos irão todos para a empresa Total, para a British Petroleum (BP) e para os norte-americanos, não para russos e chineses.

A Líbia foi, é e continuará a ser muito lucrativa para as majors ocidentais, as empresas ocidentais gigantes da energia. Na Ásia Central, a única esperança das majors é o Azerbaijão, porque as majors mais ou menos controlam os negócios de energia no Azerbaijão e, como já disse, as elites do Azerbaijão operam, basicamente, como satrapias de Washington. O problema é que as majors não controlam o Turcomenistão.

Estão pressionando o Turcomenistão, para construir o oleogasoduto Nabucco. Mas Nabucco custará uma fortuna, cerca de 20 bilhões de euros, e ninguém sabe de onde virá esse dinheiro, sobretudo agora, com a crise europeia.

Os turcomanos dizem que podem fornecer gás suficiente, mas ninguém sabe se eles têm de fato todo esse gás, porque estão fornecendo gás ao Irã, vendem muito gás para a China e continuam a vender gás pelo velho gasoduto soviético. Nabucco precisará de muito gás, e ninguém sabe se o Turcomenistão terá tanto gás. E os turcomanos dizem: vocês têm de provar que já reuniram os financiamentos necessários para o gasoduto, que pode ser construído nos próximos três ou quatro anos; enquanto não mostrarem o dinheiro, não podemos comprometer, nesse gasoduto, as nossas reservas de gás.

Isso significa que, se o Turcomenistão não tiver gás suficiente, os europeus terão de buscar o gás noutro lugar, e não poderá ser no Azerbaijão, a menos que gastem mais de 22 bilhões de dólares em novos investimentos.

Enquanto todos estão emperrados em negociações difíceis, os russos já construíram dois oleogasodutos: o North Stream e o South Stream. Putin está vencendo a guerra contra o projeto Nabucco, porque começou antes e negociou antes com os governos de Gerhard Schröder na Alemanha, para a construção do North Stream; e com o governo de Silvio Berlusconi na Itália, para a construção do South Stream. Esses dois oleogasodutos, um no norte e outro no sul, estão derrotando o projeto Nabucco, para o qual o dinheiro ainda não apareceu; não se sabe de onde poderá vir; não se sabe se o projeto encontrará todo o gás de que precisa para ser comercialmente rentável; e não se sabe onde encontrarão esse gás, se não for nem no Turcomenistão nem no Azerbaijão. A Turquia também quer para ela boa parte do gás, além dos impostos que poderá arrecadar pelo trânsito do gás por território turco. A confusão é completa, por ali.

Continuo a ler os pronunciamentos oficiais sobre Nabucco (o consórcio tem sede em Viena). A cada um, dois meses, aparece novo comunicado: que vai começar, que já têm os 20 bilhões de euros, que estará construído em 2017, a construção começará no próximo ano, mas é o mesmo que dizem há cinco anos, se não me engano com as datas.

Outro problema central é o tráfico de ópio/heroína no Afeganistão. O que você tem observado, o que pensa desse problema? Quem são os principais players desse comércio? Você também entende que todo esse caso é uma vergonha para o ocidente?

Pepe Escobar: Ah, sim. Um dos principais players nesse comércio sempre foi Ahmed Ali Karzai, irmão do presidente Hamid Karzai do Afeganistão. Encontrei-o depois do 11/9 em Quetta – ele sempre viveu em Quetta, sua base perfeita. Quetta é cidade fascinante. Costumo dizer que é a capital do contrabando e do tráfico de drogas de todo o oriente – e não é dizer pouco, porque Quetta compete com Hong Kong; de fato, compete com todos, com os russos, com a máfia ucraniana.

Em Quetta há uma máfia de transportes, uma máfia de heroína e, a partir de Quetta todas aquelas redes começam a diversificar-se. Uma rede atravessa o norte do Paquistão e chega ao Tadjiquistão; outra rede bifurca-se no Tadjiquistão e avança na direção da Ásia Central e, dali, avança até a Turquia.

E há as redes do ópio paquistanesas/afegãs e outra rede no Tadjiquistão que só cuida do refino. Todos, na região, sabem que essa é a rede da CIA. O que ainda não se conhece precisamente é o traçado, a trajetória, dessa rede. O mais provável é que parta do Afeganistão pelo Uzbequistão para chegar à Turquia, ou, talvez parta do Uzbequistão. Naquela parte do mundo, cada grupo tem sua rede de tráfico.

Que eu saiba, as máfias chinesas não têm rede no Afeganistão, mas, provavelmente, logo terão. Mas esse já é um problema terrível para os russos. Se se pergunta a funcionários russos qual o principal problema em relação ao Afeganistão, todos dizem a mesma coisa: a droga está em guerra contra nós; a origem dessa guerra é o ópio afegão. O número de russos mortos por causas associadas à heroína já é maior que as baixas que os russos sofreram na guerra do Afeganistão, nos anos 1980s.

Pepe Escobar: Você tem toda a razão. Os russos falam muito sobre isso na Organização de Cooperação de Xangai. Não se trata só de manter as bases norte-americanas fora daquela área – como os chineses também desejam manter. Os russos precisam também encontrar um modo de desmontar essas máfias do ópio, de drogas. É grave problema para a Rússia – como, aliás, também é grave problema para o Irã.

Para o Irã, por causa dos refugiados afegãos. Os refugiados afegãos moveram-se para o leste do Irã, basicamente. Se você vai a Mashhad, no leste do Irã, e visita os subúrbios de Mashhad... Ali é o centro do ópio; é o centro do contrabando do ópio. Atravessam o Afeganistão, via Herat, de Herat a Mashhad, hoje as estradas são excelentes, uma viagem de no máximo sete horas; e de Mashhad distribuem o ópio por todo o Irã. O problema das drogas também é grave no Irã. O Irã já é membro observador da Organização de Cooperação de Xangai e uma das principais razões pelas quais o Irã interessou-se pela OCX é tentar criar um mecanismo regional capaz de combater eficazmente o tráfico de drogas, uma real guerra ao tráfico naquela região. Aqueles países estão sofrendo terrivelmente.

Sendo assim, a heroína já está sendo processada no Afeganistão, não apenas plantada e colhida ali. Uma pergunta que sempre faço a mim mesmo: e quem fornece os materiais químicos necessários ao refino e processamento? Que eu saiba, não há fábricas de anidrido acético no Afeganistão, há?

Pepe Escobar: Honestamente, não sei. Mas acho que, sim, pode haver, provavelmente há, ajuda externa envolvida nessa produção. É verdade. No Afeganistão o refino é simplesmente impossível. As refinarias costumavam ser instaladas no Tadjiquistão ou no Paquistão, em Quetta, por exemplo, ou em Dushanbe no Tadjiquistão. O povo do vale do Panjshir tem contato com o tráfico, tudo está concentrado em Dushanbe, 40 minutos ao norte do Afeganistão, por helicóptero (e eles têm seus próprios helicópteros). Portanto, sim, eu diria que recebem ajuda externa. E, claro, a especulação sempre aparece: o ocidente estará ali, ajudando o tráfico? 

Não é acaso, que tantos especulem na mesma direção: onde há recursos energéticos e/ou tráfico de drogas ilícitas (p.ex. América do Sul, Ásia Central, Sudeste Asiático), os militares e a inteligência dos EUA nunca estão longe...

Pepe Escobar: É, estão, sim, por toda a parte. Embora, hoje, já não possam andar como antes pela América do Sul, em função do que acontece por lá, digamos, desde 2002. 

Foi um terremoto geopolítico, de fato: os sul-americanos, pela primeira vez na história do continente (depois da eleição, primeiro do presidente Chávez na Venezuela, e depois do presidente Lula no Brasil em 2002, depois no Equador e até no Uruguai e até com a eleição de Kirschner na Argentina), afinal decidiram. “OK. Agora, vamos agir juntos, agora que tantos governos eleitos por aqui são de centro-esquerda ou são, pelo menos nominalmente, governos progressistas.

