quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O ponto cego do poder: Dick Cheney

Mark Danner, New York Review of Books, 6/3/2014, vol. 61, n. 4
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Entreouvido na Tendinha do Aribu Rosa na Vila Vudu: Joaquim Barbosa [**] é o nosso Dick Cheney, no quesito fascismo sincero, convicto. 
Os dois são amorais autorreferentes e veem-se como superiores a qualquer democracia. Dick Cheney foi infinitamente mais poderoso, é claro.
Há outras diferenças: um tem coluna vertebral doente; no outro, é o músculo cardíaco (e aí, sim, pode haver também importante semelhança). Certo é que ambos fizeram mal imenso, cada um a seu modo, ao próprio país. Se Dick Cheney está hoje perfeitamente decifrado, não há dúvidas de que nós também decifraremos o ministro Joaquim Barbosa. Assim como os EUA (que têm jornalismo infinitamente melhor que o horrendo “jornalismo” brasileiro) começam a conseguir lutar contra o mal que lhes fez o vice-presidente Dick Cheney, nós também conseguiremos reagir contra o mal que fez e faz ao Brasil o ministro Joaquim Barbosa. 
A luta continua.


Dick Cheney com George W. Bush, no Salão Oval, junho, 2007  Foto: Charles Ommanney/Getty Images
1.

No início de 2007, quando o Iraque já parecia deslizar inexoravelmente rumo ao caos, e o presidente George W. Bush rumo a purgatório político inescapável, Meir Dagan, diretor do Mossad israelense vou até Washington, sentou num gabinete ensolarado da Ala Oeste da Casa Branca e espalhou sobre a mesa de centro à sua frente uma série de fotografias que mostravam um prédio de formato esquisito que se erguia das areias do leste da Síria. Ninguém precisou dizer ao vice-presidente dos EUA Dick Cheney o que era aquilo. “Tentaram escondê-lo dentro de um wadi, uma ravina” – Cheney relembra para o documentarista R.J. Cutler.

Não há habitações em volta, em lugar algum (...). Não se pode dizer que seja uma usina geradora de eletricidade: não há um fio que saia do prédio. Está aí, obviamente, para produzir plutônio.

Os sírios estavam construindo secretamente uma usina nuclear – era o que parecia – com a ajuda, também parecia, da Coreia do Norte. Apesar de os EUA já estarem metidos em duas guerras difíceis, impopulares e aparentemente infindáveis; apesar de os militares estarem super exigidos; e a população norte-americana impaciente e furiosa, o vice-presidente não teve dúvida alguma sobre o que era preciso fazer:

Condi [Condoleeza Rice] recomendou levar a questão à ONU. Recomendei veementemente bombardearmos a coisa.

Lançar imediatamente um ataque surpresa contra a Síria, Cheney conta em suas memórias, não apenas “tornaria a região mais segura, mas, também, mostraria nossa seriedade com respeito à não proliferação”. Isso foi o coração da Doutrina Bush: dali em diante, terroristas e estados que lhes dessem abrigo seriam tratados como uma e a mesma coisa, como o presidente Bush disse ao Congresso em janeiro de 2002, “os EUA não permitirão que os regimes mais perigosos do mundo nos ameacem com as armas mais destrutivas do mundo”. Seguindo esse pensamento estratégico, os EUA responderam aos ataques contra New York e Washington, executados por um punhado de terroristas, não alguma contrainsurgência circunscrita contra a al-Qaeda, mas uma “guerra ao terror” planetária que também tomou estados como seus alvos – Iraque, Irã, Coreia do Norte – que formariam um “eixo do mal” que acabava de ser demarcado. [1] Segundo os que participaram das reuniões do Conselho Nacional de Segurança nos dias imediatamente posteriores ao 11/9,

O ímpeto inicial para invadir o Iraque (...) era fazer de [Saddam] Hussein um caso exemplar, criar um modelo-demonstração para guiar o comportamento de todos que cometessem a temeridade de apontar armas destrutivas ou de, fosse como fosse, desafiar a autoridade dos EUA. [2]

Pois cinco anos depois de o presidente ter denunciado perante o Congresso o “eixo do mal”, e quatro anos depois que seu governo invadira e ocupara o Iraque e declarara a meta de arrancar do regime de Saddam as suas armas de destruição em massa, os norte-coreanos detonaram sua própria bomba atômica; e os sírios e iranianos, como se lê nas memórias do vice-presidente dos EUA, estavam “ambos trabalhando para desenvolver capacidade nuclear”. E, ainda mais:

A Síria estava facilitando o fluxo de combatentes estrangeiros para dentro do Iraque, onde eles matam soldados norte-americanos. O Irã fornecia dinheiro e armas para exatamente o mesmo objetivo, além de fornecer armas para os Talibã no Afeganistão. Os dois países estavam envolvidos no apoio ao Hezbollah em seu esforço para ameaçar Israel e desestabilizar o governo libanês. Eram a principal ameaça aos interesses dos EUA no Oriente Médio.

