sexta-feira, 10 de maio de 2013

Kerry não conseguiu incendiar o rio Moscou


9/5/2013, M K Bhadrakumar*, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

As preliminares dos encontros de alto nível entre russos e americanos sempre são reveladoras. Dessa vez, os dois lados jabearam, na preparação para a “visita de trabalho” de um dia, do Secretário de Estado dos EUA John Kerry a Moscou, na 3ª-feira.

John Kerry (E) e Sergey Lavrov (D) (Moscou 7/5/2013)
As conversas de Kerry produziram resultado significativo, com Washington e Moscou concordando sobre um “mapa do caminho” para resolver a crise na Síria. Parte da razão pela qual se formou quase instantaneamente a percepção de “algum avanço” está em que a visita de Kerry aconteceu em contexto de previsões quase exclusivamente sombrias.

Os ataques de Israel à Síria, os quais – para dizê-lo em termos suaves – Washington “liberou”, geraram uma estranha “abertura” para as conversas de Kerry em Moscou. De fato, Moscou fumegava de fúria. O presidente Vladimir Putin telefonou ao Primeiro-Ministro de Israel Benjamin Netanyahu (que estava em Xangai) e, segundo a rede Debka, aplicou-lhe uma carraspana “de alto a baixo”, avisando-o de que haverá consequências muito graves, se esse tipo de tresloucamento voltar a repetir-se.

Israel bombardeou áreas civis da Síria
Mais uma vez, sabendo perfeitamente que a Síria estaria no item 1 da agenda de Kerry em Moscou, na 2ª-feira a Comissão de Relações Exteriores do Senado dos EUA encaminhou projeto de lei que autoriza o envio de ajuda militar aos “rebeldes” sírios. Foi mal disfarçada pressão tática, de ameaça a Moscou: se não fizesse concessões no caso sírio, Obama armaria os combatentes antirregime.

Baixas expectativas

Mikhail Saakashvilli
Além disso, posto que se tratava de “visita de trabalho”, Kerry deveria ter-se limitado a negócios de governo. Não. Recebeu grupos da sociedade civil russa na residência do embaixador em Moscou, sabendo muito bem das sensibilidades no Kremlin.

Para dizer o mínimo, também foi movimento diplomático de extremo mau gosto os EUA terem hospedado o Presidente da Georgia, Mikhail Saakashvilli, em Washington às vésperas de Kerry partir para a visita à Rússia. Kerry e Saakashvilli têm muito a conversar, mas o georgiano é como capa vermelha aos olhos do touro russo, e Putin nunca se deu o trabalho de disfarçar o profundo desprezo que lhe inspira esse homem, que fez correr sangue russo.

Tudo isso posto, é claro que Moscou não estava exatamente eufórica, quando Kerry pousou no aeroporto Vnukovo, para a primeira visita à Rússia como principal diplomata dos EUA. Foi deixado lá, congelando no aeroporto, por meia hora. Os anfitriões, quando apareceram, explicaram que haviam sido detidos num engarrafamento monstro no centro de Moscou, devido a um desfile militar.

Na sequência, a audiência previamente agendada para Kerry no Kremlin atrasou três horas. Porque Putin estava ocupado em reunião de Gabinete, que se prolongara além do previsto.

Para não deixar pontas soltas, foi mais que coincidência que, no instante em que Kerry pisava solo russo, as autoridades de Moscou invadiam os escritórios de mais três ONGs: porque receberam ilegalmente “consideráveis somas de dinheiro de fontes estrangeiras, principalmente de fontes localizadas nos EUA”. As ONGs com sede nos EUA que foram incriminadas dessa vez incluem grupos “5 estrelas”, como a Fundação George Soros e a National Endowment for Democracy.

Para resumir, na 3ª-feira pela manhã, os dois lados, Washington e Moscou davam sinais de já se terem conformado com baixas expectativas de resultado da visita de Kerry. E, de fato, os tópicos mais espinhosos que os separam, como a crise síria, o problema nuclear iraniano ou o sistema de defesa antimísseis, não têm conciliação simples.

Thomas Donilon
Moscou ainda não respondeu carta enviada pelo presidente Barack Obama, entregue a Putin pelo Assessor de Segurança Nacional, Thomas Donilon, em visita a Moscou, mês passado. Pelo que se divulgou, a carta conteria as propostas de Obama para um desarmamento nuclear estratégico, mas, para Moscou, o tema continua na dependência de haver algum progresso na discussão sobre o programa norte-americano de mísseis de defesa.

Simultaneamente e, interessantemente, dois bombardeiros russos com capacidade nuclear Bear H foram vistos dias 28 e 29 de abril sobrevoando zonas norte-americanas de defesa aérea no Alasca [orig. US military’s Alaska Air Defense Identification Zone e Alaska's North Slope region (NTs)], no Ártico e nos mares Chukchi, onde os EUA mantêm um radar estratégico antimísseis.

É o quinto incidente do mesmo tipo desde junho, em que se veem aviões bombardeiros estratégicos russos sobrevoando instalações militares norte-americanas super sensíveis – ocorrência de rotina em tempos de Guerra Fria.

“Quem são as partes?”

Tudo considerado, Kerry estava pressionado para mostrar frutos de suas conversas em Moscou. Suou, na conferência conjunta de imprensa, ele e o Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, para mostrar algum avanço significativo na Síria – depois que Lavrov passou-lhe a palavra. Lavrov disse que:

Rússia e EUA trabalharão para levar o regime Assad e a oposição à mesa de negociações, juntos, com vistas a encontrar uma solução política para a crise. Acertamos também uma conferência internacional, para o final de maio, para construir a partir de um plano de transição negociado ano passado em Genebra. Rússia e EUA confirmaram a intenção de ambos os países de respeitar a soberania e a integridade territorial da Síria. [1]

Kerry transbordava de otimismo, certo de que a oposição síria está preparada para sentar à mesa com o regime de Assad e já adotou abordagem “inclusiva e democrática”. Sobre isso, Lavrov disse que, no momento, reservava-se o direito de não comentar.