Vamos pôr “ordem na casa”, disseram os sul-americanos; “vamos nos organizar através da UNASUL, por exemplo, a União dos Países Sul-Americanos; e do MERCOSUL, que é uma união de trocas e comércio regional. E vamos tentar resistir diretamente à interferência dos norte-americanos”. E isso, precisamente, é o que hoje se vê. Lembre que, em 2002, o presidente Chávez da Venezuela escapou de um golpe, organizado diretamente de Washington (e há muitas provas disso, até na Internet. Eva Golinger, advogada venezuelana-norte-americana, escreveu livros excelentes sobre aquele golpe). Em 2007, os EUA tentaram desestabilizar a Bolívia; e houve mais um golpe fracassado no Equador, há pouco mais de um ano.

Quero dizer: não está acontecendo como acontecia antes na América do Sul, porque agora, ali, há unidade política, econômica e geopolítica.

Mas que ninguém duvide: se o Pentágono encontrar uma abertura pela qual possa outra vez tentar intervir diretamente na Venezuela, eles tentarão de novo. O problema é que, agora, há especialistas russos na Venezuela, há empresários e especialistas chineses, e iranianos com interesses locais, na Venezuela. A Venezuela deixou de ser país que só negociava na América do Sul, embora, sim, tenham muitos negócios com Brasil, Argentina etc. Mas hoje a Venezuela vende também ao outro lado do mundo; e negocia diretamente com os dois principais concorrentes estratégicos dos EUA, além de o presidente Chávez ser amigo muito ativo da nêmesis dos EUA, o Irã. São mudanças muito significativas, que explicam muita coisa.

Desde 2002, a América do Sul está transformada em problema gigante para o Pentágono. Não surpreende que aqueles doidos que disputam a indicação a candidato dos Republicanos, tenham dito, no último debate televisionado, que o Hamás e o Hezbollah estão infiltrados por todos os cantos na América do Sul; que os EUA têm de precaver-se contra a América do Sul, porque os EUA já esqueceram que há muitos comunistas e terroristas na América do Sul. Mas o quadro mudou muito na América Latina, e não há nada de novo no que os EUA dizem.

Lars Schall: Mas você diria que é coincidência, essa conexão histórica entre recursos energéticos e drogas ilícitas? Por exemplo, na guerra do Vietnã.

Pepe Escobar: É verdade, com a Air America. A Air America não estava só defendendo civis no Laos e no Vietnã. Basicamente, foi uma operação de contrabando de heroína, que a CIA dirigia. – Mas a coisa não é necessariamente assim. 

Eu lembraria o caso da Colômbia, que foi completamente diferente. A Colômbia foi um caso de cartéis locais, que lutavam entre eles, pelo monopólio de exportar cocaína para os EUA. Nesse caso, eu diria que havia poucos interesses norte-americanos envolvidos nisso – vender equipamento e armas, sim, mas os norte-americanos não estavam à frente da batalha contra os cartéis. E quando os cartéis se fragmentaram, espalharam-se por todos os cantos. Agora, nos últimos três ou quatro anos, são peruanos que controlam a distribuição de cocaína na América do Sul, já não são os colombianos.

Deslocalizaram-se, por exemplo, também para o Brasil, como centro de refino e de exportação. Eu diria que, semana a semana, aumenta a apreensão de cocaína no Aeroporto Internacional de São Paulo, por exemplo. Se você multiplica isso pelo que realmente entra por ali, é incrível. Hoje, o aeroporto de São Paulo é um dos principais portos de embarque de cocaína para a América do Norte e para a Europa. Antes, foi a heroína que vinha da Ásia Central via Europa, e que desembarcava também no Brasil.

Engraçado: houve um tempo, nos anos 1980s, lembro bem, que havia uma conexão italiana: as pessoas traziam heroína de Milão para São Paulo, e levavam cocaína de São Paulo para Milão (risos). Isso há quase trinta anos.

O caso da Colômbia é muito diferente. Não há relação direta entre drogas e energia. E o mesmo acontece na Venezuela: ali, o único jogo em andamento tem a ver com energia: é uma batalha por energia. Hugo Chávez – e pense-se o que se pensar sobre ele – tem agido com muita inteligência, porque [pensou ele]... OK. Minha saída é negociar com outros players. E a Venezuela fez logo negócio gigante com a China. Hoje, é um dos maiores fornecedores de petróleo para a China.

Em breve estarão vendendo 1 milhão de barris de petróleo por dia, à China. E podem aumentar para dois milhões, facilmente, se os chineses investirem na região do Orenoco, explorando novos campos, o que os chineses farão. Não é prioridade agora, porque, no momento, os chineses estão concentrados na Sibéria, Ásia Central e África. Mas os chineses ainda têm esse plano C ou D para eles: a Venezuela.

E contam com o Brasil, como exportador de petróleo?

Pepe Escobar: Sim, com toda a certeza, por causa dos depósitos do pré-sal, no Brasil, que são uma espécie de “benção” complexa, de fato. A Petrobrás é vista em todo o mundo como das mais competentes empresas estatais de petróleo. O problema é que a Petrobrás tem de desenvolver tecnologia específica para perfurar a camada de sal, para extrair o petróleo. É operação extremamente complexa e extremamente cara. Dizem que a extração começará em 2017, mas duvido.

O último número que vi, em termos do investimento necessário, faz alguns meses, era algo como 220 a 240 bilhões de dólares de investimentos ao longo de poucos anos, para começar a extrair o petróleo do pré-sal. Todos querem participar. A Chevron já está lá, a Exxon Mobil, a Gazprom quer vir e, claro, os chineses. E tenho certeza de que, quando os brasileiros começarem a lançar projetos, os chineses estarão na primeira fila, com todas as suas empresas, CNPC, CNOOC, todas elas.

Mas é projeto de longo prazo para os chineses, é claro, porque, se se analisa a coisa com realismo, não haverá petróleo do pré-sal antes de 2019/2020. Os chineses estão pensando à frente.

Ouvimos falar muito dos BRICS. Você entende que seja só um bom nome, inventado por Goldman Sachs, ou há mais sob esse nome, uma estratégia abrangente, alguma coisa desse tipo?

Pepe Escobar: Ainda não há uma estratégia abrangente. Foi só um bom nome, em 2001/2002. Agora já é mais que isso, porque eles se reúnem com regularidade, não só no encontro oficial anual, mas os ministros de Relações Exteriores trabalham juntos, os vice-ministros encontram-se, como encontraram-se recentemente em São Petersburgo. Todos têm interesses semelhantes. Para Rússia e China, trata-se de manter os EUA longe de seus quintais, quer dizer, basicamente, longe da Ásia Central e das ex-repúblicas soviéticas.

Ao Brasil, o que interessa é manter os norte-americanos fora da América do Sul, o mais que seja humanamente possível, considerando que Brasil e EUA mantêm relações muito, muito próximas, e os EUA ainda vêem o Brasil como aliado-chave na América Latina. O jogo das relações exteriores entre Brasil e EUA é extremamente complicado.

À Índia, o que interessa é manter-se no mesmo grupo das demais nações emergentes, sem antagonizar demais os EUA. A Índia também tem de jogar um jogo difícil.

A África do Sul só foi incluída, basicamente, porque os demais precisavam dar um salto continental, queriam estar representados em três continentes. Do ponto de vista dos BRICS, eu diria – e, de fato, já discutiram isso em Brasília, no ano passado – que o quinto BRIC seria a Turquia, seria o grupo BRICT. Mas, no último momento, incluíram a África do Sul. Entenderam que precisavam acrescentar ao grupo a maior economia da África, e porque Brasil, África do Sul e Índia já comerciavam entre eles, muito mais, nos últimos quatro anos, que nos 400 anos anteriores. Brasil e África do Sul estão-se integrando muito bem. E a África do Sul é a ponte entre o Brasil e a Índia. Encaixava-se bem aos outros três players.