Pela própria análise do vice-presidente, a abordagem de “modelo-demonstração”, avaliada pelo critério de “guiar o comportamento” dos países do “eixo do mal” e seus aliados, estava dando resultados pouco claros. Assim sendo:

Eu disse ao presidente que precisávamos de estratégia mais efetiva e mais agressiva para conter aquelas ameaças, e entendia que um importante primeiro passo seria destruir o reator no deserto sírio.

Um ataque aéreo contra a Síria – como Cheney diz ao documentarista Cutler – “serviria para, de certo modo, reafirmar o tipo de autoridade e influência que tínhamos antes, em 2003 – quando derrubamos Saddam Hussein e eliminamos o Iraque como fonte potencial de armas de destruição em massa”. 

“Antes, em 2003” fora a Era de Ouro, quando o poder dos EUA alcançara o pico. Depois que Cabul caíra em poucas semanas, o choque e pavor lançado pelos aviões e mísseis dos EUA levaram os soldados dos EUA, como tempestade, diretamente para Bagdá. A estátua de Saddam, com a ajuda de um tanque norte-americano e correntes grossas, estatelou-se na calçada. O primeiro país do “eixo do mal” havia caído. O presidente Bush meteu-se numa jaqueta de aviador e subiu ao convés do USS Abraham Lincoln. Foi o momento “Missão Cumprida”.

Ainda assim... não há algo de claramente esdrúxulo em referir-se, em 2007 – para nem falar das memórias de 2011 e da entrevista para o documentário, de 2013 – a “o tipo de autoridade e influência que tínhamos antes, em 2003?”. Quatro anos depois que os EUA declararam vitória no Iraque – e quando o vice-presidente recomendava “veementemente” que os EUA atacassem a Síria – mais de 500 mil iraquianos e quase cinco mil norte-americanos estão mortos; o Iraque estava à beira da anarquia; e não se via, como ainda não se vê ainda nenhuma probabilidade de a guerra acabar. 

E não só o fim, mas também o início daquela guerra, sumiram numa nuvem negra de confusão e controvérsia, agora que já se sabe com certeza que as tais armas de destruição em massa de Saddam jamais existiram. A invasão não produziu a vitória rápida e conclusiva que Cheney anteviu, mas um pântano, no qual os militares dos EUA ocuparam e destruíram um país muçulmano e, quatro anos adiante, estavam, como hoje, à beira da derrota. 

Quanto à “autoridade e influência”... No mesmo período, a Coreia do Norte avançou na produção de armas nucleares; e Irã e Síria foram empurrados na direção de trabalhar para também produzi-las. 

Tudo isso considerado, o que o “modelo-demonstração” demonstrou? Se tais demonstrações realmente guiaram “o comportamento de todos que cometessem a temeridade de apontar armas destrutivas ou de, fosse como fosse, desafiar a autoridade dos EUA”, como, exatamente, a decisão de invadir o Iraque e o desastroso resultado daquela guerra guiaram as ações e políticas daqueles países? 

O mínimo que se deve dizer é que, se a teoria funcionou, então a tal “autoridade que tínhamos antes, em 2003” na conquista de Bagdá, acabou também desmascarada: a insurgência continuou e cresceu. Como as fantasias nos EUA.

O auge do poder fora alcançado antes, não em Bagdá, mas muito antes, quando os líderes decidiram construir toda essa aventura militar desastrada. Ao invadir o Iraque, os políticos do governo Bush – e, à frente deles, liderando-os – Cheney e o Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld – conseguiram mostrar ao mundo não a vasta extensão do poder dos EUA, mas as limitações desse poder. O mínimo que se pode dizer é que o tal “modelo-demonstração” teve efeito oposto ao que visava: encorajou os “estados bandidos”, os quais, ante a possibilidade real de ação muito agressiva pelos EUA, foram empurrados na direção de mobilizar suas forças militares não convencionais, na direção de buscar os meios mais baratos para conter aquele ataque: cada um pode ter começado a considerar, ali, a possibilidade de construir seus próprios arsenais nucleares. 

