sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Pepe Escobar: “Carnaval na Criméia”

28/2/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Mapa político da Ucrânia e principais cidades e fronteiras - ao sul a península da Crimeia
O tempo não espera por ninguém, mas, parece, esperará pela Crimeia. O presidente do Parlamento da Crimeia, Vladimir Konstantinov, confirmou que haverá um referendo, que decidirá sobre maior autonomia em relação à Ucrânia, dia 25 de maio.

Até lá, a Crimeia permanecerá tão quente e fumegante quanto o carnaval no Rio – porque na Crimeia tudo tem a ver, sempre, com Sebastopol, o porto de atracação da Frota Russa do Mar Negro.

Se a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é um touro, esse é o pano vermelho mãe de todos os panos vermelhos. Ainda que você esteja tentando afogar todas as suas mágoas no nirvana movido a álcool e pulando para suar todos os seus problemas no carnaval no Rio – ou em Nova Orleans, ou Veneza, ou Trinidad e Tobago – mesmo assim seu cérebro registrou que o sonho mais molhado dos sonhos molhados da OTAN é instalar um governo fantoche do ocidente na Ucrânia, para despachar de lá, de sua base em Sebastopol, a marinha russa. O arrendamento negociado do porto é vigente até 2042. Já há rumores e ameaças de que o arrendamento será cancelado.

Mapa da Crimeia com suas cidades principais e a vizinhança da Rússia
A península da Crimeia é habitada por maioria absoluta de falantes de russo. Pouquíssimos ucranianos vivem ali. Em 1954, o ucraniano Nikita Krushchev – aquele, o que bateu o sapato na mesa, na Assembleia Geral da ONU [1] – precisou só de 15 minutos para dar a Crimeia de presente à Ucrânia (então, parte da União Soviética). Na Rússia, a Crimeia é vista como russa. Nada mudará esse fato.

Ainda não estamos diante de uma nova Guerra da Crimeia – ainda não. Só um pouco. O sonho molhado da OTAN é uma coisa; outra coisa, muito diferente, é fazê-lo acontecer: tipo pôr fim para sempre à rotina de a frota russa deixar Sebastopol pelo Mar Negro, pelo Bósforo, e assim chegar a Tartus, o porto mediterrâneo da Síria. Assim sendo, sim, sim, trata-se tanto de Crimeia, quanto de Síria.

Mapa Étnico linguístico-cultural da Ucrânia atual
A nova revolução ucraniana cor de laranja, de tangerina, de Campari, de Aperol Spritz ou de Tequila Sunrise parece, até aqui, ser resposta às preces da OTAN. Mas ainda há estrada longa e sinuosa a percorrer, antes de a OTAN conseguir reencenar os anos 1850s e produzir o remix da Guerra da Crimeia original.

Chuck Hagel
No futuro à vista e previsível, seremos afogados num mar branco de platitudes. Como o El Supremo do Pentágono, Chuck Hagel, “avisando” a Rússia que fique longe do torvelinho, enquanto ministros da Defesa da OTAN lançam toda a pilha indispensável de declarações, em nenhuma das quais se lê “garantindo integral apoio” à nova liderança, e paus mandados da imprensa-empresa universal repetem sem parar que não se trata de Nova Guerra Fria, para tranquilizar a população. [2]

Dancem conforme a minha estratégia, otários

Onde está HL Mencken, quando se precisa dele? Ninguém jamais perdeu dinheiro subestimando a capacidade de mentir do sistema Pentágono/OTAN/CIA/Departamento de Estado dos EUA. Especialmente agora, quando a política para a Ucrânia do governo Obama parece ter sido subalugada à turma da neoconservadora Victoria "Foda-se a União Europeia” Nuland, casada com Robert Kagan, neoconservador queridinho de Dábliu Bush.

Como Immanuel Wallerstein já observou, Nuland, Kagan e a gangue neoconservadora estão tão aterrorizados ante a possibilidade de a Rússia “dominar” quanto ante o surgimento de uma aliança geoestratégica que pode emergir lentamente, e bastante possível, entre a Alemanha (com a França como parceiro júnior) e a Rússia. Significaria o coração da União Europeia constituindo um contrapoder, de oposição ao abalado e oscilante poder norte-americano.

E, como atual encarnação do abalado poder norte-americano, o governo Obama é, sim, um fenômeno. Agora, estão perdidos no pântano que eles próprios inventaram, do tal “pivô”. Que pivô vem primeiro? Aquele na direção da China? Mas, nesse caso, temos de pivotear-nos, antes, para o Irã – para pôr fim à ação dispersiva, lá, no Oriente Médio. Ou quem sabe...? Talvez não.

John Kerry
Ouçam essa, a melhor, do secretário de Estado John Kerry, sobre o Irã:

Tomamos a iniciativa e lideramos o esforço para tentar ver se antes de irmos à guerra realmente poderia haver uma solução pacífica.

Quer dizer então que já não se trata de acordo nuclear a ser alcançado, talvez, em 2014. Nada disso. Agora se trata de “antes de irmos à guerra”. Trata-se de bombardear um possível acordo, para que o Império possa bombardear mais um país – outra vez. Ou, talvez, não passa de sonho molhado fornecido pelos patrões dos fantoches Likudniks.

O grande Michael Hudson especulou que um “xadrez multidimensional” poderia estar “guiando os movimentos dos EUA na Ucrânia”. Nada disso. Está mais para “se não podemos nos pivotear para a China – ainda – e se a pivotagem para o Irã vai falhar (porque desejamos que falhe), podemos nos pivotear para algum outro lugar...” Oh yes, tem aquele maldito país que nos impediu de bombardear a Síria; chamado “Rússia”. E tudo isso sobre o comando ilustrado de Victoria “Foda-se a União Europeia” Nuland. Onde está um neo-Aristófanes, para escrever a história dessas comédias?

Christiane Amanpour
E ninguém jamais esqueça a imprensa-empresa. A CNN já começou a “Amanpourear” [ref. a Christiane Amanpour; equivale aos verbos “Jaborizar (derivado de Jabor)” ou “Waackear (der. de Waack)”, em português do Brasil (NTs)] sobre o Acordo de Budapeste – e só fazem repetir que a Rússia tem de ficar fora da Ucrânia. Visivelmente, uma horda de produtores, todos com “índices” de audiência desabados, sequer se deram o trabalho de ler o Acordo de Budapeste, o qual, como o professor Francis Boyle da Universidade de Illinois lembrou “determina, isso sim, que EUA, Rússia, Ucrânia e Grã-Bretanha têm de reunir-se imediatamente, para “consulta” conjunta – e que a reunião tem de ser feita no nível de ministros de Relações Exteriores, pelo menos”.