Mas acho que, em breve, os BRICS talvez incluam – digo “talvez”, porque começaram a discutir, mas ainda não sabem como fazer, em termos formais – a Turquia, a Indonésia e a Coreia do Sul. Que são candidatos naturais, não há dúvidas. Dois na Ásia e um no Oriente Médio, na intersecção entre Europa e Ásia.

Começaram a conversar sobre maior integração em termos das suas economias, trocas culturais, todo esse blá-blá-blá. Agora, estão pensando: OK. Temos de dar um soco no mesa, mesmo que, no começo, seja um soco soft. Já agiram juntos no caso da Líbia, quando se abstiveram de votar a Resolução UN 1.973 – o que já foi um grande passo. Foram condenados por isso, mas sem alarido, por europeus e pelos EUA. Mas raciocinaram que aquela não podia ser uma linha vermelha; no máximo uma suave linha amarela. Nenhum deles pode antagonizar muito os EUA.

Depois, veio a mais recente proposta para que o Conselho de Segurança da ONU votasse o caso da Síria. Os BRICS imediatamente perceberam que “não, não, isso não pode ser: aí está a linha vermelha”. E isso, por várias razões. Porque Rússia e China têm muitos bons negócios com a Síria. Brasil e Síria são muito próximos. Milhões de sírios vivem no Brasil, além de sírio-libaneses. No Brasil se diz sírio-libaneses. São quase indistinguíveis para muitos brasileiros, porque começaram a chegar nos anos 1920s, 1930s e também depois da II Guerra Mundial. Todos vivem perfeitamente integrados na sociedade brasileira, e há muitos negócios entre Brasil e Síria. Essas razões são algumas das que explicam também porque todos aqueles países têm posição comum.

Quanto à África do Sul, é evidente. Na primeira votação, da Resolução da ONU, foram pressionados por Obama. Obama telefonou ao presidente Zuma, falaram por duas horas, e Obama disse: você tem de votar conosco, ou vão ter problemas. Zuma votou contra vontade. Adiante, participou da delegação da União Africana para tentar negociar a paz entre Gaddafi e os “rebeldes”. Gaddafi aceitou tudo; os “rebeldes” disseram não. Por quê? Porque a OTAN mandou que dissessem não. Quer dizer, a África do Sul também tinha seus motivos. 

A Síria é a linha vermelha. Por isso estão agora começando a organizar a abordagem conjunta, do grupo, em relação ao ocidente atlanticista, de modo muito mais bem coordenado. E em termos econômicos, estão pressionando o Fundo Monetário Internacional, para que dê mais peso aos votos do Brasil e da China.

O FMI tem três nomes na posição de diretores regionais com direito a voto, e China e Brasil dizem, há anos, que precisam de mais diretores, para que seus votos pesem mais. Tudo isso está em discussão. Lembre que o ministro das finanças (Fazenda) do Brasil disse “e se, talvez, encontrássemos um meio para ajudar as economias europeias?” Foi como dizer: “O problema é do FMI. Nós queremos participar, queremos ter mais votos, mais peso nas votações. Depois, decidiremos se vamos ajudar ou não. Mas terá de ser feito pelo mecanismo do FMI”.

Não há dúvidas de que, sim, estão agindo de modo muito mais coordenado do que há, digamos, dois anos. Não demorará, e os BRICS serão BRICTS, BRICTIISS, BRICS expandidos. Mas hoje o grupo está configurado como um contrapoder, em termos geopolíticos, em termos de atrair o mundo em desenvolvimento; porque os BRICS exercem enorme fascínio sobre o Movimento dos Não Alinhados [orig. Non-Aligned Movement, NAM], por exemplo; e sobre outros países latino-americanos, vários países do Oriente Médio, vários países do Sudeste Asiático, um fascínio imenso... E contra uma “liga” atlanticista, EUA-OTAN (é praticamente uma coisa só, porque os EUA controlam a OTAN).

A OTAN aliou-se às monarquias do Golfo Persa, ultrarreacionárias e ultrarrepressivas. O realinhamento do tabuleiro de xadrez é algo hoje muito suspeito, porque hoje esses países, especialmente o Qatar e os Emirados Árabes Unidos são subseitas da OTAN. Escrevi recentemente que começava a considerar a possibilidade de falar sempre de OTANCCG ou CCGOTAN. CCG é o Conselho de Cooperação do Golfo, que costumo chamar de Clube Contrarrevolucionário do Golfo, porque é o que o que é. [23/11/2011, Pepe Escobar, “A pedregosa estrada de Damasco” (Asia Times Online), em português].  

De fato, a fusão entre OTAN e CCG já é total, hoje. Se se inclui a fusão entre o complexo industrial-militar ocidental nos EUA, e o sistema de defesa dos sauditas, que também já é fusão total, pode-se dizer que o Pentágono e o CCG já são uma e a mesma coisa.

Os BRICS veem tudo isso. E para alguns daqueles países é extremamente complicado. Para a China, por exemplo, porque seu principal fornecedor de petróleo é a Arábia Saudita. Atualmente, a Arábia Saudita está ultrapassando Angola. A Venezuela já está entre os cinco maiores. A Líbia não estava entre esses cinco maiores fornecedores, motivo pelo qual disseram ‘OK, agora, não. Quem sabe, adiante.’ Mas como eles organizam o relacionamento entre Pequim e Riad? Os chineses veem que Riad está completamente alinhada com a agenda do Pentágono. E, ao mesmo tempo, os chineses dependem do petróleo dos sauditas. Isso explica, dentre outros fatores, por que os chineses estão tão ansiosos para conseguir depender cada vez menos no petróleo do Oriente Médio.

Tudo isso implica mais negócios com o Irã. Meu palpite, mais ou menos bem informado, é que, em breve, os chineses irão a Teerã e perguntarão: ‘De quanto dinheiro vocês precisam para ampliar muito suas instalações de gás e petróleo? Nós pagamos, desde que vocês negociem conosco.’

Isso explica o oleogasoduto do Turcomenistão à China; isso explica os dois oleogasodutos da Sibéria à China; e isso explica a China estar em Angola e também na África Central; e isso explicará que a China chegue ao Brasil e diga: De quanto dinheiro vocês precisam? A relação sauditas-China é muito complicada para Pequim, o que significa que, por hora, a China não pode antagonizar a Arábia Saudita em nenhum campo.

Ainda sobre os BRICS: você observou o fato de que os bancos centrais da Rússia, da China e da Índia, e também alguns bancos centrais da América do Sul, estão comprando muito ouro?

Pepe Escobar: Sim, claro! Estão agora comprando ouro, e ainda têm o Plano B, que é uma cesta de moedas, em termos de um sistema internacional de moedas. Os russos e chineses querem, os brasileiros querem, e a cesta incluirá provavelmente o dólar, o euro, o yuan, talvez o rublo e também o real, talvez o yen, mas os japoneses não entraram, até agora, na conversa. Por enquanto, se trata, é claro, de comprar ouro, inclusive os que não estão no jogo, mas estão conectados a ele, como a Venezuela. Não esqueça que a Venezuela está repatriando todo o ouro que o país tinha depositado em bancos europeus. Uma primeira remessa de ouro repatriado já está em Caracas.

Você acredita que possa vir a haver algum tipo de conexão, entre a cotação do petróleo e do ouro, no futuro próximo?

Pepe Escobar: Sinceramente, não sei. E sabe por quê? Eu diria que essa conexão dependerá de um movimento ligado a abandonar o petrodólar. É movimento que já começou há alguns anos. O Irã quer muito fazer, hoje como antes. A Rússia já disse que quer. A Venezuela já disse, na América do Sul, sim, nós também queremos. Mas acho que é solução “bomba atômica”. Pergunto: você consegue imaginar o dia em que os grandes produtores de petróleo dentro da OPEP digam: “Chega de petrodólar. A partir de agora negociaremos com nossas próprias moedas ou com as moedas de uma cesta de moedas”?. Basicamente, é o fim da hegemonia dos EUA.