A guerra do Iraque sugeriu-lhes muito veementemente que, ainda que os EUA invadissem os países daquela região, um núcleo duro de resistência determinada, equipada com armamento leve, coletes explosivos e outros objetos explosivos improvisados, bem poderia bastar para contê-los; ou para contê-los, pelo menos, até que a paciência da população dos EUA se esgotasse completamente.

George W. Bush e Dick Cheney na Casa Branca em março de 2008
foto: Stephen Crowley/The New York Times/Redux

2.

Em novembro de 2007, dois, de cada três norte-americanos já concluíra que a guerra do Iraque fora erro grave. O presidente Bush, que já se ia tornando o presidente menos popular nos EUA desde o início das pesquisas de popularidade, já liderara os Republicanos para um “tropeço” calamitoso nas urnas, perdendo o controle das duas casas do Congresso – e, afinal, se viu obrigado a demitir Rumsfeld, mentor de Cheney há muitos anos, apesar das empenhadas objeções de Cheney.

Rumsfeld foi quem levou o jovem Cheney para dentro da Casa Branca no final dos anos 1960s e comandou sua espantosa ascensão política; e foi Rumsfeld quem colaborou mais empenhadamente com Cheney na defesa da sua “estratégia do efeito demonstração”. Até quando Bush entrevistou secretamente Robert M. Gates, possível substituto de Rumsfeld, em seu rancho em Crawford, Texas, dois anos antes da eleição, discutindo Iraque, Afeganistão e o periclitante estado dos militares norte-americanos, a sombra do vice-presidente pairava no ar. 

Segundo Gates, “Com cerca de uma hora de conversa, o presidente curvou-se para frente e perguntou se eu tinha mais alguma pergunta. Respondi que não. Ele fez um semisorriso e disse Cheney?. [3] 

Duas sílabas. Um nome. Ao ouvir, Gates como que “semissoriu, de volta”. Quem leia a passagem também semissori. Mas o quê, exatamente, significa esse nome acompanhado de um semisorriso? Em primeiro lugar, antes de tudo, levanta uma pergunta sobre o poder – poder secreto, macabro. Poder sem controle ou limites. Poder duro. O poder por trás do presidente dos EUA. O lado obscuro. O homem que, ainda que não mais pudesse impedir a demissão de seu mentor e íntimo colaborador de muitos anos, não poderia jamais, ele mesmo, ser demitido.

Richard Bruce Cheney, o homem que aceitou o convite do governador George W. Bush, em 2000, para que comandasse a busca por um vice-presidente perfeito para a chapa presidencial de Bush, e cujos esforços o levaram a ninguém menos que ele mesmo; esse homem estaria lá, ao lado de Bush, ou nas sombras por trás de Bush, até o amargo fim. Com sua experiência e sofisticação, a expressão sem expressão – o olhar inalterável, a cabeça sempre um pouco caída de lado – esse homem incorporou uma filosofia do poder sem mercê, brutalmente simples: atacar, esmagar o inimigo; que os outros o temessem e, pelo medo, submeter todos. Poder que, de tempos em tempos tinha de deixar-se ver como pura violência, como as execuções de Voltaire, pour encourager les autres [para dar coragem aos outros].

No que tenha a ver com a ascensão de Cheney e sua sobrevivência no poder, está-se sempre no reino dos milagres. Em 1969, Cheney tinha 28 anos e não passava de acadêmico recém-formado chegado de Wyoming, que trabalhava obscuramente como assessor parlamentar no Capitólio – e era uma sorte ter chegado até ali, depois de duas vezes reprovado em Yale e duas passagens pela cadeia por dirigir embriagado. Cinco anos depois, era chefe de gabinete da presidência do presidente Gerald Ford. Não há, na história dos EUA, mais rápida ascensão ao poder. Até a aura de seu sucessor, Donald Rumsfeld, empalidece diante de tal sucesso. [4] Pode-se dizer que grande parte da ascensão de Cheney deveu-se ao apadrinhamento que recebeu de Rumsfeld; mas também muito deve ao próprio caso Watergate – e às oportunidades, que só aparecem uma vez na vida de um político, quando acontece de um presidente renunciar e de ter sucessor insignificante. Cheney, mal chegado aos trinta anos, conheceu de perto todos os órgãos secretos do poder executivo, especialmente a CIA; assistiu a um momento em que estavam sendo desmascarados, expostos, humilhados, açoitados. Se é verdade que “depois do 11/9 tiramos as luvas”, Cheney, como poder jovem e improvável na Casa Branca de Nixon e depois na de Ford, ganhou cadeira na primeira fila para observar os métodos pelos quais o Congresso, antes, havia vestido as tais luvas.