Quanto à integridade territorial da Síria, Moscou trabalha com o dado de que os EUA ainda precisam evoluir, até as conversações, mas, também, precisam conseguir que seus parceiros na região suspendam a gigantesca contribuição financeira e material que continua a abastecer os “rebeldes” sírios.

A certa altura, só a muito custo Kerry conseguiu não repetir o mote de Washington a favor de “mudança de regime” na Síria:

Nossa posição tem sido de que é impossível para mim, como indivíduo, entender como a Síria poderia ser governada no futuro pelo homem que cometeu as coisas [orig. committed the things] que sabemos que aconteceram [orig. that we know have taken place]. Mas não que – não vou decidir nada hoje. E não vou decidir nada no final. Porque o comunicado de Genebra diz que o governo de transição tem de ser escolhido por mútuo consenso das partes. Quem são as partes? As partes são o atual regime e a oposição.

Lavrov não arredou pé da posição de que é simplesmente impossível excluir o governo sírio, do diálogo político:

O povo sírio não é noção abstrata, não é só o regime nem só a oposição, que há anos vive longe da Síria, à parte. O povo sírio é toda a nação. A maioria da população teme a derrubada do regime Assad. Temem que os que combatem contra o atual regime assumam o controle, e que a Síria passe a ser governada por extremistas.

Mais uma vez, Kerry de certa maneira “diluiu” a data da conferência; disse que:

...acontecerá tão logo seja prático, possivelmente, esperamos, pelo fim desse mês. Marcaremos – tentaremos agendar uma conferência internacional como seguimento da conferência de Genebra no verão passado.

Silêncio ensurdecedor

Do mesmo modo, ao ser convidado a comentar o projeto de lei encaminhado no Capitólio, 2ª-feira passada, sobre armar os rebeldes sírios, Kerry tergiversou e não respondeu diretamente. Moscou, não há dúvidas, anotou a ambiguidade de Kerry.

O governo Obama tentou criar a impressão de que Kerry daria “um empurrão em Putin, na questão síria”, agindo por dois ângulos: ameaças norte-americanas de que armarão a oposição e a prova de que o governo sírio usou armas químicas.

Vladimir Putin
Péssima tática diplomática que, muito provavelmente está voltando feito bumerangue, dado que Putin detesta ser mostrado como se estivesse pressionado pelos EUA. De fato, os EUA mudaram de posição na questão chave: já não estão exigindo, como precondição a qualquer diálogo, que Assad deixe o governo.

Por outro lado, surge agora um novo desafio para cada um dos dois lados. Para Moscou, tornou-se vitalmente importante manter Kerry fisgado pela palavra, no que tenha a ver com o imperativo de um diálogo político inclusivo, que inclua o governo Assad.

Para Washington, ao contrário, o desafio é conseguir persuadir os sauditas, qataris e o governo turco aliados, a aceitar Assad como participante legítimo do diálogo sírio, por maior que seja a antipatia que lhes inspire.

Barack Obama
A “mão” dos EUA parece provavelmente fortalecida pelo fato de que os aliados europeus estão “muito satisfeitos” com os sinais de que EUA e Rússia concordam na direção de que “a solução do conflito sírio está num acordo político amplo, compreensivo”. Mas persiste aquele silêncio ensurdecedor em Riad, Doha e Qatar sobre a “abertura” obtida nas conversações de Kerry em Moscou.

A Rússia, por seu lado, cuida para não esquecer que o governo Obama, e especialmente Kerry, estão sob descomunal pressão do Congresso, de setores influentes da comunidade estratégica dos EUA e, claro, dos aliados no Golfo Persa e de Israel – tanto quanto, por dentro, também do próprio establishment da política exterior norte-americana – para “fazer algo” sobre a Síria.

Mas o governo Obama também está agudamente consciente de que a opinião pública norte-americana rejeita o envolvimento dos EUA em mais uma guerra, depois de uma décadas de conflito no Iraque e no Afeganistão, que já custou a vida de 6.000 soldados norte-americanos.

Sergei Karaganov
Moscou sente que Kerry é interlocutor tratável, que pode ser persuadido. O importante pensador político russo, Sergei Karaganov, disse recentemente, que Hillary Clinton, que precedeu Kerry, falava demais, em tom professoral, de pregação, sobre uns seus “valores morais”, o que irritava muito mais de um alto funcionário russo.

Por tudo isso, é possível que o lado russo tenha-se arriscado mais do que o normal, para reforçar a posição de Kerry nessa situação. Mas também pode ter sido esperar demais, dado que há em jogo interesses cruciais de russos e norte-americanos e, no cômputo final, prevalecerão as políticas e objetivos respectivos, para as grandes questões globais.

O próprio Kerry fixou metas de certo modo modestas para que se avaliasse sua visita a Moscou: disse que esperava diálogo “saudável” entre EUA e Rússia. E tudo isso acontece com Putin e Obama já agendados para conversarem, mês que vem, às margens da Reunião do G-8, na Irlanda do Norte.
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Nota dos tradutores
[1]  8/5/2013, Ria Novosti, Rússia, em: Russia, US Want Talks Between Syrian Govt, Opposition
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*MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

Um comentário:

  1. Comentário enviado por Eduardo Lima de Medeiros para a redecastorphoto via facebook

    Não deixem de assistir este vídeo:

    http://youtu.be/BKFCm1qdsVw



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