quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Qatar e EUA: colusão ou conflito de interesses?


23/1/2013, Nicola Nasser, Countercurrents
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Nicola Nasser
No discurso da segunda posse, dia 21/1/2013, o Presidente dos EUA, Barack Obama fez o anúncio, histórico, de que “está terminando uma década de guerras” e declarou que os EUA estão determinados a “demonstrar a coragem necessária para resolver pacificamente nossas diferenças com outras nações”. Mas é mensagem que não passará de palavras, se não vier seguida de ações e que ainda não alcançou alguns dos mais íntimos aliados dos EUA no Oriente Médio, os quais ainda batem os tambores de guerra, como Israel contra o Irã, e o Qatar contra a Síria.

Se se consideram o nível de “coordenação” e “cooperação” desde que se estabeleceram relações diplomáticas em 1972 entre EUA e Qatar, e a concentração de militares dos EUA naquela minúscula península, parece impossível que o Qatar possa mover-se independentemente, em paralelo ou fora de uma linha de colisão frontal com os planos estratégicos regionais dos EUA.

EUA e Qtar, mesmos interesses?
Segundo a página online do Departamento de Estado dos EUA, “as relações bilaterais permanecem fortes”, os dois países estão diplomaticamente “em coordenação” e “cooperando” para a segurança regional; mantêm um “pacto de defesa”; “o Qatar hospeda o quartel-general avançado do CENTCOM” e apoia a OTAN e as “operações militares regionais dos EUA”. O Qatar é também ativo participante nos esforços, comandados pelos EUA para implantar uma rede integrada de mísseis de defesa na região do Golfo. E, além do mais, o Qatar abriga o Centro de Operações Aéreas Combinadas dos EUA e três bases militares norte-americanas: a Base Aérea Al Udeid, a Base Assaliyah do Exército e a Base Aérea Internacional de Doha – nas quais estão alojados cerca de 5.000 soldados norte-americanos.

Cada estrela representa uma base militar dos EUA no Oriente Médio.
O Centro de Comando é no Qtar
O Qatar, ligado aos EUA por aliança assim tão próxima e íntima, desenvolveu recentemente a prática de financiar pesadamente – é o principal patrocinador – os movimentos políticos islamistas. O Qatar é hoje o principal patrocinador da organização internacional da Fraternidade Muçulmana, que, desde 1999 deixou de ver a família reinante como força adversária.

O casamento de conveniência entre o Qatar e os Irmãos criou uma incubadora natural de islamistas fundamentalistas armados, contra os quais, desde 11/9/2001, os EUA fazem o que se conhece sob o rótulo de “Guerra Global ao Terror”.

A guerra no Mali, nação africana, oferece o mais novo exemplo de como os EUA e o Qatar, aparentemente, trilham caminhos separados. Por um lado, o secretário de Defesa dos EUA, Leon Panetta estava em Londres, dia 18/1, entregando aos franceses “a liderança do esforço internacional” no Mali; e para garantir aos franceses que os EUA dariam apoio logístico, de transporte e de inteligência. Mas o Qatar dava sinais de não se incomodar de pôr em risco seus laços especiais com a França, que atingiram o auge na guerra da OTAN contra a Líbia, e deu sinais de não pensar em termos exatamente conformes com o que diziam EUA e França.

Hamad bin Jassem
al-Thani
Dia 5/1, o Primeiro-Ministro e Ministro de Relações Exteriores do Qatar, Xeique Hamad bin Jassem al-Thani, disse a jornalistas que não acreditava que “a força resolverá o problema”. Aconselhou que, em vez do ataque militar, o problema fosse “discutido” pelos “países vizinhos, a União Africana e o Conselho de Segurança da ONU”. E uniu-se ao ideólogo da Fraternidade Muçulmana que vive em Doha e a seus patrocinadores qataris, Yusuf Abdullah al-Qaradawi – presidente da União Internacional de Intelectuais Muçulmanos – ao qual a Grã-Bretanha negou visto para entrar no país em 2008, e a França, no ano passado – ambos clamando por “diálogo”, “reconciliação” e “solução pacífica”, em vez de “intervenção militar”.