Depois da derrota de Ford em 1976, Cheney foi eleito como único representante de Wyoming na Câmara de Deputados e cresceu com espantosa velocidade; em uma década, andou de líder inexperiente da minoria, à terceira posição na hierarquia da maioria. E estava a caminho de ser escolhido presidente da Câmara, quando aceitou o convite do presidente George H.W. Bush para ser seu Secretário da Defesa; e dali, depois de comandar o Pentágono na selvagemente popular Operação Tempestade do Deserto, deixou o governo, depois da derrota de Bush, para tornar-se presidente da empresa Halliburton – a gigante do petróleo (dentre outras coisas). Já rico e influente como líder empresarial, ele afinal partiu para ser – a expressão é lugar comum, mas absolutamente anômala – “o mais poderoso vice-presidente da história dos EUA”.

E todo o tempo, enquanto isso, como um solo de contrabaixo sinistro que cresce por baixo dessa narrativa de poder e triunfo, avança outra narrativa sombria, de vida e morte, em vários sentidos ainda mais espantosa. Durante a campanha para a Câmara de Deputados em Cheyenne, Wyoming, em 1978, Cheney teve um ataque cardíaco. Seu médico e coautor de Heart: An American Medical Odyssey, Jonathan Reiner, observa que não conhece outro caso de alguém que tenha tido um ataque cardíaco nos anos 1970s e ainda esteja vivo hoje. O ataque cardíaco de Cheney, em 1978, foi o primeiro de cinco; sua sobrevivência foi, cada dia mais, resultado do emprego da mais avançada tecnologia médica que, como por milagre, sempre aparecia disponível para ele, quando era necessária – como o próprio Cheney escreve: “íamos por uma rua, atrasados para o trabalho, e todos os faróis à frente estavam vermelhos; mas, de repente, todos viravam verdes, um segundo antes de eu chegar”. No livro, Reiner recorda o convite de um colega, que o chamou num final de tarde, em março de 2012: “Hei, Jon, venha dar uma olhada”. Entrando na sala de cirurgia, encontrou uma cena singular:

Na mão direita de Alan, espetado com várias pinças cirúrgicas e separado do corpo ao qual dera vida por 71 anos, estava o coração do vice-presidente Cheney. Enorme, quase o dobro do tamanho de um órgão normal, coberto de cicatrizes da batalha de 40 anos contra a doença que o mataria. Baixei os olhos, do coração para o tórax... Aquele vazio surreal era lembrete vívido de que não haveria volta. [5]

Dick Cheney - Desenho em lápis de cor por Pancho

3.

“Sem volta” pode ser um bom slogan para Dick Cheney. Suas memórias chamam a atenção – e é traço que ele partilha com Rumsfeld – por uma quase absoluta ausência de ideias revistas, de arrependimento, sequer da mais leve reconsideração. “Concluí que o melhor modo de levar adiante minha vida e minha carreira era fazer o que me parecesse certo” – Cheney conta ao seu médico. – “Fiz o que fiz, é tudo de conhecimento público, e sinto-me muito bem sobre tudo que fiz”.  

As decisões de hoje, são as mesmas de então. Se aquele momento “Missão Cumprida” em 2003 parecia ser o auge do poder e da autoridade dos EUA, assim permanecerá para sempre – jamais questionado, jamais alterado, sem qualquer diferença produzida por eventos posteriores que mostram hoje, claramente, que nada jamais foi o que então parecia ser. “Se tivesse de fazer outra vez, faria” – diz Cheney. – “Faria tudo outra vez, num minuto”.

Mas o nenhum arrependimento, a recusa a qualquer reconsideração, não altera o curso das causas e efeitos; nenhuma certeza de que as decisões teriam sido acertadas, por certeza total, que seja – e a perfeição inalterável das certezas de Cheney é absolutamente de estarrecer – obscurece a evidência de que foram decisões erradas. Não raro, a total impopularidade de uma dada decisão parece oferecer a satisfação que Cheney busca, um tributo ao seu desinteresse, à sua sinceridade, como se a ausência total de apoio político fosse uma espécie de comprovação da pureza de seus motivos íntimos. “Cheney é o contra-política” – observa Barton Gellman, autor de Angler, [6] brilhante estudo da vice-presidência de Cheney. – “Mas nenhum presidente pode ser contra-política. Nenhum presidente governa desse modo”. 