Assim sendo, então... Quem paga as contas?

O novo primeiro-ministro da Ucrânia, Arseniy Yatsenyuk, é – e o que mais seria?! – um “tecnocrata reformador”, expressão em código para “fantoche do ocidente”. [3] Ucrânia está convertida em caso perdido (rebentado). A moeda caiu 20% desde o início de 2014. Milhões de desempregados europeus sabem que a União Europeia não tem dinheiro para resgatar o país (talvez os ucranianos devam pedir algumas dicas ao ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi).

Em termos do Oleogasodutostão, a Ucrânia é apêndice da Rússia; o gás que transita pela Ucrânia para mercados europeus é gás russo. E a indústria ucraniana depende do mercado russo.

Examinemos mais de perto os bolsos dos novos “revolucionários” cor de Aperol Spritz. Todos os meses, a conta de gás natural importado da Rússia fica em torno de US$ 1 bilhão. Em janeiro, o país teve de despender também US$ 1,1 bilhão para pagar dívidas. As reservas em moeda estrangeira caíram, de US$ 20,4 bilhões, para US$ 17,8 bilhões. A Ucrânia tem de pagar, como pagamento mínimo da dívida, nada menos de $17 bilhões  em 2014. E tiveram até de cancelar um lançamento de $2 bilhões de eurobonds, semana passada.

O gato de Cheshire
Francamente: o presidente Vladimir Putin – codinome “Vlad, A Marreta” – deve estar rindo feito o gato de Cheshire [4]. Pode simplesmente cancelar o significativo desconto de 33% no preço do gás natural importado, que deu a Kiev, no final do ano passado. Rumores insistentes já dizem – desesperançados – que os revolucionários da revolução cor de Aperol Spritz não terão dinheiro para pagar aposentadorias e salários dos funcionários públicos. Em junho, vence uma dívida monstro, em mãos de vários credores (no total, cerca de US$ 1 bilhão). Depois disso, a coisa é mais sinistra, desolada e escura que o norte da Sibéria no inverno.

A oferta dos EUA, de $1 bilhão, é piada. E tudo isso, depois que a estratégia de “Foda-se a União Europeia” de Victoria Nuland torpedeou um governo ucraniano de transição – transição, por falar dela, negociada pela União Europeia – que teria mantido os russos a bordo, e o dinheiro deles.

Sem a Rússia, a Ucrânia dependerá totalmente do ocidente para pagar as próprias contas, para nem falar de tentar evitar o calote de todas as dívidas. O total alcança vertiginosos $30 bilhões, até o final de 2014. Diferente do Egito, a Ucrânia não pode telefonar para a Casa de Saud e pedir cataratas de petrodólares. Aquele empréstimo de US$ 15 bilhões que a Rússia ofereceu recentemente chegaria em boa hora – mas Moscou tem de receber algo em troca.

Vladimir Putin por Maurício Porto
A ideia de que Putin ordenará ataque militar contra a Ucrânia explica-se pelo quociente subzoológico de inteligência da imprensa-empresa nos EUA. “Vlad, A Marreta” só precisa assistir ao circo – o ocidente batendo cabeça para ver se arranja aqueles bilhões a serem desperdiçados num caso perdido (rebentado). Ou ao Fundo Monetário Internacional e aquela conversa sinistra de mais um monstruoso “ajuste estrutural” para mandar a população da Ucrânia de volta ao Paleolítico, de vez.

A Crimeia pode até encenar seu próprio carnaval adiado, votando não só para ter mais autonomia, mas, também, para livrar-se do tal caso perdido (rebentado). Nesse caso, Putin receberá a Crimeia de presente, grátis – à moda Krushchev. Não é mau negócio. E tudo graças àquela oh! tão estratééégica pivoteação contra a Rússia, com “Foda-se a União Europeia”.
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Notas de rodapé

Khrushchev e o sapato 
[1] A foto da primeira página do New York Times do dia 12/10/1960 mostrava Khrushchev com um sapato na mão e a manchete “Rússia novamente ameaça o mundo. Dessa vez, com o sapato do líder”. Mas, pouco depois, pessoas presentes à Assembleia Geral da ONU que se realizara na véspera corrigiram a notícia e a manchete: Khrushchev não batera com o sapato no púlpito principal, mas na própria mesa; e não para ameaçar alguém, apenas para chamar a atenção.


Quando Nikita Sergeevich entrou no salão, estava cercado de jornalistas; um deles pisou no seu calcanhar e arrancou-lhe o sapato. Khrushchev, bastante gordo, não quis expor-se ao ridículo de procurar o próprio sapato e calçá-lo ali, em pé, à vista das câmeras. Andou então diretamente para sua mesa e sentou-se; o sapato, embrulhado num guardanapo, foi trazido por alguém e posto sobre a mesa. Naquele momento, um delegado filipino disse que a União Soviética havia ‘engolido’ a Europa Oriental, “privando-a de seus direitos civis e políticos”. A frase causou tumulto e protestos na sala. Um delegado romeno saltou em pé e pôs-se a gritar contra o diplomata filipino. Nesse ponto, Khrushchev quis intervir na discussão, mas o delegado irlandês, que presidia a discussão, não o viu. Khrushchev acenou com uma mão, depois com a outra. Sem resultado, ele pegou o sapato que ainda estava sobre a mesa e o agitou no ar. Ainda sem resultado, ele bateu o sapato, com força, na mesa. O irlandês afinal olhou na direção dele e o viu

[2] 26/2/2014, Daily Telegraph em: US and Britain say Ucrânia is not a battleground between East and West.

[3] 27/2/2014, Voice of America, em: Biden: U.S. Supports Ucrânia's New Government

[4] Cheshire Cat com a banda Blinck 182 com letra mostrada no vídeo (em inglês) a seguir:

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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

Geopolítica do cisma da Ucrânia

15/2/2014, [*] Immanuel Wallerstein, Common Dreams – La Jornada
Traduzido para o português pelo pessoal da Vila Vudu
Traduzido para o espanhol por Ramón Vera Herrera



Manifestantes antigoverno Yanukovich em Kiev (23/2/2014)
A Ucrânia está sofrendo cisma interno profundo já há algum tempo, cisma que ameaça converter-se em mais uma dessas guerras civis que acontecem em, cada dia, mais países. O território da Ucrânia atual inclui uma clivagem entre leste e oeste do país, que é linguística, religiosa, econômica e cultural, cada lado com perto de 50% do total.

O atual [hoje, ex] governo (que se diz que é dominado pela metade leste) tem sido acusado em comícios, pela outra metade, de corrupção e autoritarismo. Não há dúvidas de que é verdade, pelo menos em parte. Mas nada assegura que governo dominado pela metade oeste venha a ser menos corrupto e menos autoritário. Seja como for, a questão está internamente posta em termos geopolíticos: a Ucrânia deve ser parte da União Europeia ou deve tecer laços mais fortes com a Rússia?