Em exemplo relativamente mais antigo, segundo WikiLeaks, o ex-presidente da Somália em 2009, Sharif Ahmed, disse a um diplomata dos EUA que o Qatar estava canalizando toda sua assistência financeira para o grupo Shabab al-Mujahideen, associado à al-Qaeda, que os EUA incluíram na lista de “organizações terroristas”.

Mais um caso: na Síria, a Fraternidade Muçulmana é a principal força “de combate” contra o regime de Bashar al-Assad e em aliança com um dos culpados por atrocidades em vários ataques terroristas, a Frente Al-Nustra, ligada também à al-Qaeda; em dezembro do ano passado, os EUA incluíram a Frente Al-Nusra em sua lista de “organizações terroristas”. Simultaneamente a oposição síria, liderada por EUA e patrocinada pelo Qatar protestava publicamente contra o ato dos EUA. O silêncio do Qatar só pode ser interpretado como apoio ao protesto contra a decisão dos EUA.

Recentemente, o Qatar substituiu, para dar mais um exemplo, a Síria (listada como estado patrocinador de terrorismo desde 1979), como patrocinador do Hamás, cujos principais comandantes políticos mudaram-se de Damasco para Doha. Os EUA também listam o Hamás entre as “organizações terroristas”. E o Hamás, por sua vez, não perde ocasião de declarar que é o braço palestino da Fraternidade Muçulmana.

Em todos esses exemplos, vê-se que o Qatar parece estar-se reposicionando para qualificar-se como mediador, com as bênçãos dos EUA, tentando obter, com dinheiro, a posição que os EUA não conseguem alcançar militarmente, ou só conseguiriam alcançar a um preço ainda muito mais alto em dinheiro e em vidas.

No caso do Mali, o Primeiro-Ministro do Qatar, Xeique Hamad, veio a público para declarar seu próprio projeto: “Seremos parte da solução, (mas) não o único mediador” – disse ele. A bênção dos EUA não poderia ser mais clara que a aprovação, pelo presidente Obama, a que se instale em Doha um escritório de representação dos Talibã afegãos, “para facilitar” uma “paz negociada no Afeganistão”, nas palavras do Ministro de Relações Exteriores do Qatar, dia 16/1.

Mas uma mediação unilateral do Qatar já fracassou no Iêmen, e uma mediação árabe liderada pelo Qatar também fracassou na Síria, há dois anos. A “Declaração de Doha” para reconciliar grupos palestinos rivais ainda permanece só no papel. A mediação qatari no Sudão, em Darfur, ainda não produziu resultados. A “mediação” qatari na Líbia foi condenada como interferência em assuntos internos do país pelo mais destacado líder pós-Gaddafi. E no Egito pós-“Primavera Árabe”, o Qatar abandonou os esforços iniciais de mediação para alinhar-se publicamente à Fraternidade Muçulmana eleita. Mesmo assim, apesar de tantos e repetidos fracassos, tantos esforços de “mediação” cumpriram bem o papel atribuído ao Qatar, como “aliado”, na estratégia dos EUA.

Daí as bênçãos dos EUA. O Soufan Group, de analistas de inteligência, dia 10/12 passado, concluiu que “o Qatar continua a comprovar que é aliado chave dos EUA (...) O Qatar quase sempre consegue alcançar objetivos comuns dos EUA e do Qatar, dos quais os EUA não querem ou não podem encarregar-se diretamente”.

O primeiro governo Obama, sob a pressão da “austeridade fiscal”, abençoou os qataris que continuaram a financiar e armar islamistas anti-Gaddafi na Líbia; fingiu que não viu que o Qatar transferiu todo o arsenal militar de Gaddafi para seus aliados islamistas sírios e não sírios que lutam para derrubar Assad na Síria; “compreendeu” a visita que o Emir do Qatar fez a Gaza em outubro passado, como “missão humanitária”. E, mais recentemente, aprovou que o Qatar armasse sua aliada, a Fraternidade Muçulmana no Egito, com 20 jatos de combate F-16 e 200 tanques M1A1 Abrams.

Essa contradição levanta a questão sobre se o que aí se vê é colusão entre EUA e Qatar, ou se há, mesmo, algum conflito de interesses. O governo Obama, em seu segundo mandato, terá de traçar alguma linha clara que responda, sem tergiversar, essa questão.