Em 2007, até o presidente Bush já começava a compreender isso, ao ver os riscos e abismos das certezas de Cheney. Tendo ousado tentar sua própria pesquisa, de uma palavra só, na entrevista com Robert Gates – “Cheney?” – Bush responde, ele mesmo, a própria pergunta: “É uma voz, uma voz importante, mas é só uma voz”. Afinal, dessa vez, Bush acertaria: no debate sobre atacar a Síria, no qual Gates, Secretário de Defesa, uniu-se à Secretária de Estado, Condoleezza Rice e ao Conselheiro Nacional, Stephen Hadley, na oposição a Cheney. “A ideia de que poderíamos bombardear o reator sírio para afirmar alguma coisa em termos de não proliferação, a partir de inteligência duvidosa” – Rice escreve em suas memórias – “foi, para dizer o mínimo, imprudente”. [7] 

Não era só a possibilidade de que aquele ataque surpresa desencadeasse uma conflagração regional e empurrasse sírios e iranianos para dentro do pântano iraquiano, nem o fato de que os norte-americanos estavam fartos de guerra e desesperados para sair do Oriente Médio, não para atacar ali ainda outro país. Os chineses estavam profundamente envolvidos – fortemente contrários a qualquer ataque à Coreia do Norte, que ajudara a construir o reator sírio – e, Rice observa, “eles (e o resto da região) jamais tolerariam o ataque militar que o vice-presidente recomendava”.

Não importa. Cheney sempre se orgulhou de manter as considerações políticas bem distantes das decisões sobre “o que é certo”; e nenhuma guerra perdida, menos ainda alguma derrota eleitoral, mudariam sua opinião sobre o terrível “nexo” entre os terroristas e os estados que os patrocinavam e as armas de destruição de massa. O próprio Cheney diz ao seu médico: “Você não pode querer que a Síria ganhe esse tipo de capacidade, que podem transferir ao Hamás ou Hezbollah ou al-Qaeda”. Apesar da guerra então em curso no Iraque, dos medos disseminados de uma conflagração regional e de os norte-americanos estarem cansados de guerras, os EUA não tinham escolha senão atacar a Síria; e sem demora. E Gates observa que “Cheney sabia que, embora, de nós quatro, só ele quisesse atacar a Síria como primeira e única opção, ele talvez conseguisse convencer o presidente”. [8] 

Talvez conseguisse; se conseguisse, não seria a primeira vez que a voz de Cheney, isolado ou não, ganharia o dia. O vice-presidente fez lobby direto sobre o presidente; em seguida, apresentou seu caso na reunião do Conselho de Segurança Nacional em junho de 2007:

Falei para o grupo e diante do presidente (...) Acho que fui bastante eloquente (...) O presidente disse “Certo. Quantos de vocês concordam com o vice-presidente?” E ninguém ergueu a mão.

Já iam longe os dias em que Bush ignorava as mãos erguidas e decidia o que Cheney lhe dissesse que decidisse. Não voltariam os dias gloriosos da “autoridade e influência que tínhamos em 2003”. Tendo já recusado o que Israel lhe pedia, que atacasse a Síria por ar, Bush também desestimulou, pelo menos verbalmente, ação direta pelos israelenses, aparentemente para seguir o que lhe diziam Rice e Gates, que levasse à ONU o caso do reator sírio. 

Mas os israelenses tinham outros planos. Tarde da noite, em setembro de 2007, os F-15 israelenses de fabricação norte-americana e usando bombas de precisão “destruíram” o reator. Os israelenses não deram muita promoção ao ataque, nem promoveram a “autoridade e a influência” nem de Israel nem do aliado norte-americano. Os israelenses mantiveram o ataque secreto e insistiram em que os EUA fizessem o mesmo – como fizeram também os sírios, que demoliram as ruínas e as fizeram sumir. O tempo dos “efeitos demonstração” estava acabado.
 
Donald Rumsfeld, Dick Cheney e Les Brown no aniversário do Exército em 13/6/2003
Foto de Doug Mills/The New York Times/Redux
4.