O país que tentar, estará frito.

Pepe Escobar: É. O mundo todo estará frito. Vejo essa opção como opção ‘bomba atômica’. Há poucos anos, quando o Irã estava implantando uma Bolsa de Energia, de fato, a ideia já estava presente lá, desde 2008 [18/2/2008 “Oil Bourse Opens in Kish”, Fars News Agency, em inglês].   Lembro que, em 2005, entrevistei o sujeito encarregado de organizar e implantar essa Bolsa de Energia em Teerã. Foi uma entrevista fantástica. E, logo depois, tive uma briga terrível com o então editor de Asia Times, porque ele disse “Se publicarmos isso, amanhã os EUA bombardeiam nosso website.

Os iranianos disseram: é nosso primeiro passo, para que as pessoas comecem a comprar contratos de petróleo aqui, na nossa Bolsa, não em New York ou em Londres. E eu disse a ele: E vocês sabem o que estão fazendo, se a coisa evoluir? Dia seguinte os EUA bombardeiam Teerã. E ele me disse: “Sabemos dos riscos. O homem que está construindo esse mecanismo para nós é um ex-corretor que operava em Londres.” Foi negócio extremamente complicado, essa é a verdade.

Depois da minha entrevista, ainda se passaram três anos. Como você disse, a Bolsa só foi implantada em 2008. É uma Bolsa muito pequena, mas, do ponto de vista dos iranianos, é só um começo. Eles gostam dessa Bolsa. Começaram só com petroquímicos e querem, no futuro, negociar petróleo e gás. Estavam especialmente interessados em atrair compradores do mundo em desenvolvimento, além de Rússia e China, que poderão comprar produtos da energia iraniana diretamente do Irã. Tenho certeza de que Rússia e China também adoraram a ideia. Mas, no momento, é só um embrião de algo muito maior, que virá depois.

Você usa as expressões “Oleodutostão  do Grande Oriente Médio” e “Grande Jogo 2.0” na Ásia Central. É útil conhecer o bom velho Halford Mackinder (geógrafo britânico, chamado de “o pai da geopolítica”), para pensar o “Oleodutostão”?

Pepe Escobar: Não. Quem conhece bem Mackinder é a turma de Brzeziński e o pessoal das agências de segurança nacional em Washington. Só eles acham que podem “aplicar” Mackinder e vencer (risos). Os russos e os chineses diriam: “Não na nossa região, caríssimos. Aqui, a coisa é diferente. Nós temos os recursos. A Rússia é potência continental. A China, sozinha, é um reino e uma civilização. Aqui não admitimos interferência externa, vocês nunca controlarão nossa parte da Eurásia. Podem controlar a parte “euro” da Eurásia, mas ela acaba no Bósforo. À direita do Bósforo, a Turquia tem ambições regionais, o Irã tem ambições regionais, nós temos nossas ex-repúblicas soviéticas, que ainda vemos como nossos satélites.”

O sudeste da Ásia está hoje ligado à China, em termos de comércio, negócios. Eu diria até que partes do sudeste da Ásia já se estão convertendo em subseitas da China.

Lembre que, durante o Milagre Asiático, quando o Banco Mundial lançou aquele famoso livro, em 1993, O Milagre Asiático, o Japão estava à frente, com os quatro tigres asiáticos atrás, depois os subtigres, e a China estava muito atrás, na fila. Hoje, em 2011, a coisa inverteu-se completamente: a China vem à frente, imensíssima, e atrás da China vêm os ‘sub’, tentando manter o passo e obter negócios. A diáspora chinesa é essencial em todos aqueles países.

Eles controlam a maior parte da economia na Indonésia, controlam quase toda a economia na Tailândia, casamentos mistos, tai-chineses, controlam quase toda a economia nas Filipinas, controlam grande parte da economia na Malásia, controlam toda a economia em Cingapura. Tigres? Não. Minigansos. A coisa está completamente invertida.

Por tudo isso, não vejo como se possa “aplicar” Mackinder. Pensaram nisso, no governo Bush, tomado de húbris, e porque diziam, lembra-se, diziam isso dia sim, dia também: “Nós criamos nossa própria realidade e vocês, resto do mundo, que nos acompanhem.” Supuseram que conseguiriam implementar sua estratégia de grande jogo na Ásia Central, construindo aquele oleogasoduto no Afeganistão, o TAPI – Turcomenistão, Afeganistão, Paquistão, Índia, contornando o Irã, a Rússia e a China.

Supuseram que pudessem forçar os turcomanos a vender gás a empresas ocidentais, não à China, ou a ligarem-se à rede russa de oleogasodutos. Estavam ainda embriagados pelo sucesso que obtiveram com o oleogasoduto BTC (Baku-Tbilisi-Ceyhan) e diziam que seria o começo de vários dutos que contornariam o Irã.

Mas tudo isso foi no começo do governo Bush até 2003/2004, depois do “sucesso” da guerra do Iraque. Hoje, poucos anos depois, como já conversamos, os americanos já não conseguem ganhar coisa alguma. De fato, a Organização de Cooperação de Xangai, que é mecanismo para conter essa proliferação de iniciativas dos EUA na Ásia Central, fortalece-se dia a dia.

Em termos de negócios de energia, a Rússia, o Irã, a China, o Turcomenistão, todos estão negociando entre eles. Obviamente, há espaço com a Europa, mas eles não podem negociar com a Europa, no caso do Irã, por causa das sanções; e no caso do Turcomenistão, porque construir um oleogasoduto como Nabucco, de mais de 20 bilhões de dólares, é inexequível. Para dar-lhe uma ideia, o custo do BTC, 4,5 bilhões de dólares naquele tempo, e naquele tempo todos diziam: é ridículo construir um oleogasoduto como esse, quando podemos ter rota mais curta a partir do Irã, que custará dez vezes menos que aquilo. E constroem, mesmo assim. Hoje, já é 500% mais caro que o BTC.

Verdade é que os EUA não estão vencendo coisa alguma; no Afeganistão, estão atirando no próprio pé, porque agora já antagonizaram não só o Paquistão, o que fizeram ao bombardear o país, nos últimos anos, na guerra dos drones; já antagonizaram os próprios afegãos, que realmente queriam acertar alguma coisa com os americanos. Os líderes tribais já diziam “vamos conversar com os norte-americanos sobre o tipo de base que querem depois que se retirarem, em 2014”. Queriam discutir o assunto.

Hoje? Esqueça, porque o Paquistão não quer mais discutir, estão fartos; e o Paquistão e a China estão cada vez mais próximos, mais próximos. Os chineses vão explorar essa ravina entre Washington e Islamabad. No Afeganistão, a confusão será total. Eles não querem saber de bases norte-americanas, tenho certeza, depois de 2014. O Pentágono, assim, tem de impor as bases, contra o Afeganistão; não se conhece ainda o mapa do caminho, tampouco, para fazer isso. 

Assim sendo, se você analisa em termos de sucessos do novo grande jogo ao estilo dos EUA na Eurásia, já depois de quatro ou cinco anos, não se vê grande coisa (risos).

Se consideramos a questão: “Por que as guerras acontecem?”, você diria que o fato de os bancos estarem no topo da lista dos que se beneficiam com as guerras é parte importante da resposta, por exemplo, até agora?

[Nota do editor: para conhecer o contexto, ver J.S. Kim:Inside The Illusory Empire Of The Banking Commodity Con Game”, in The Underground Investor, 19/10/ 2010, em inglês”: 
“O Federal Reserve dos EUA cria dinheiro para financiar a guerra e empresta o mesmo dinheiro ao governo americano. O governo americano, por sua vez, tem de pagar juros pelo dinheiro que toma emprestado do Banco Central para custear a guerra. Quanto maiores as apropriações de guerra, maiores os lucros dos banqueiros.”]