Victoria Nuland
Nessa linha é, talvez surpreendentemente, a gravação que está sendo distribuída por YouTube, na qual a secretária-assistente de Estado dos EUA para Assuntos de Europa e Eurásia é ouvida em discussão de estratégia política norte-americana para a Ucrânia, com o embaixador dos EUA. Na gravação, Nuland põe a questão como luta geoestratégica entre EUA e Europa (mais particularmente contra a Alemanha). É apanhada num momento em que diz “Fodam-se os europeus” – os europeus, não os russos! (...)

Consideremos Victoria Nuland. Quem é ela? É membro sobrevivente da gangue neoconservadora que cercava George W. Bush, governo para o qual trabalhou. Seu marido, Robert Kagan, é um dos mais afamados ideólogos do grupo neoconservador. Questão interessante: o que está ela fazendo em posição chave no Departamento de Estado do governo Obama? O mínimo que o secretário de Estado John Kerry deveria já ter feito é remover os neoconservadores desses papéis chaves no governo.

Donald Rumsfeld
Agora, relembremos qual, exatamente, era a linha dos neoconservadores para a Europa, nos dias de Bush. O então secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, como se sabe, falava de França e Alemanha como “a Europa velha”, em contraste com o que via como “a nova Europa” – vale dizer, os países que partilhavam a visão de Rumsfeld a favor da então iminente invasão do Iraque. A Europa velha era, para Rumsfeld, a Grã-Bretanha, especialmente, e a Europa leste e central, os países que formaram o bloco soviético. Nuland parece ter exatamente a mesma percepção da Europa.

Permito-me oferecer minha opinião, de que a Ucrânia não passa de simples desculpa conveniente ou de encobrimento, para divisão geopolítica maior que nada tem a ver com o cisma interno no próprio país. O espectro que assombra as/os nulands do mundo não é uma talvez “absorção” da Ucrânia pela Rússia – eventualidade que não tiraria o sono das /dos nulands. O que aterroriza ela e os que partilham seu modo de ver é a aliança geopolítica de Alemanha/França e Rússia. O pesadelo de um eixo Paris-Berlin-Moscou havia retrocedido um pouco, depois do ápice em 2003, quando todos os esforços dos EUA para conseguir que o Conselho de Segurança da ONU apoiasse a invasão dos EUA ao Iraque, em 2003, foram derrotados por França e Alemanha.

O pesadelo havia retrocedido um pouco, mas permaneceu aí, sob a superfície, e por boa razão. Essa aliança faz perfeito sentido geopolítico para Alemanha / França e para a Rússia. E, em geopolítica, o que faça sentido tem grande peso, que nenhuma insistência em diferenças ideológicas consegue abalar muito. As escolhas geopolíticas podem ser alteradas, nunca muito profundamente, pelos que passem pelo poder, mas a pressão dos interesses nacionais de longo prazo permanecem fortes.

Rússia, França e Alemanha seria o eixo temido pelos neo-conservadores dos EUA?
Por que um eixo Paris-Berlin-Moscou faz sentido? Há boas razões. Uma delas é a virada dos EUA na direção de um Pacífico-centrismo, interrompendo sua longa história de Atlântico-centrismo. O pesadelo da Rússia, e também da Alemanha, não é uma guerra EUA-China, mas uma aliança EUA-China (que poderia incluir também o Japão e a Coreia). O único modo de a Alemanha reduzir essa ameaça à própria prosperidade e ao próprio poder é construir uma aliança com a Rússia. E a política alemã para a Ucrânia mostra, precisamente, a prioridade que a Alemanha dá a resolver as questões europeias mediante a inclusão, não a exclusão, da Rússia.

Quanto à França, Hollande tem tentado seduzir os EUA agindo como se a França fosse parte da “nova Europa”. Mas desde 1945 a posição geopolítica básica da França é o gaullismo. Presidentes supostamente não-gaullistas, como Mitterrand e Sarkozy, seguiram, ambos, de fato, políticas gaullistas. E Hollande não demorará a descobrir que não tem escolha, se não o gaullismo. O gaullismo não é “esquerdismo’”. Mas o gaullismo é a convicção de que os EUA ameaçam qualquer papel geopolítico continuado que a França aspire a ter; e a França tem de defender seus interesses abrindo-se para a Rússia, para conseguir um contrapeso contra o poder dos EUA.

Rei Canuto afastando o mar
Quem vencerá esse jogo? É preciso esperar para saber. Mas Victoria Nuland parece um pouco o Rei Canuto, [NTs. ler: O rei Canuto à beira-mar] ordenando ao mar que se afaste. E os infelizes ucranianos talvez descubram que estão obrigados a curar, eles mesmos, suas feridas internas, queiram ou não queiram.




[*] Immanuel Maurice Wallerstein (Nova Iorque, 28 de Setembro de 1930) é um sociólogo estadunidense, mais conhecido pela sua contribuição fundadora para a Teoria do Sistema-Mundo. Seus comentários bimensais sobre questões globais são distribuídos pela Agence Global para várias publicações. Interessou-se pela política internacional quando ainda era adolescente, se encantando com a atuação do movimento anticolonialista na Índia. Wallerstein obteve os graus de B.A. (1951), M.A. (1954) e Ph.D. (1959) na Universidade de Columbia, Nova Iorque, onde ensinou até 1971. Tornou-se depois professor de Sociologia na Universidade McGill, Montreal, até 1976, e na Universidade de Binghamton, Nova Iorque, de 1976 a 1999. Foi também professor visitante em várias universidades do mundo. Foi esporadicamente diretor de estudos associado na École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, e presidente da Associação Internacional de Sociologia entre 1994 e 1998. Desde 2000, é investigador sênior na Universidade de Yale. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra em 2006 e pela Universidade de Brasília em 2009.

O que a Ucrânia já mostrou A Rússia, na lista de Washington para “mudança de regime”

27/2/2014, [*] Finian Cunningham, Strategic Culture  
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Viktor Yanukovich (D) e Joe Biden (E) (Em 2009 a "cama" de Yanukovich já estava feita...)
Dias antes de o presidente ucraniano Viktor Yanukovich ser expulso do governo, ele foi informado pelo vice-presidente dos EUA, Joe Biden, de que era “fim de jogo”. Segundo o The Guardian britânico, que cita funcionários não identificados dos EUA, Biden recriminou o presidente ucraniano, durante telefonema que durou uma hora, pelo fracasso de seus esforços para encontrar solução negociada para a crise ucraniana, os quais teriam chegado com “um dia de atraso, e incompletos”. Não se pode dizer que tenha sido comentário amigável de observador neutro.