Contudo, ainda vivemos, até hoje, no mundo de Cheney. Por todos os lados veem-se as consequências de decisões dele: em Fallujah, Iraque, onde, no tempo de Saddam Hussein a al-Qaeda e seus aliados não existiam, jihadistas aliados da al-Qaeda acabam de reassumir o controle; na Síria, onde jihadistas iraquianos têm ativa participação na tentativa de golpe contra o governo do presidente Assad; no Afeganistão, onde os Talibã, praticamente ignorados depois do frenesi de 2002, para mobilizar a atenção dos norte-americanos contra Saddam Hussein, estão ressurgidos. E há também o outro lado da “guerra ao terror”, história ainda mais sinistra que Cheney, cinco dias depois dos ataques do 11/9, já expunha com precisão para todo o país, em entrevista ao programa Meet the Press:

Temos também de trabalhar, pode-se dizer, o lado escuro. Temos de trabalhar nas sombras do mundo da inteligência. Grande parte do que tem de ser feito tem de ser feito em silêncio, sem qualquer discussão, usando fontes e métodos acessíveis às nossas agências de segurança (...) É o mundo no qual trabalham esses sujeitos, e será vital para nós usar qualquer método ao nosso alcance, basicamente, para alcançar nosso objetivo.

No dia seguinte a esse comentário de Cheney, o presidente Bush assinou documento secreto, o qual, segundo John Rizzo, conselheiro da CIA há muito tempo,

(...) foi o mais amplo, mais abrangente, mais ambicioso, mais agressivo e mais arriscado MON [Memorandum of Notification/Memorando de Notificação] com o qual estive envolvido em toda a minha vida. Um parágrafo curto autorizava a captura e a detenção de terroristas da Al Qaeda; o outro autorizava a empreender ação letal contra eles. Linguagem simples e clara (...). Recebemos a caixa de ferramentas completa da ação clandestina, inclusive ferramentas que nunca havíamos usado antes. [9]

Esse Memorando, como Rizzo escreve, “permanece vigente até hoje”. Como a Autorização para Uso de Força Militar que Bush assinou no dia seguinte. Mais de 12 anos depois de assinados, esses são os dois pilares, simultaneamente secretos e públicos, escuridão e luz, sobre os quais ainda repousa a infindável “guerra ao terror”. 

Por mais que os EUA nos tenhamos habituado a ouvir o presidente Obama sempre a repetir, como fez recentemente na fala do Estado da União, que “os EUA temos de nos afastar dessa caminhada permanente para a guerra”, essas palavras, de tão repetidas, soam menos como ordem de comando de presidente, e, mais, como súplica de um homem solitário que tem esperança de persuadir.

Afinal, o que significam essas palavras, ante as realidades duríssimas do mundo do pós-11/9? O orçamento da Defesa mais do que dobrou, incluindo um Comando de Operações Especiais, com competência para lançar raids secretos letais contra qualquer ponto do planeta, e que passou, de 30 mil soldados de elite, para mais de 67 mil. O exército de drones passou, de menos de 200 veículos aéreos pilotados à distância, para mais de 11 mil, incluindo talvez 400 drones com “capacidade armada” que podem localizar e matar diretamente do céu – e, isso, comandados por “pilotos” que operam joysticks, em terminais instalados nos estados de Virginia e Nevada e em outros pontos dos EUA, e que, dali, já mataram estimadas 3.600 pessoas no Paquistão, Afeganistão, Iêmen e Somália.

O presidente Obama deu ordem para fechar os “pontos negros” [“black sites”] – a rede de prisões que a CIA implantou por todo o mundo, da Tailândia e Afeganistão a Romênia e Polônia e Marrocos –, mas, apesar da Ordem Executiva que assinou no seu segundo dia de mandato, o ponto negro que há na Baía de Guantánamo, o “ponto negro oficial”, permanece aberto, seus 155 prisioneiros, com exceção de meia dúzia, presos sem acusação e sem julgamento. Dentre eles há “prisioneiros de alto valor”, que foram capturados e presos nos pontos negros pelo mundo, onde muitos deles foram submtidos a “técnicas reforçadas de interrogatório”. [10] Perguntado por Cutler se considerava que “um período prolongado de imersão forçada para criar a sensação de morte por afogamento” – waterboarding – seja tortura, a resposta de Cheney saiu rápida e precisa:

Não. Diga-me que ataque terrorista você deixaria acontecer, porque você não quer comportar-se como bandido, ou como um safado. Você vai entregar a vida de muita gente, só porque você quer preservar a sua própria honra? Ou você vai fazer o serviço, o que é seu dever fazer, e cumprir sua primeira e principal responsabilidade, que é proteger os EUA e a vida de norte-americanos? Temos de escolher entre fazer o que fizemos, ou recuar e dizer ‘Sabemos que você sabe sobre o próximo ataque contra os EUA, mas não vamos obrigá-lo a falar, porque pode sujar nossa imagem’. Para mim, não há mérito nenhum nessa atitude.