Pepe Escobar: Concordo, mas só se houvesse grandes apropriações de guerra, se o butim fosse alto. No Iraque não foi. O butim a ganhar no Iraque seria o petróleo que pagaria a guerra e, mais que isso, garantiria fornecimento de petróleo para os EUA pelos próximos mil anos, o novo Reich Americano, baseado no petróleo do Iraque. Não funcionou.

O que aconteceu no Iraque foi uma fascinante lição histórica. No começo, os neoconservadores pensavam, obviamente, porque nada sabem, absolutamente nada, sobre o Oriente Médio, sequer viajam, não conhecem; mas pensaram: “Ora, vai-nos custar praticamente nada; faremos os iraquianos pagar por tudo; e depois, quando o petróleo começar a chegar, pagarão o que não tiverem pagado antes”. Lembre-se do que diziam: “Somos a nova OPEC”. Isso, no final de 2002, começo de 2003. Também não funcionou. 

Hoje, vemos uma variante, digamos, do modelo: guerras pagas por potências estrangeiras. A China está financiando as guerras no Iraque, no Afeganistão, parte da guerra na Líbia (não custou muito, mas, de qualquer modo, sim, a guerra na Líbia), a guerra na Somália, a guerra no Iêmen, a próxima guerra em Uganda ou no Sudão, que os EUA resolvam começar. Basicamente, todas essas guerras são financiadas pelos chineses, quando compram bônus do Tesouro americano. É uma variante do modelo.

Em artigo para a al-Jazeera [Why the US won't leave Afghanistan”, Al Jazeera, 12/7/2011, em inglês]  , você citou um estudo sobre o custo da Guerra ao Terror, publicado pelo projeto Eisenhower da Brown University. Lembra? 
Pepe Escobar: Sim, lembro.

E o custo era quatro bilhões?

Pepe Escobar: Era, dependendo das variáveis do cálculo, dependendo dos custos médicos para tratar nos EUA os veteranos feridos, que só aumenta, e aumenta sempre, porque eles ainda têm de pagar pensões a eles. O custo varia hoje entre quatro e seis trilhões de dólares. Quer dizer: o que os EUA ganharam desses de quatro a seis trilhões de dólares, até agora? Até agora, pode-se dizer, só ganharam a Líbia, que não é, exatamente, prioridade para os EUA.

Era parte do plano original dos neoconservadores – começaria com o Iraque, depois Líbano, Síria, especialmente o Irã. Mas, até aqui, só ganharam a Líbia.

Por isso, precisamente, a Síria é tão importante: porque a Síria é passagem para o Irã, e isso ainda é o mesmo que diziam os neoconservadores em 2002, e ainda é parte da doutrina da Dominação de Pleno Espectro. Volta-se sempre aos mesmos temas, porque esses são os temas básicos do que vemos hoje.

Lars Schall: Você acha que a guerra na Líbia deve ser incluída entre as Guerras por Recursos, não só por causa do petróleo e, talvez, também, por causa da moeda-ouro que Gaddafi queria lançar, mas também por causa do projeto Grande Rio Feito pelo Homem [orig. Great Man Made River]?

Pepe Escobar: Sim, sim, eu ia falar exatamente sobre isso. Já é Guerra pela Água. Já é. Há alguns meses, comecei a escrever uma longa matéria sobre as futuras guerras pela água. Mas vi que já não são “futuras guerras”: já estão aí, já são presentes. Se se examina bem, a guerra da Líbia foi a primeira grande guerra pela água. Haverá muitas outras no Oriente Médio, no sul da Turquia, Israel-Palestina. Mas a guerra da Líbia foi a primeira. E é terrível, por causa do Projeto Great Man Made River – mais de 20 bilhões de dólares, financiados integralmente pelo estado líbio de Gaddafi, com muita tecnologia canadense.

E nem um vintém do Fundo Monetário Internacional.

Pepe Escobar: Isso, sobretudo! Nem um vintém do FMI, nem um vintém daqueles esquemas do Banco Mundial, pelos quais você é condenado a pagar juros até morrer, vezes três. Gaddafi construiu o projeto com recursos líbios, importou toda a tecnologia de que precisou, e os dutos lá estão, enterrados no subsolo do deserto do sul, para levar a água, do subsolo do deserto, até as áreas habitadas no litoral da Líbia. É projeto e realização absolutamente fantásticos, porque há reservas gigantescas de água potável no subsolo do sul do deserto líbio, suficiente para mil anos, segundo estimativas. Mil anos de água potável. Imagine!

O projeto não está totalmente completo; mas acho que 80% já está pronto. As três gigantes da água no planeta são empresas francesas. Em minha opinião, aí estão 99% dos motivos pelos quais os franceses envolveram-se na guerra da Líbia: querem privatizar, só para eles, aqueles mil anos de água potável e, depois, revenderão a água. E lá estão Sarkozy e os interesses do complexo industrial-militar francês: queremos mais gás e mais petróleo para a Total. Eles reclamam há muito tempo. Sempre quiseram a parte do leão das exportações de energia da Líbia.

Há uma aliança entre o Qatar, o complexo industrial-militar na França e Sarkozy – que não passa de lacaio; e o Qatar queria sua parte nos negócios e no comércio no norte da África. E havia também os interesses da OTAN e do AFRICOM, que queriam fixar uma cabeça de praia. Havia ali muitos interesses! Gaddafi não teve qualquer chance de vencer, em disputa contra tantos interesses, o eixo do Pentágono, a OTAN, países europeus chaves, França e Inglaterra, as monarquias do Qatar, Emirados Árabes Unidos e a Casa de Saud... que também queriam derrubar Gaddafi, de fato, desde 2002, quando Gaddafi e o rei Abdullah desentenderam, antes da invasão do Iraque.

Gaddafi não teria meios para derrotar todas essas forças, todos esses poderosos interesses que se mobilizaram contra ele. Queriam renegociar contratos, queriam novos contratos de gás e petróleo, só para as empresas europeias e norte-americanas, talvez também algumas empresas turcas, e absolutamente nada para os países BRICS. Gaddafi foi entrevistado por jornalistas alemães dois ou três dias antes da resolução “humanitária” ser aprovada. E disse claramente: “Se vocês nos atacarem, todos os futuros contratos irão para os países BRICS”. Resultado? Três dias depois, a Líbia foi atacada. Resultado óbvio.

Você também citou, também muito importante: o dinar de ouro, de Gaddafi. Porque o dinar de ouro poderia vir a ser uma moeda africana, poderia financiar projetos de desenvolvimento na África Subsaariana. Gaddafi já estava trabalhando nisso, financiando muitos projetos em países subsaarianos. E já deixara para trás, completamente, o sistema de Bretton Woods. Do ponto de vista de Washington, do Banco Internacional de Compensações [Bank of International Settlements], essa gangue toda... Decidiram que nada daquilo era admissível. Gaddafi foi condenado ali. E não esqueçamos que Saddam também já estava vendendo petróleo em euros no Iraque, no final de 2002. Essa foi das principais causas da invasão do Iraque.

Você acha que os “rebeldes” de Benghazi acertaram, ao criar um banco central em harmonia com os bancos centrais ocidentais?

Pepe Escobar: Era o que queriam fazer. Aquele pessoal do Conselho Nacional de Transição, de fato um saco de gatos – oportunistas, ex-funcionários de Gaddafi, islamistas ligados à al-Qaeda da Cirenaica, exilados que viviam no estado de Virginia, nos EUA. Tenham a santa paciência! Aquilo lá é uma trágica, sangrenta piada. E, claro, desde o início houve uma conexão-Qatar: um dos conselheiros de Sheika Moza, esposa do Emir do Qatar, fazia a ligação entre o Qatar e o Conselho Nacional de Transição.