Desde o fim de semana passado, Yanukovich desapareceu de circulação, com notícias de que estaria em algum ponto da Península da Crimeia, no sudeste da Ucrânia. Um ex-chefe de gabinete, Andriy Kluyev, foi ferido em ataque a tiros, por “manifestantes” antigoverno. Outros membros do Partido das Regiões de Yanukovych também fugiram dos gabinetes no Parlamento, temendo ataques similares; o que deixou a Câmara legislativa entregue a bandos da oposição. Esse parlamento ilegítimo rapidamente aprovou acusações formais contra o ex-presidente e altos funcionários do governo, como responsáveis pelas dúzias de mortos durante os três meses de tumultos e protestos.

Kiev transformada em terra sem lei pelos nazi-fascistas
O clima de terra sem lei governado por gangues que já se implantou em Kiev espalhou-se para outras partes do país, com as comunidades pró-Rússia, sobretudo, já temendo guerra civil em toda essa ex-República Soviética. Esse clima de medo é reflexo do golpe de estado construído e lançado contra presidente eleito e seu governo.

A chegada essa semana do vice-secretário de Estado dos EUA Williams Burns à capital da Ucrânia, “para discutir com figuras políticas e empresariais” o futuro do país é mais uma evidência de que todo o golpe de estado foi evento patrocinado e promovido por Washington. Por que mais o vice-presidente dos EUA, Joe Biden tanto se interessaria pelos assuntos internos da Ucrânia a ponto de telefonar várias vezes da Casa Branca ao infeliz Yanukovich, nas últimas semanas?

Essa interferência criminosa nada “encoberta” dos EUA, em estado soberano, já não surpreende ninguém.

Manifestantes nazi-fascistas portando bandeiras da União Europeia combatem em Kiev
O secretário de Estado dos EUA John Kerry e outros líderes ocidentais a repetirem que a Ucrânia não seria batalha entre o Leste e o Oeste é, no mínimo absurdo risível, sempre devidamente regurgitado servilmente pela chamada imprensa de notícias ocidental, para consumo popular.

A Ucrânia já estava na lista de “mudança de regime” desde o início dos anos 1990s, quando o país foi atacado pela primeira vez por Zbigniew Brzezinski e outros “estrategistas” do império norte-americano, como área desprotegida, um baixo ventre vulnerável, para desestabilizar a Rússia. A “revolução laranja” patrocinada pelo ocidente, de meados dos anos 2000s, e que abriu a Ucrânia para ser saqueada pelo capital ocidental, já se deixa ver hoje, bem claramente, como um ensaio geral para a operação de golpe para “mudança de regime” que hoje se vê em curso.

De fato, a Ucrânia já pode ser acrescentada ao conhecido inventário de países alvos de golpes para “mudança de regime” que foi revelado em 2007 por Wesley Clark, general norte-americano de quatro estrelas. Há quase sete anos, Wesley Clark foi a público e contou como Washington tinha um plano em andamento, no mínimo desde o final de 2001, quando o país invadiu o Afeganistão, e que incluía a ambição de “mudar o regime” em outros seis países – Iraque, Síria, Líbano, Somália, Sudão e Irã. Todos esses países sofreram, em maior ou menor grau, a agressão por operação militar clandestina liderada por Washington, a mais intensa das quais se vê hoje na Síria, onde EUA e aliados financiam e armam uma insurgência estrangeira infiltrada ali.

Além dos conhecidos já sete alvos (incluindo o Afeganistão), eventos recentemente orquestrados na Ucrânia e provas de evidente intervenção ocidental também fazem desse país mais um item na agenda de governos a derrubar, de Washington. Além do mais, é cada dia mais visível que não só a Ucrânia é alvo dos intentos criminosos.

Grupos pagos pelos EUA provocam agitação e violência na Venezuela
A violência das manifestações de rua na Venezuela para desestabilizar o governo do presidente socialista Victor Maduro são, sem dúvida possível, também maquinações da interferência de Washington também na Venezuela. E a subversão de hoje faz lembrar a tentativa de golpe, também apoiada pelos EUA, contra o ex-presidente Hugo Chávez em 2002.

Em anos recentes, Washington também esteve ativa em golpes para “mudança de regime” ou tentativa de golpe em Honduras e no Uruguai, e foi cúmplice da intervenção militar ilegal da França em vários pontos da África, incluindo Costa do Marfim, Mali e atualmente na República Centro-Africana.

Golpes para “mudança de regime” são procedimento operacional padrão para Washington e seus procuradores. Não é alguma aberração irracional: é movimento estrutural. Na longa perspectiva histórica que vai até o surgimento dos EUA como potência imperial entre meados e o final dos anos 1800s, Washington já esteve envolvida em mais golpes, contragolpes, guerras de subterfúgio e agressões por todo o planeta, que qualquer outro estado.

Apesar das aparentemente sinceras declarações de que não há intervenção do ocidente na Ucrânia, o único modo de compreender o torvelinho que tomou conta daquele país é analisá-lo no contexto das ambições imperialistas de Washington, em nome do capitalismo ocidental. Essa agenda é, infelizmente, seguida por sucessivos governos europeus, que demonstram suas prioridades políticas subscrevendo o diktat do capitalismo liderado pelos EUA na direção de “austeridade” econômica contra seus próprios cidadãos, e garantindo carta branca a Washington para que viole o quanto queira a lei internacional.

A verdade sistêmica é que o capitalismo não pode ser sustentado sem a conquista imperialista. É especialmente verdade em tempos de crise do capitalismo, e a atual conjuntura é, provavelmente, a mais profunda crise histórica surgida ante a viabilidade do capitalismo liderado pelos EUA. O imperialismo, com sua proclividade para a intervenção em países estrangeiros, a subversão e a indução a sempre mais guerras está, portanto, hoje no seu ponto mais agudo de necessidade de manifestar-se, para aliviar a estagnada ordem econômica liderada pelos EUA. E é isso que torna a atual situação global tão perturbadoramente perigosa.

Lênin em 1918
Essa conexão estrutural entre o capitalismo e o imperialismo foi exposta, em toda a sua cogência, em 1916, por um líder russo bolchevique, Vladimir Lênin, em seu estudo O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo.[1]

As intuições de Lênin relacionadas às causas econômicas e sistêmicas da Iª Guerra Mundial resistiram ao teste do tempo, por mais que tenham sido censuradas e excluídas da consciência ocidental “oficial”. Aquelas intuições de como as crises do capitalismo alimentam a predação imperialista aplicam-se, igualmente precisas e cogentes também para explicar as origens da IIª Guerra Mundial e de muitos outros conflitos internacionais subsequentes, inclusive o surto atual de golpes para “mudança de regime” patrocinado pelos EUA em diferentes continentes.