À parte as vastas questões factuais aí apagadas, há uma espécie de arrogância amoral nessa resposta, que sufoca quem a ouça. Exatamente quando ocupava o posto de mais influente funcionário do governo dos EUA, no momento em que lhe caberia reafirmar o que determina a Convenção de Genebra sobre prisioneiros, Cheney optou por ser o mais influente e importante funcionário do governo dos EUA que criou uma política oficial que legaliza a tortura.

Já parece bem claro que Cheney simplesmente não sabe, ou não quer, reconhecer que essa política levante alguma questão moral ou legal. Cheney (e Joaquim Barbosa) parece (m) crer que os que veem e ouvem essas questões morais e legais seriam farsantes, gente que quer “aparecer” como democrata, alguma espécie de imbecil interessado em – “preservar” alguma honra. 

Isso é o que Cheney pensa das pessoas – e entre eles estão o advogado geral dos EUA e até o presidente Obama – que declararam publicamente que waterboarding é tortura e, portanto, que é procedimento absolutamente ilegal. Para Cheney, aí, não há sequer qualquer problema. 

No momento em que escrevo, cinco homens estão sendo processados por terem arquitetado os ataques de 11/9/2001. Embora se deva esperar que os procedimentos sejam descritos como “o julgamento do século” e venham a atrair alguma atenção, é possível – é, mesmo, muito provável – que o leitor não tenha sequer ouvido falar desse julgamento. Os cinco acusados pela morte de quase 3 mil norte-americanos estão sendo julgados ante uma comissão militar, na prisão da Baía de Guantánamo. Apenas uma meia dúzia de pessoas foram autorizadas a assistir ao julgamento, entre as quais alguns poucos jornalistas. Todos consideram as condições daquele julgamento estranhas, em nada semelhantes a qualquer julgamento ao qual tenham algum dia assistido, como relata Carroll Bogert, da ONG Human Rights Watch:

O público assiste aos depoimentos por trás de janelas de vidro à prova de som, por um canal de áudio que nos chega com 40 segundos de atraso. Quando algo “sensível” é dito na sala, o juiz acende uma infame “luz de jogo” [“hockey light”], e o comentário é apagado (...).

O grau de sigilo, que veda até as informações mais banais, é de enlouquecer. Um ex-sargento de campo emitiu um memorando sobre o material que os advogados de defesa não podem entregar aos réus que eles defendem. O primeiro item proibido da lista é o próprio memorando. 

Os acusados, entre os quais Khalid Sheikh Mohammed, principal organizador confesso do 11/9, que foi preso em Rawalpindi, Paquistão, em março de 2003 e imediatamente desapareceu na rede de prisões clandestinas da CIA, tendo sido mantido preso, ao que já se sabe, em “pontos negros” no Afeganistão, Tailândia e Polônia, foi submetido a uma complexa mistura de “técnicas reforçadas de interrogatório”, que incluíram longos períodos de privação de sono, espancamento, nudez forçada, “walling,” [11] imersões em água fria e waterboarding, tortura à qual foi submetido por 183 vezes. Embora essa específica informação conste de documentos da CIA, inclusive o documento de autorização emitido pelo inspetor geral da CIA, que foi divulgado publicamente, são proibidas durante o julgamento todas as referências à tortura a que Mohammed e os demais acusados foram submetidos. Apesar disso, escreve Bogert, “a tortura é o pecado original de Guantánamo”.

A tortura é, ao mesmo tempo, invisível e onipresente. O governo dos EUA quer cobertura para os ataques do 11/9, mas não para a simulação de afogamento, a privação de sono, a proibição de sentar ou deitar e outras formas de tortura que a CIA aplicou aos acusados. É tarefa difícil julgar o caso do 11/9 e tentar, simultaneamente esconder a tortura dos olhos dos cidadãos. “A tortura é o fio que corre por trás disso tudo” – disse um dos médicos dos prisioneiros. – “É impossível contar a história do 11/9 sem falar da tortura”.