Por isso o Qatar conseguiu esse banco central independente em Benghazi. Claro que houve influência do Qatar, porque queriam pôr um pé no sistema financeiro no norte da África: estão expandindo seus negócios. O Qatar é um mini-império em rápida expansão. É muito, muito impressionante. Lembro de Doha, há dez anos, era outra coisa. Lembro muito bem. Costumava ir ao Iraque, via Qatar. Vi o Qatar crescer, ano após ano. Hoje, quando se chega em Doha, é como chegar a uma mini Hong Kong.

E estenderam seus tentáculos por todo mundo: na Europa, nos EUA, no Oriente Médio e, claro, também no norte da África, e comerciam pesado com a Ásia. Hoje, já lançam seus olhos para o Brasil. É muito impressionante. O avanço do Qatar no norte da África é muito impressionante. Já estão no norte da África e, em pouco tempo, como esperam, estarão em toda a África: “queremos comerciar com todos, temos ótimo sistema bancário, vendemos gás a quem queira comprar”. Mini império em formação.

O que se deve esperar, no próximo ano, em relação a Síria e Irã? São aliados, não são?

Pepe Escobar: São. E essa é a pergunta de multitrilhões de dólares. Tenho planos de ir ao Irã, logo que seja possível. O difícil é conseguir o visto de jornalista. Desde o Movimento Verde, em 2009, está muito difícil. Esse visto de jornalista é indispensável, porque, sem ele, não se consegue falar, por exemplo, com militares do Corpo dos Guardas Revolucionários Islâmicos, nem com gente do governo. Vou tentar novamente, porque quero muito conversar com comandantes dos Guardas Revolucionários, com gente da indústria do petróleo e, claro, quero falar também com iranianos médios, com “a rua”, como sempre fiz, porque gosto de fazer.

Ao norte de Teerã, você pensa que está na Califórnia. Ao sul de Teerã, você volta ao “núcleo duro” do Oriente Médio. Há dois universos, na mesma cidade e é espantosa a amplidão do espectro de opiniões que se recolhe, numa corrida de táxi de 40 minutos. Fala-se com gente que diz que esfolaria Rafsanjani no instante em que se encontrem; e gente que defende apaixonadamente os aiatolás mais duros; e gente que acredita que, sem o Movimento Verde, o mundo se acaba. Teerã é um universo.

Os ecos que recebo de amigos que vivem lá, e de iranianos que me mandam notícias e comentários são claros: as pessoas continuam consumindo, vivendo a vida normalmente, a inflação aumenta, os preços subiram muito, mas todos querem sair, tentar comprar seus iPads contrabandeados da China, querem o melhor carro europeu novo que consigam comprar, querem continuar a comer carne – o que é engraçado, porque a carne que importam do Brasil é mais barata, nos açougues em Teerã, que a carne iraniana, veja só!

Mas, ao mesmo tempo, eles sabem que alguma coisa está para acontecer. Pode acontecer de Israel atacar o país. Talvez o ataque venha de EUA-Israel. Há risco de as instalações nucleares serem atacadas. Mas muita gente teme que o ataque vise também a infra-estrutura civil. “Vejam o que aconteceu no Iraque”, dizem vários deles. No Iraque, atacaram instalações e prédios civis. É verdade. Vi lá, eu mesmo, que a infra-estrutura civil do país foi reduzida a ruínas.

As pessoas estão esperando o pior. Tentam manter a atitude, mas todos logo reconhecem que há uma disputa de poder dentro do regime, entre o grupo de Ahmadinejad e o grupo ultra linha-dura dos guardas revolucionários, que se opõem a Ahmadinejad, porque Ahmadinejad não se opõe a algum tipo de entendimento com o ocidente. O pessoal da Guarda Revolucionária quer o confronto.

É situação potencialmente muito perigosa. Por quê? Porque o Supremo Líder, o aiatolá Khameinei, apóia os Guardas Revolucionários, contra Ahmadinejad. O aiatolá quer que o Irã seja respeitado pelo que é – República Democrática Islâmica. Pode-se concluir que não se opõe ao confronto. É situação extremamente perigosa, porque qualquer incidente que haja por lá pode ser imediatamente usado como casus belli e resultar em ataque israelense-anglo-americano, digamos assim.

Os iranianos estão bem cientes desse risco, e preocupam-se com essa disputa dentro da cúpula do regime. Ao mesmo tempo, em 2012 haverá eleições parlamentares; e em 2013, eleição presidencial. Até o momento, pelo menos, o candidato favorito dos eleitores é Larijani, ex-negociador da questão nuclear, amigo íntimo e protegido de Khamenei. Tudo isso sugere que os linha-dura estão firmes no poder. Por incrível que pareça, Ahmadinejad, nesse momento, está mais ou menos marginalizado. Os linha-dura o veem como moderado, excessivamente conciliador, na relação com o ocidente.

Por tudo isso, a situação interna no Irã é muito preocupante. E eles sabem o que pode acontecer na Síria; sabem que a Síria é uma espécie de atalho, o caminho mais curto até o Irã. Mas, ao mesmo tempo, dizem, segundo a avaliação feita pela linha mais dura do regime, que a Síria não será atacada. O que dizem é que o ocidente não precisa do ‘atalho’ sírio: podem perfeitamente atacar diretamente o Irã. Por isso, preparam-se para enfrentar essa ameaça. Tudo, ali, é extremamente preocupante.

Você vê quadro semelhante também em Israel?

Pepe Escobar: Não sei. Tenho muitos amigos judeus na América do Sul, nos EUA, na Europa, que vão e vêm, visitam Israel muito frequentemente, e, quando voltam, dizem: as pessoas estão desorientadas, em Israel. Não sabem como lidar com a Primavera Árabe, o governo não sabe o que fazer com a Primavera Árabe, não sabem sequer o que fazer com a não-primavera na Síria. Parece que em Israel as pessoas temem que o que venha depois de Assad seja ainda pior do que o que se vê hoje. Por exemplo, um governo da Fraternidade Muçulmana na Síria. Israel está numa situação de não-não.

Preferem continuar a enfrentar o demônio conhecido, que é demônio hoje enfraquecido, o regime Assad. Há movimento da sociedade civil em Israel, considerável, contra a corrupção, a inflação, a carestia, e movimento também antiguerra e antigoverno.

Além disso, Israel está sendo governado por um grupo que é refém daquele terrível lobby de colonos fundamentalistas. São de extrema direita, imigrantes ucranianos à Lieberman, são horríveis. Há uma esquerda progressista em Israel, ouve-se falar deles, vez ou outra, pela imprensa, mas estão marginalizados. Mesmo dentro dos EUA: os judeus progressistas nos EUA também estão mais ou menos marginalizados, porque todos os discursos são controlados pelo AIPAC.

Se se ouve rádio, se se leem os jornais da mídia dominante, ou pela televisão, é um release do AIPAC depois do outro. Não se ouve uma voz de judeu progressista que diga “o que vocês estão fazendo é loucura. Temos de sentar e conversar sobre a Palestina, sobre as colinas do Golan, sobre o Irã.” Essa posição é absolutamente minoritária.

E a maioria é apoiada também pelos evangélicos e cristãos novos, nos EUA, que temem o Armaggedon.

Pepe Escobar: Exatamente. A maioria do establishment quer um Eretz Israel, uma Israel maior. E há os religiosos doidos, que dizem: “OK. Para apressar o Armaggedon, a melhor solução é declarar guerra a todos os vizinhos”.

Os doidos administram o hospício.

Pepe Escobar: É uma loucura. Eu diria que, digamos, desde o início da Primavera Árabe, o ano de 2011 foi o ano em que os doidos assumiram completamente a administração do hospício. E por isso, acho eu, 2012 será ano realmente terrível em todo aquele arco: norte da África, Oriente Médio e Ásia Central. Na Ásia Central, basicamente o Af-Pak, porque a situação ali, no Af-Pak tem tudo para degenerar completamente, muito depressa.