A análise de Lênin dá conta do motivo pelo qual Washington escalou no seu vício de provocar golpes de “mudança de regime” por todo o planeta ao longo da última década, a partir do momento em que a ordem capitalista comandada pelos EUA viu-se encurralada numa depressão que já parece insuperável. Como em outras vezes, a guerra e o assalto imperialista são o único modo que o sistema conhece para aliviar sua própria tendência destrutiva, gerando impasses. Não surpreende, portanto, ironicamente, que um dos primeiros atos dos manifestantes fascistas patrocinados pelo ocidente em Kiev, ainda no final do ano passado, tenha sido destruir monumentos que homenageavam Lênin.


O que se passa hoje na Ucrânia está afinado com a dinâmica histórica maior que os EUA e seus fantoches ocidentais aprofundaram, em seu ímpeto imperialista – por todo o planeta.

Em última instância, os alvos dos capitalistas ocidentais são os dois principais rivais geopolíticos, como os capitalistas ocidentais os veem: Rússia e China. Esses países são obstáculos no caminho do expansionismo doentio dos capitais ocidentais na Eurásia e no Pacífico.

Nesse sentido, desgraçadamente, a Ucrânia deve ser vista como mera cabeça-de-ponte para os planos de golpe e “mudança de regime”, dos EUA, contra a própria Rússia. Com a ascensão do presidente Vladimir Putin da Rússia como líder global, que se tem oposto à agressão nua e crua pelo ocidente a outros países (hoje, declaradamente, no caso da Síria), aquela “obstrução” elevou a Rússia à posição de objetivo prioritário, para Washington. É o que se vê nas repetidas ameaças de escalada militarista dos EUA contra a Rússia (e a China), sob a forma de implantação de mísseis balísticos junto às fronteiras, expansão do armamento nuclear (eufemisticamente chamado “upgrade”) e a velada doutrina da capacidade para “o primeiro ataque”.

A Ucrânia ilustra um desdobramento aterrorizante de uma tendência que se vem desenvolvendo no imperialismo norte-americano ao longo da última década. A cada dia que passa, mais se vê claramente qual o trunfo a que visam as várias operações clandestinas conduzidas pelos EUA, para mudança de regime no mundo: Moscou.

Paramilitares neonazistas agridem forças antitumulto em Kiev
Mas, na verdade, não é simples caso de os EUA retomarem a velha Guerra Fria pós-1945 contra a Rússia. A guerra capitalista global comandada pelos EUA contra a Rússia tem passado mais longo: vai até à Revolução de Outubro de 1917. O massacre da Rússia Soviética pela Alemanha Nazista foi plano ocidental para subjugar um vasto território que se posicionara fora do controle do capitalismo ocidental. (O que é assunto para outra coluna).

Os paramilitares neonazistas que o ocidente mobilizou para desestabilizar a Ucrânia (e a Rússia) hoje trazem ecos de uma agenda velha, sistemática, de golpes para “mudança de regime”, do ocidente imperialista contra o oriente, e por toda a parte. Nada há de anômalo na associação entre a classe capitalista dominante e a bandidagem fascista, hoje. Essa é uma associação histórica.



Nota dos tradutores
[1] LÊNIN, Vladimir Ilitch [jan.-jun. de 1916], O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, in LÊNIN, Obras Escolhidas, tomo 2, Lisboa-Moscou: Editorial Avante!/Edições Progresso, 1984.
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[*] Finian Cunningham nasceu em Belfast, Irlanda do Norte, em 1963. Especialista em política internacional. Autor de artigos para várias publicações e comentarista de mídia. Recentemente foi expulso do Bahrain (em 6/2011) por seu jornalismo crítico no qual destacou as violações dos direitos humanos por parte do regime barahini apoiado pelo Ocidente. É pós-graduado com mestrado em Química Agrícola e trabalhou como editor científico da Royal Society of Chemistry, Cambridge, Inglaterra, antes de seguir carreira no jornalismo. Também é músico e compositor. Por muitos anos, trabalhou como editor e articulista nos meios de comunicação tradicionais, incluindo os jornais Irish Times e The Independent. Atualmente está baseado na África Oriental, onde escreve um livro sobre o Bahrain e a Primavera Árabe.


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O nacionalismo ucraniano – natureza e raízes

24/2/2014, The Saker, The Vineyard of the Saker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

The Saker
Outra vez, por falta de tempo e espaço, não entrarei na história da Organização dos Ucranianos Nacionalistas [orig. Organization of Ukrainian Nationalists, OUN] de Stepan Bandera ou da Divisão SS Galizien “Ucraniana” – vocês podem ler sobre isso na Internet.

Direi apenas que essas forças estiveram entre as mais mortíferas e cruéis de todas, na IIª Guerra Mundial. De fato, as piores atrocidades da IIª Guerra Mundial, não foram cometidas pelas forças de Hitler, nem pela SS, mas por forças integralmente inspiradas e apoiadas pelo Vaticano: a Croatian Ustashe de Ante Pavelic e os nacionalistas ucranianos.

Afinal, a Ustashe e os Banderovsty foram derrotados, mas muitos de seus membros não apenas sobreviveram à guerra como também prosperaram no exílio, a maioria nos EUA e Canadá, onde a Anglosfera os manteve longe da política real, mas suficientemente ativos para serem “descongelados” no caso de haver necessidade deles.

Não há dúvida possível de que, depois do final da Guerra Fria, o Império Anglo-sionista viu uma oportunidade para subverter e enfraquecer seus inimigos: os descendentes dos Ustashe foram encarregados de destruir a Iugoslávia; e os descendentes de Bandera foram encarregados de destruir a Ucrânia, pondo os restos o mais longe possível da Rússia. Ao mesmo tempo, nos dois locais, na Iugoslávia e na Rússia, os anglo-sionistas dirigiram outra de suas franquias terroristas – o wahabismo internacional, também chamado “al-Qaeda”, para unir-se aos neonazistas e papistas, numa luta comum contra a Iugoslávia e a Rússia ortodoxa/socialista. Depois disso, todos sabemos o que aconteceu na Iugoslávia.

Parte III: Ucrânia, de volta para o futuro

2014 – O ventre do qual nasceu a besta continua fértil

Agora, quero falar um pouco sobre a (agora ex-) “oposição” ucraniana. Durante os últimos meses, fomos informados de que estaria representada por três homens: Vitalii Klichko e seu movimento UDAR; Arsenii Iatseniuyk e seu Partido Batkivshchyna; e Oleh Tiagnibok, conhecido líder do Partido Liberdade. Claro que o verdadeiro líder do Partido Batkivshchyna sempre foi Yulia Timoshenko; mas dado que estava na cadeia, para onde foi mandada por Yanukovich, ela não podia participar diretamente dos mais recentes eventos.