Mesmo assim, aquele é um simulacro de tribunal em que militares norte-americanos fingem que respeitam a lei, assessorados por alguns advogados civis. Esse julgamento único, mortificante, assustador – tentativa fracassada de oferecer algum tipo de justiça desfigurada àqueles homens – é mais uma resposta fracassada aos ataques: não um resto de lembrança que queremos esquecer, mas um presente que tentamos ignorar. Bogert continua:

Os acusados pelo 11/9 não estão sendo torturados hoje, não, pelo menos, como foram torturados antes. Mas pouco se sabe sobre as condições em que estão presos. Durante anos, até o nome do local, “Campo 7”, foi secreto. O julgamento está suspenso, enquanto se avaliam as capacidades mentais de um dos acusados, Ramzi bin al-Shibh. Mês passado, Ramzi não parou de interromper os depoimentos, aos gritos de “É a minha vida. Isso é tortura. TORTURA!”.

Não se entendia o que mais ele dizia (...) o áudio das falas de Bin al-Shibh vinha acompanhado de ruídos, praticamente todo o tempo. [12]

Orwelliano? Kafkeano? As palavras tornam-se insuficientes, inadequadas. Contra o ruído dessas vozes distantes, sufocadas, quase completamente esquecidas e ignoradas, o que se ouve é ainda a voz do ex-vice-presidente, que fala claro e firme, desavergonhadamente, sem culpas ou remorso. Mas, se o mundo pós-11/9 for melhor que o mundo pré-11/9, ele será melhor, não pelo que disse e fez Dick Cheney (ou Joaquim Barbosa), mas pelo que disserem e fizerem as vítimas dele(s).

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Observações:

Mark Danner
[*] Resenha de: The World According to Dick Cheney (filme dirigido por R.J. Cutler e Greg Finton); CHENEY, Dick & CHENEY, Liz, In My Time: A Personal and Political Memoir (Threshold, 565 pp., $16.00 (paper), 2013; e CHENEY, Dick & REINER, Jonathan (com Liz Cheney), Heart: An American Medical Odyssey, Scribner, 344 pp., $28.00.


[**] Biografia comentada de Joaquim Barbosa (embora só superficialmente, como é típico do “jornalismo” brasileiro, que é o pior do mundo).
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Notas de rodapé

[1] Esse é o 4º, de uma série de artigos. Os anteriores são “Rumsfeld’s War and Its Consequences Now”. The New York Review, 19/12/2013; “Rumsfeld Revealed”, The New York Review, 9/1/2014 e “Rumsfeld: Why We Live in His Ruins”. The New York Review, 6/2/2014..

[2] Ver SUSKIND, Ron, The One Percent Doctrine: Deep Inside America’s Pursuit of Its Enemies Since 9/11 (Simon and Schuster, 2006), p. 123.  

[3] Ver Robert M. Gates, Duty: Memoirs of a Secretary at War (Knopf, 2014), p. 7.   

[4] Ver “Rumsfeld’s War and Its Consequences Now”. [As guerras de Rumsfeld e suas Consequências Hoje]. Talvez Theodore Roosevelt, que subiu, do posto de chefe de polícia de New York City à presidência, em seis anos, se aproxime disso. Ver Tevi Troy, “Heavy Heart: The Life and Cardiac Times of Dick Cheney”. The Weekly Standard, 27/1/2014.

[5] Parece que continua vivo. Mas há dúvidas. Dia 11/2/2014, a internet pululava de confirmações festivas e de desmentidos iracundos. [NTs]

[6] Barton Gellman, Angler: The Cheney Vice Presidency (Penguin, 2008).

[7] Condoleezza Rice, No Higher Honor: A Memoir of My Years in Washington (Crown, 2011), p. 713.  

[8] Gates, Duty, p. 172.

[9] Ver John Rizzo, Company Man: Thirty Years of Controversy and Crisis in the CIA (Scribner, 2014), p. 174.

[10] Ver meu artigo “US Torture: Voices from the Black Sites”, The New York Review, April 9, 2009.  

[11] Ver em 14/4/2009, The Guardian, Ewen Mac Askill em: Torture techniques endorsed by the Bush administration

[12] Ver Carroll Bogert, “There’s Something You Need to See at Guantanamo Bay”. Politico, 22/1/2014.


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