Qual sua avaliação do recente ataque ao Paquistão, pelas tropas da OTAN? [Ver “'Mistakes made': Pentagon 'regrets' slaughter of 24 Pakistani troops”, in Russia Today, 22/12/2011, em inglês].
 
Pepe Escobar:
Essa questão é extremamente complexa, porque acho que há algum motivo oculto, por trás daquele ataque, que ainda não sabemos qual seja. Talvez o ataque tenha sido provocado por algum paquistanês, talvez a própria OTAN tenha criado uma provocação, para ter melhor pretexto para aprofundar a campanha de demonização do Paquistão, tentar provocar um golpe militar, e conseguir pôr no poder, no Paquistão, a facção dos generais pró-EUA. A situação ali ainda está muito nebulosa.

Seja como for, há pelo menos um detalhe, por trás daquele ataque, que não faz sentido algum: a OTAN conhece perfeitamente a localização de todos os pontos de passagem que os paquistaneses controlam nas áreas tribais. A OTAN tem todos os mapas, todas as coordenadas. É absolutamente inverossímil que bombardeiem um posto paquistanês de fronteira, porque sabem exatamente onde está cada posto. A situação ali é completamente diferente de bombardearem, por erro, um casamento pashtun, numa casa de tijolos de barro, que não está perfeitamente mapeada. Nessas circunstâncias, o satélite vê uma casa, e a inteligência diz “casa cheia de al-Qaedas”, e o drone, bum!, põe abaixo a casa. No ataque da OTAN ao posto paquistanês, a situação foi completamente diferente. Nossos contatos e jornalistas na Índia e no Paquistão absolutamente não estão convencidos da veracidade da versão oficial. Mas não há ainda como afirmar que é falsa. Essa história terá de ser mais bem contada.

Mas é problema, porque Paquistão e China já mantêm relações as mais amistosas.

Pepe Escobar: Sim, e qualquer coisa que aconteça no Paquistão, daqui em diante, empurra Islamabad cada vez para mais perto de Pequim, o que é absolutamente inevitável. A opinião pública paquistanesa está absolutamente farta da interferência dos EUA. Estão fartos daquela incansável guerra dos drones  e de agressões à soberania do Paquistão, se é que, algum dia, o Paquistão foi estado soberano.

Os chineses, claro, reagem à moda chinesa: mantiveram-se calados, não se moveram, à espera de que o comando político de Islamabad corra até Pequim e peça ajuda. Talvez nem demore muito, se os EUA continuarem a agir como têm agido até aqui. Washington só faz reafirmar, todos os dias, que ‘se fodam’ os civis paquistaneses  – e perdoe-me a expressão. Washington só sabe pensar na “Guerra ao Terror”, para exterminar a al-Qaeda.

Hoje dizem abertamente e on the record, que, morto bin Laden, a al-Qaeda foi desmantelada – se era bin Laden ou não, é questão ainda aberta a especulações, mas, para Washington, mataram a al-Qaeda. Assim sendo... O que estão fazendo, ainda, no Af-Pak? Ah, mas há um problema, o Paquistão é muito instável, é hoje o coração do movimento terrorista no mundo, não é mais o Afeganistão... E se as armas atômicas do Paquistão caírem em mãos de terroristas?

Só isso interessa. Farão de tudo para encontrar um pretexto para intervir no Paquistão e pôr as mãos no arsenal nuclear do Paquistão. É objetivo ainda distante, é claro, mas é o que o Pentágono quer poder fazer. Essa é a agenda do Pentágono.

No Paquistão, toda a elite política é corrupta – exceto, eu diria, Imran Khan. Imran Khan não é corrupto, e tem reunido centenas de milhares de pessoas, cada vez que fala publicamente, no Paquistão, porque começa a ser visto como alternativa. O que ele diz? “Vamos nos livrar dos norte-americanos, vamos nos livrar dessa elite corrupta, que os militares voltem aos quartéis, queremos autêntico governo civil, queremos desenvolvimento, para combater a desigualdade social”. É cada dia mais popular, por isso. E, sim, pode vencer as próximas eleições. Mas, basicamente, a sociedade civil paquistanesa está farta de tudo, do atual estado de coisas. 

Para os norte-americanos, é péssima notícia, porque tudo o que desejam é manter o controle sobre os militares, que continuem a fazer o que o Pentágono os mande fazer. E que deixem os norte-americanos continuar a fazer a tal “Guerra ao Terror”, como bem entendam, nas bases norte-americanas em território do Paquistão, como na base Samsi, no Baloquistão, e tocar como bem entendam a sua guerra de drones nos Waziristões.

Minha opinião é que isso tudo acabou. As coisas ali nunca mais serão como antes. Os chineses estão só esperando. Acho que o Paquistão será admitido como membro da Organização de Cooperação de Xangai, pode acontecer no próximo ano. Com isso, o Paquistão já estará incluído num mecanismo que implica cooperação militar com a China.

O problema é que os militares paquistaneses não são organização monolítica, há camadas, gente indicada por Musharraf, vários pashtuns no oficialato de nível médio que são simpáticos ao Talibã no Paquistão e, alguns, simpáticos à al-Qaeda; e há fissuras em toda essa construção. Acho que, hoje, o relacionamento entre os militares paquistaneses e o Pentágono complica-se cada vez mais, dia a dia, sobretudo depois do último ataque da OTAN. Afinal, dessa vez, a OTAN atacou o próprio exército paquistanês – atacaram um posto militar. Até para os mais fiéis aliados do Pentágono, já foi um pouco demais.

O antiamericanismo está crescendo em todo o mundo.

Pepe Escobar: Só não cresce no Golfo Persa (risos). 

Não lhe parece trágico, se se pensa na cordialidade do povo, dos norte-americanos comuns?

Pepe Escobar: É verdade. Viajo desde menino, vai e volta, aos EUA. Conheço bem, no mínimo, 40 estados. Já morei nas duas costas, tenho muitos amigos nos EUA, muita gente que lê meus artigos e sabe que sou brasileiro. Mas também tenho muitos leitores que me acusam de ser Talibã-comunista-apocalíptico-antiamericano blá-blá-blá – o discurso completo. Continuam sem entender. 

Uma coisa é gostar do país, da cultura norte-americana pop, dos mestres norte-americanos do entertainment, dos gênios norte-americanos na música, na literatura, no cinema, na arquitetura, na arte etc. E outra coisa é ver e criticar a política exterior dos EUA. Quem, como eu, foi criado no Brasil e na Europa durante os anos 1960-70s, não esquece que a ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964 (eu tinha dez anos), foi golpe construído pelos EUA.

É verdade.

Pepe Escobar: Aqui na América do Sul, aprendemos sem que ninguém precisasse ensinar o que significa viver sob uma ditadura militar patrocinada pelos EUA. Quando falamos, sabemos do que falamos. Evidentemente, os povos do Oriente Médio também sabem do que falam. Na Ásia, alguns também sabem do que falam, os sul-coreanos, por exemplo, também viveram sob regime militar apoiado pelos EUA, antes de alcançarem a democracia.

É trágico, também, que, mesmo depois da Primavera Árabe, tanta gente no Golfo Persa ainda não consiga ver que, ali, vivem sobre regimes extremamente autoritários, autocráticos, que vivem como vassalos, satrapias do império norte-americano, que não vejam que, de fato, não contam com os próprios governos, de fato, para nada, nem para defender alguma mínima soberania.

Quando se veem movimentos pró-democracia autóctones no Bahrain ou na região leste da Arábia Saudita, veem-se respostas. No Egito, onde dizem ‘afinal, temos de nos livrar de todo esse sistema, de uma vez por todas –, ainda não se livraram do sistema, a serpente continua lá. E a serpente está sendo mantida viva com financiamentos da Arábia Saudita.