A maioria dos observadores ocidentais descuidaram de perguntar se qualquer dessas figuras políticas realmente poderia controlar os “manifestantes” da Praça Maidan. Tampouco cuidaram de verificar como uma multidão armada só de pedras, tacos de beisebol, barras de ferro e coquetéis molotov foi “repentinamente” substituída por uma força bem organizada e bem armada que só se pode chamar de insurgentes. A força que realmente reunia mais poder de fogo, não era constituída de membros do UDAR, nem do partido Batkivshchyna, nem sequer do partido Liberdade. Os reais senhores da Praça Maidan e agora já de toda a capital Kiev é o chamado “Setor Direita” (Pravy Sektor), organização terrorista chefiada por Dmytro Yarosh

Dmytro Yarosh fala às suas tropas
Se a foto acima parece ter sido feita na Chechênia durante a guerra, é porque bem pode ter sido feita lá mesmo: muitos nacionalistas ucranianos combateram ao lado dos wahabistas na Chechênia, não raro sob a bandeira da organização terrorista UNA-UNSO. Também combateram na Geórgia contra a Rússia, daí as duas visitas de Saakashvili à Praça Maidan.

Seria lógico perguntar qual porcentagem do povo ucraniano apoia Yarosh e seu Setor Direita. É difícil dizer, mas não passa de minoria considerável, mas pequena. Segundo muitas estimativas, os líderes mais populares do novo governo são Timoshenko e Klitschko, seguidos por Tiagnibok – ou pelo menos eram, antes do golpe armado de domingo passado. Mas é detalhe pouco importante: a maioria dos chechenos nunca foi wahabista; a maioria dos croatas nunca foi Ustashe; e a maioria dos albaneses do Kosovo não era pró Exército de Libertação do Kosovo [ing. KLA]. E nada disso impediu que esses grupos minoritários, mas bem armados, obtivessem controle decisivo dos eventos.

Isso põe o novo governo da Ucrânia em posição muito difícil: ou aceita a agenda de gente como Yarosh e seu Setor Direita, ou arrisca-se a ser varrido por insurreição armada. Não esqueçamos que as forças militares da Ucrânia só existem no papel, e que as forças policiais não estão em condições de impor sua autoridade aos terroristas.

Selo emitido pelo Governo Yushchenko com o retrato de Stepan Bandera
Pior que isso: a presidência de Yushchenko demonstrou que os chamados nacionalistas “moderados” constantemente unem-se aos terroristas. Yushchenko chegou a fazer de Bandera “herói da Ucrânia” (decisão depois rescindida) e imprimiu selos com o retrato dele. O problema é que esse tipo de ação aparentemente inócua é, na realidade, a reabilitação de uma ideologia de genocídio; e envia mensagem aterrorizante e revoltante aos ucranianos do leste e aos russos que vivem na Ucrânia: estamos de volta e não viemos para brincar.

O detalhe tem passado despercebido, mais houve situação semelhante na Croácia, no momento em que a Iugoslávia partiu-se: os croatas, mesmo os chamados “moderados” não acharam nada mais inteligente a fazer que reintroduzir imediatamente a conspurcada bandeira dos Ustashe de Pavelic, como “símbolo nacional da Croácia”. Pode-se discutir até que ponto isso estimulou os sérvios de Krajinas a pegar em armas, mas com certeza contribuiu.

O mesmo está acontecendo agora na Ucrânia. Ao lado das bandeiras amarelo-azuis do oeste da Ucrânia, já se veem muitas bandeiras preto-vermelhas, a bandeira do Banderovsty, ao lado de todos os tipos e variantes de símbolos neonazistas. Outra vez, não importa, de fato, como muitos ucranianos estejam manifestando tendências genocidas; o que importa é como essas bandeiras genocidas são vistas no leste da Ucrânia ou pelos 7 milhões de russos que vivem na Ucrânia.

A reação ao golpe em Kiev foi imediata. Este foto mostra um comício na cidade de Sebastopol:

Manifestação pró-Russia (ver bandeiras) em Sebastopol em 23-2-2014
Estão vendo as bandeiras? Antes do golpe, comícios no leste mostravam quase exclusivamente a bandeira amarelo-azul da Ucrânia. Agora, as bandeiras são quase todas russas, com algumas bandeiras, também, da Marinha da Rússia: o povo está ou furioso ou assustado. Provavelmente as duas coisas. E o potencial de violência, assim, aumenta rapidamente.

Observem esse vídeo de uma tentativa de ativistas pró-governo organizarem uma manifestação na cidade de Kerch e vejam, vocês mesmos, como a situação sai rapidamente de controle. A multidão enfurecida começa a gritar “Fora!” e “Fascistas!”, mas os policiais perdem logo o controle da situação, e uma multidão ataca os ativistas nacionalistas. É olhar e ver o vídeo:


Exatamente como aconteceu na Croácia e na Bósnia, políticos da União Europeia e dos EUA ignoraram (por estupidez ou deliberadamente) que o medo gera violência a qual gera mais medo, depois mais violência, num ciclo de realimentação positiva praticamente impossível de deter.

Assim sendo, vamos, daqui, para onde?

Bem francamente, tinha alguma esperança de que Yulia Timoshenko conseguiria salvar a Ucrânia. Não porque goste dela, mas porque reconheço a força da personalidade dela, sobretudo se comparada aos políticos ucranianos terminalmente imbecis (Tiagnibok, Klichko) ou sem espinha dorsal (Iatseniuk, Yanukovich). Como disse ontem um jornalista russo: é bom ver aparecer, afinal, “um homem de verdade” no cenário político da Ucrânia. E, apesar dos seus muitos erros, Yulia tem, pelo menos, três coisas a seu favor: é muito inteligente; é mulher de vontade forte e é muito popular. Ou, pelo menos, era, antes de Yanukovich metê-la na cadeia.

Mas quando a vi, pela televisão, falando na Praça Maidan, numa cadeira de rodas, o rosto inchado, soando histérica e completamente indiferente ao fato de que estava cercada por neonazistas, comecei a ter minhas dúvidas. É claro que ela passou tempos muito difíceis nos calabouços de Yanukovich. E aos que digam que ela sempre foi tão completamente corrupta quanto os demais oligarcas, eu responderia o seguinte: enquanto os demais oligarcas veem o poder como meio para fazer dinheiro, Timoshenko vê o dinheiro como meio para chegar ao poder. Aí há enorme diferença.

Assim sendo, e diferente de Tiagnibok ou Yarosh, Timoshenko não tem ares de genocida, nem jamais se interessou pelo papel de “um Bandera moderno”. E, também diferente dos neonazistas típicos, Yulia é nominalmente ortodoxa, não “católica grega” (quer dizer, latina). Não que eu suponha que alguém aí seja muito religioso, não. Mas Timoshenko pelo menos não foi criada no ódio maníaco contra tudo que seja russo, no qual os “católicos gregos” são tipicamente criados.

Por fim, Timoshenko, com certeza absoluta, é suficientemente esperta para compreender que não há meio para manter a Ucrânia como estado unitário, se os neonazistas forem o poder de facto, seja diretamente ou através de fantoches “moderados”.

Yulia Timoshenko em cadeira de rodas  fala aos ocupantes da Praça Maidan 22/2/2014
Fui provavelmente ingênuo, mas tive esperanças de que Yulia pudesse manter a Ucrânia unida. Não, não, não porque eu seja defensor da “Ucrânia Independente”, mas porque entendo que qualquer solução será preferível à divisão da Ucrânia que, inevitavelmente se tornará violenta.

Por que a violência é aí inevitável?

Paradoxalmente, a principal causa, aqui, não são os seguidores de Bandera. Alguns deles, até, já falaram a favor de uma separação do oeste da Ucrânia, do resto do país. Tanto quanto sei, são minoria, mas mesmo assim é interessante que pelo menos alguns deles estejam percebendo que a ideia de converter toda a Ucrânia numa Galícia é simplesmente ridícula. Muitos nacionalistas, contudo, opõem-se furiosamente a qualquer divisão, por duas razões. Prestígio: sabem que a Ucrânia “deles” é, de fato, muito menor que a Ucrânia herdada da era soviética. E dinheiro: eles sabem que toda a real riqueza da Ucrânia está no leste. E também, por último mas não menos importante, os verdadeiros patrões dos fantoches nacionalistas ucranianos (os EUA) querem privar a Rússia de toda a riqueza do leste da Ucrânia, e da costa ucraniana do Mar Negro. Assim sendo, se há alguém à espera que os nacionalistas cedam graciosamente o divórcio civil entre oeste e sudeste do país, desista. É delírio. Não acontecerá, não, pelo menos, por referendo ou qualquer outra modalidade de consulta ou conversações.

A história também ensina que é impossível obrigar dois grupos a conviver, quando se odeiam e se temem reciprocamente. É impossível, pelo menos, sem MUITA violência.

Viktor Yanukovich
A situação no leste é tão simples quanto desoladora: Yanukovich está politicamente morto. O Partido das Regiões praticamente explodiu e novos políticos estão surgindo em Carcóvia, em Sebastopol e em outras cidades. Estão-se organizando grandes forças de autodefesa local, e a população está basicamente pronta para a luta. Dadas as atuais circunstâncias, são desenvolvimentos positivos. Pelo lado negativo, há o fato de que os oligarcas do leste ainda estão ali, prontos para trair o próprio povo por mais lucros (como as elites ucranianas fizeram durante a União de Brest); e de que as forças políticas locais estão, segundo a maioria dos relatos, sendo organizadas de modo amadorístico. Por fim, ainda há muita incerteza sobre o que a Rússia realmente quer.

E a Rússia, em tudo isso?

Entendo que a Rússia realmente quer evitar uma guerra civil na Ucrânia e que prefere uma Ucrânia separada, a qualquer divisão. Por quê? Consideram o seguinte:

Para a Rússia, uma Ucrânia separada e independente é, em primeiro lugar e principalmente, um meio para evitar ser arrastada para uma guerra civil. Se, digamos, Timoshenko conseguir suprimir os neonazistas e negociar algum tipo de modus vivendi entre, por um lado, o oeste da Ucrânia e Kiev, e, por outro lado, o leste e o sul da Ucrânia, não há dúvidas de que ela e Putin podem encontrar algum meio pacífico e pragmático de coexistência. Oh, não estou falando de um mar de rosas, que não acontecerá, mas pode-se pensar, pelo menos, em relações mutuamente benéficas, civilizadas e pragmáticas. Essa quase certamente é a opção preferencial do Kremlin (e ajuda a demonstrar o quanto são estúpidos e paranoicos os nacionalistas ucranianos – e Susan Rice – quando se põem a alucinar sobre uma invasão russa na Ucrânia).

A outra opção é os nacionalistas tomarem pleno controle de toda a Ucrânia. É extremamente improvável, mas... sabe-se lá. Já me decepcionei tantas vezes com políticos ucranianos, que raciocino como se sempre fossem capazes de tudo, qualquer coisa, por pior que seja.

Isso implicaria converter a fronteira russo-ucraniana em alguma coisa como o Muro que separava as duas partes da Alemanha durante a Guerra Fria, ou a Zona Desmilitarizada entre as duas partes da Coreia. De um ponto de vista militar, não é problema. Já escrevi que, ainda que a OTAN desloque tropas para a Ucrânia, o que farão, a OTAN, ali tão perto do território russo, ficará automaticamente convertida em alvos lucrativos: a Rússia deslocará número suficiente de mísseis Iskander para dar conta da lista de alvos, e estaremos conversados.

Base naval russa em Sebastopol, Crimeia- Mar Negro
Quanto à Frota do Mar Negro, a Rússia pode simplesmente se recusar a sair e pagar para ver se a OTAN tem estômago para tentar expulsá-la; ou pode preferir a opção custosa, mas possível, de voltar a ancorar sua frota em Novorossiysk (não que seja boa opção; não é; mas é melhor que nada). Seja como for, repito, esse cenário é muito, muito improvável.

O que nos deixa com a opção três: os nacionalistas tentam subjugar o sul e o leste, e não conseguem. A violência escalará e, eventualmente, a Rússia acabará envolvida. Em termos puramente militares, a Rússia pode derrotar muito facilmente qualquer exército ucraniano que tente opor-se a ela. Quanto à OTAN e aos EUA, não têm meios para deslocar algum tipo de “força tarefa conjunta combinada” para repelir os militares russos que se instalem na Ucrânia. Assim, ante a iminência de iniciar uma guerra nuclear mutuamente destrutiva, eles terão de aceitar os fatos em campo. Mas imaginem o pesadelo que resultará de uma operação militar russa no leste da Ucrânia! Seria uma volta a uma nova Guerra Fria, mas, dessa vez, inchada com muitos esteroides: políticos ocidentais se engalfinharão entre eles, tentando todos ser o primeiro a denunciar, declarar, ameaçar, condenar, proclamar, sancionar e prometer só deus sabe que tipo de delírios e estupidezes.