Ainda não houve revolução no Egito. Só começará, talvez, se se livrarem da junta Tantawi. Isso é o que querem as massas na Praça Tahrir, a geração Google e os trabalhadores no Egito. Mas o problema, ali, é o exército que, no Egito, controla toda a economia. Os números variam, mas alguma coisa ente 25% e 40% da economia egípcia é controlada por militares e famílias da alta hierarquia do exército. Eles não vão desistir disso tudo. Só sairão de lá se forem arrancados de lá, por revolução será fatalmente sangrenta. E os EUA não querem que aqueles militares saiam de onde estão.

Como analista de geopolítica, você diria que o futuro da Alemanha está no leste da Eurásia (Rússia e China) mais do que em New York e Londres?

Pepe Escobar: Aí está uma pergunta que eu adoraria que você me respondesse! Meu palpite é que a Alemanha deseja integrar-se mais com os russos.

Sim. Mas... as elites econômicas e políticas aqui [na Alemanha] continuam alinhadas com os EUA.

Pepe Escobar: É. É isso.

Esse ano, Angela Merkel, chanceler, recebeu a mais alta condecoração civil dos EUA, em Washington DC, a “Medalha da Liberdade”. Pelo menos, já tem alguma coisa em comum com Duke Ellington, condecorado em 1969. Mas é evento significativo.

Pepe Escobar:  É. O problema da Alemanha é que é atlanticista, mas não sabe o que o futuro lhe reserva em termos de matérias primas e commodities de que o país carece. E que pode obter da Rússia. O mundo inteiro pode ser mercado para o que a Alemanha produz, e já é. Mas a Alemanha é uma fabulosa potência exportadora, que não precisa deixar subjugar-se, limitar-se, pela aliança ocidental. É claro que não precisa. Mas você disse corretamente: as elites em Berlin e Frankfurt ainda são muito americanizadas.

Gostei de saber, como jornalista e como alemão, que você conhece bem o meu alemão favorito de todos os tempos, Heinrich Heine…

Pepe Escobar: Heine!

… Que também foi jornalista.

Pepe Escobar: Infelizmente, só o leio em inglês e espanhol, traduções maravilhosas. Não leio alemão, mas meus amigos alemães dizem que o alemão de Heine é fantástico.

É. Heine é o máximo, como Nietzsche, Schopenhauer e Goethe.

Pepe Escobar: Fui fã apaixonado de Nietzsche durante alguns anos. Um dos meus melhores professores de filosofia, um francês, Gerard Lebrun, era especialista em Nietzsche. Foi dos grandes especialistas franceses em Nietzsche. Aprendi muito com ele. Nietzsche, para mim, ainda é boa companhia

E também foi fã da poesia de Heine.

Pepe Escobar: É. Gostava da poesia de Heine, é verdade.

De um ponto de vista jornalístico, você acha que o jornalismo está em profunda crise no ocidente?

Pepe Escobar: Ah, está. Dou-lhe dois exemplos pessoais. Uma das razões pelas quais quis ser jornalista foi Watergate. Estava na universidade, tinha 19 anos, e ainda não decidira o que queria fazer. Pensava em artes plásticas, e sempre gostei muito de literatura, mas achava que não conseguiria ganhar a vida com literatura.

Depois, decidi ser jornalista, e Watergate foi como um modelo para a profissão. Depois, antes do jornalismo digital, trabalhei para grandes jornais nacionais impressos. E vi como opera a indústria jornalística. Um grande jornal nacional é uma grande empresa e todas as grandes empresas jornalísticas operam mais ou menos do mesmo modo, em todo o mundo.

Rapidamente, a coisa começou a me desencantar. No início, foi desencanto. A coisa virou horror, mesmo, do jornalismo que há, só depois do início da “Guerra ao Terror” e antes da invasão do Iraque, porque aí, sim, a imprensa dominante em todo o mundo, perdeu completamente toda a credibilidade.

Se se vê o New York Times exibindo mentiras em manchete de primeira página, todos os dias, durante meses, para mim, aquilo foi o fim do jornalismo-empresa que é, hoje, a imprensa dominante no mundo. E o Le Monde, que eu lia sempre, desde o ginásio, convertido em cópia mal feita, americanizada, do New York Times e, às vezes, até mais reacionário. Pena que eu não conheça jornais alemães, porque, pelo menos as seções culturais, ainda são as melhores do mundo.

O moderno “Feuilleton” alemão foi, mais ou menos, inventado por Heinrich Heine…

Pepe Escobar: Eu lia muito jornais ingleses, mas às vezes já não se pode mais acreditar nem no “padrão ouro” da imprensa inglesa, como o Guardian ou o Independent, que, historicamente, foram jornais do centro “forte”, de esquerda, progressistas.  Na última década, afinal, meu desencanto tornou-se total. É preciso recorrer à internet, se você quer informação que realmente faça sentido, em que os pontos se liguem. Hoje, só a internet. A imprensa-empresa dominante em todo o mundo, já não oferece isso. E meus amigos que ainda trabalham em grandes jornais, me contam que é impossível discutir com os editores, sobre o que se deve e não se deve publicar. Isso acabou.

Você acha que o modo como se trataram todas as questões relacionadas ao 11/9 ajudou a impulsionar a mídia alternativa?

Pepe Escobar: Ajudou, porque se, depois do 11/9, você quisesse saber o que realmente estava acontecendo... só se esquecesse todos os jornais e televisões empresas, em todo o planeta. Só se encontrava informação confiável na internet – observadores e analistas independentes, que se davam o trabalho de investigar, pesquisar, localizar documentos. Na mídia dominante, não se achava nada.

Atualmente, alguns desses observadores e analistas também já estão sendo filtrados, mas ainda se encontra alguma coisa, aqui e ali, fagulhas. Todo o discurso dominante, o próprio discurso, já é monolítico. Não há alternativa. E realmente não há alternativa, porque só se ouvem as vozes de repetição, de gente que diz exatamente a mesma coisa, há décadas.

É. E a maioria dos especialistas e os veículos juntam-se todos em mesas redondas como o Royal Institute of International Affairs, o Council on Foreign Relations, a Trilateral Commission, o Clube Bilderberg

Pepe Escobar: Exatamente. Todos trabalham para os mesmos think tanks. E outros veículos também têm problemas de credibilidade. Recorre-se ao canal chinês em inglês, CCTV9, porque se precisa de, pelo menos, um mínimo de debate, mas não há debate algum. Gosto do que faz o canal RT, Russia Today. Trabalho com eles. Mas eles não criticam a Rússia. Problema grave.

Trabalho também para a rede al-Jazeera, o que é ótimo, porque tenho meios para chegar a pessoas e obter respostas que, sem a rede, não conseguiria alcançar, por exemplo, na África. Mas também tem grave problema de credibilidade, pelo modo como cobriram a Tunísia, o Egito e a Líbia, comparado à cobertura do que se passa no Golfo Persa. Não podem criticar eles mesmos e absolutamente não podem – esqueça, é totalmente proibido – criticar a Casa de Saud, por causa das íntimas relações que ligam a Casa de Saud e o Emir do Qatar. Tudo é muito complicado, se se navega nesse universo.

Vivemos muito felizes, todos nós, que trabalhamos e escrevemos para o Asia Times porque é realmente independente e todos somos respeitados por isso. O jornal publica opinião dos sionistas, da extrema direita, da extrema esquerda, mostramos o meio, falam os iranianos, os paquistaneses, os russos, os chineses. Temos até um norte-coreano que escreve para nós. Estão todos lá.

Não temos linha editorial especificada, não, o jornal é aberto a todos. Por isso, exatamente, todos nos respeitam. Mas é jornal muito raro. E enfrentamos terríveis problemas financeiros. Tive de trabalhar nisso nos últimos meses e foi uma dor de cabeça. Queremos crescer, mas não queremos perder o controle do jornal. É equação difícil de acertar.

Desejo-lhe sucesso nessa empreitada!

Pepe Escobar: Obrigado!

______________________

*Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge eObama does Globalistan.