A russofobia histérica se tornará ordem do dia, e o Império Anglo-sionista terá finalmente encontrado o tipo de eterno inimigo que procura tão desesperadamente desde o final da 1ª Guerra Fria.

Se a coisa ficar realmente feira, e provavelmente ficará, a China provavelmente também acabará envolvida. Assim teremos exatamente o tipo de planeta com que a plutocracia do 1% sonha há tantos anos: a Oceania presa numa guerra total contra Eurásia e Ásia do Leste, exatamente como Orwell previu em 1984. Vide mapa a seguir:

Clique na imagem para aumentar
Rússia – ou China – absolutamente não precisam de nada disso. Mas, sim, há risco real de guerra civil na Ucrânia. Opção “menos ruim” para evitar esse cenário é providenciar para que os ucranianos do leste e do sul sejam suficientemente fortes, eles mesmos, para repelir uma invasão nacionalista, de modo que os militares russos possam manter-se fora do conflito.

Por tudo isso, há uma difícil ponderação-julgamento a ser feita pelo Kremlin. O Kremlin tem de decidir se:

(a) o povo do leste e do sul da Ucrânia são gente desorganizada, desmoralizada, tornada passiva pela ação de oligarcas corruptos e, basicamente, gente incapaz de se autodefender;

ou se

(b) o povo do leste e do sul da Ucrânia são gente unida, organizada e decidida a fincar pé e dar combate aos neonazistas até o último tiro.

No primeiro caso, o Kremlin terá basicamente de proteger as fronteiras russas e preparar-se para gerir as grandes ondas de refugiados que inevitavelmente cruzarão a fronteira.

No segundo caso, o Kremlin garantirá forte incentivo para ajudar os ucranianos do leste e do sul por todos os meios possíveis, até o limite de intervenção militar direta.

As duas vias são perigosas e nenhuma delas é preferível a uma Ucrânia unida e governada por líder que seja, no mínimo, mais ou menos racional. Por isso eu, pelo menos no estágio inicial desse confronto, espero que a Rússia REALMENTE apoie qualquer governo que seja só 50% mentalmente são em Kiev, na esperança de evitar a divisão da Ucrânia.

E EUA e União Europeia, em tudo isso?

Escrevi recentemente que EUA e União Europeia têm objetivos muito diferentes na Ucrânia: a União Europeia quer mercado para seus bens e serviços; os EUA querem ferir a Rússia, o mais possível. Já vimos a total falta de capacidade e competência dos burocratas da União Europeia e suas ingênuas tentativas para encontrar uma solução negociada. O objetivo da política externa dos EUA tem a vantagem de ser simples além de clara: “foda-se a Rússia” e “foda-se a União Europeia”!


Do ponto de vista dos EUA, quanto pior a situação, melhor para o Tio Sam. No pior dos mundos, a Rússia sai ferida; no melhor dos mundos, o sacrifício da Ucrânia dá aos EUA um maravilhoso pretexto para “proteger” a Europa contra o “re-emergente urso russo”, ao mesmo tempo em que defende a civilização, a democracia e o progresso. O sonho molhado de qualquer neoliberal neoconservador...

É onde entra o “Fator E” (“E”, de Estupidez pura e simples). O que muitas vezes parece ser resultado de algum plano maquiavélico cozinhado num porão profundo da Casa Branca, da CIA ou do Pentágono é muitas vezes exemplo quase inacreditável da estupidez verdadeiramente fenomenal de nossos governantes. Eles se creem tão poderosos a ponto de estarem dispensados de compreender uma cultura, uma história, uma língua estrangeira.

Afinal, se alguma política dos EUA fracassar completamente aqui ou ali, a resposta pode ser sempre a mesma: que se fodam! Fodam-se os iugoslavos! Fodam-se os sérvios! Fodam-se os iraquianos! Fodam-se os afegãos! Fodam-se os paquistaneses! Fodam-se os líbios e os egípcios e os palestinos e fodam-se os coreanos, os colombianos e os venezuelanos e, claro, fodam-se os canadenses, os mexicanos, todos os africanos e, claro, fodam-se os russos, fodam-se os chineses e foda-se o mundo inteiro. Não importa o quanto estúpida e destrutiva seja uma política dos EUA contra alguém, ou a política funciona ou fodam-se eles por lá!  A frase da Sra. Nuland bem poderia ser impressa como lema oficial no logotipo do Departamento de Estado ou da CIA.

Minha conclusão? Pessimista, é claro :-)

Os que têm lido meu blog nos últimos tempos não se surpreenderão se eu disser que, mais uma vez, cheguei a conclusão muito pessimista: o futuro da Ucrânia me parece terrível: o país está arruinado, não tem economia, é socialmente, culturalmente e politicamente não viável, e o mais provável é que seja governado ou por imbecis ou por racistas maníacos – e a maior potência do planeta não poupará esforços para acrescentar gasolina à fogueira. Tenham em mente que nenhum político ucraniano, nem um, um, que fosse, tem qualquer coisa remotamente semelhante a um plano para ressuscitar a economia ucraniana que, hoje, jaz morta. A única e última chance que havia para a Ucrânia foi o “respirador financeiro russo” – mas já foi desligado, pelo menos para o futuro próximo: os ucranianos, se quiserem que façam sua Revolução Banderovita; mas os russos não pagarão por ela.

O inferno da Ucrânia está escondido atrás da bandeira...
Em novembro passado publiquei um postado intitulado: Ucrânia “colorida”: abrem-se as portas do inferno, no qual previ boa parte do que aconteceu desde então:

Assumo que os euroburocratas e os nacionalistas ucranianos podem, sim, prevalecer; e que o presidente Yanukovich ou ficará no “zag” e reverterá a decisão anterior, ou perderá poder. De um modo ou de outro, me parece, os nacionalistas ucranianos prevalecerão. Haverá festa e fogos de artifício em Kiev, tapinhas em mútuas costas arrogantes em Bruxelas, e, na sequência, abrir-se-ão as portas do inferno, para a Ucrânia.

Estamos agora nesse ponto: a Ucrânia já atravessou as portas do Inferno e mergulhou já num longo ciclo de tragédia e violência. É verdadeira e imensamente triste. E a culpa por tudo o que acontecerá cabe, em primeiro lugar, àquelas forças que temerariamente abriram a Caixa de Pandora de ódios medievais e do século 20, e que estimularam o demônio nacionalista a atacar novamente; a culpa cabe também aos que a tudo assistiram sem nada fazer: políticos e líderes dos EUA e da União Europeia, dentre os quais não apareceu um, que fosse, para dizer a verdade.

Que ardam no inferno pelo que fizeram à Ucrânia.

The Saker