Pelo que se vê hoje, Doha e Washington não têm a mesma visão sobre os islâmicos e os movimentos islamistas, mas, no campo de batalha da “guerra ao terror”, nem Doha nem Washington podem discutir sobre seus respectivos papéis, não podem deixar de mostrar coordenação e não podem deixar de complementarem-se mutuamente.

Apoiada na experiência histórica de abordagem semelhantemente “religiosa” no caso do Irã, mas em base “xiita” sectária, essa conexão islamista “sunita” qatari inevitavelmente levará a aumentar a polarização sectária na região e fará aumentar a instabilidade, a violência, e provocará outras guerras civis.

Localização das bases dos EUA no Qtar
Por causa da aliança EUA-Qatar, a conexão islamista dos qataris ameaça enredar cada vez mais os EUA em disputas regionais. Ou servirá para tornar os EUA responsáveis pela luta generalizada e sem fim, o que só fará aumentar o profundo antiamericanismo que já se vê em toda a região. E esse antiamericanismo, por sua vez, será outra vez a incubadora na qual prosperará mais extremismo e mais terrorismo, já incendiados hoje, depois da tal “década de guerras” que o presidente Obama disse, em seu discurso de posse, que estaria “terminando”

Tradicionalmente, o Qatar, que está no olho do furacão naquela região crítica e geopoliticamente volátil do Golfo, teatro de três grandes guerras nos 30 últimos anos, sempre se empenhou em manter um equilíbrio o mais frágil possível entre as duas potências que determinam a própria sobrevivência do Qatar: a velha presença militar dos EUA no Golfo; e o Irã, hoje potência regional em ascensão.

Em 1992, o Qatar assinou amplo acordo bilateral de defesa com os EUA; e em 2010, assinou acordo militar de defesa com o Irã, o que explica os laços cada dia mais cálidos que se vão construindo entre Qatar e Irã – unidos pelos movimentos de resistência anti-Israel: o Hezbollah no Líbano, e o Hamás nos territórios ocupados da Palestina; explica também a “lua de mel” em que o Qatar vive com os aliados do Irã na Síria.

Contudo, desde a eclosão da sangrenta crise síria, há dois anos, a abertura do Qatar para estados e não estados pró-Irã já está exposta como manobra tática para manter aquelas potências bem longe do Irã. Nos casos da Síria e do Hezbollah, o fracasso dessa tática já levou o Qatar a entrar em rota de colisão com ambos, Síria e Irã, ambos apoiados por Rússia e China, o que está forçando o Qatar a dar meia-volta no longamente cultivado processo de equilibramento na região, movimento do qual o Qatar parece não se dar conta, e que ameaça a própria sobrevivência do estado qatari, sob a pressão de interesses fortemente conflitantes, regionais e internacionais, como já se veem, escritos em sangue, na crise síria.

Durante o crescimento de movimentos massivos panarabistas, nacionalistas, socialistas e democráticos no mundo árabe, no início da segunda metade do século 20, as monarquias autoritárias conservadoras árabes adotaram a Fraternidade Muçulmana, outros islamistas e a ideologia política islâmica e as usaram contra aqueles movimentos, para sobreviverem como aliados dos EUA. E os EUA, por sua vez, usaram todos, com a al-Qaeda à frente, contra a ex-URSS e a ideologia comunista; depois do colapso da ordem mundial bipolar, essa instrumentalização foi feita em detrimento das nações instrumentalizadas.

É verdade que a história parece repetir-se, com as monarquias árabes apoiadas pelos EUA (e, outra vez, com a al-Qaeda no comando), recorrendo à sua velha tática de explorar a ideologia islamista para minar e “conter” uma revolução árabe antiautoritarismo, pelo Estado de Direito, por sociedade civil respeitada, por instituições democráticas e justiça social e econômica para os povos árabes em torno do bastião superprotegido dos EUA na península árabe.

Mas todos parecem não ver que estão abrindo uma caixa de Pandora. O que dela sairá fará a vingança da al-Qaeda contra os EUA em 2001 parecer um simples, pequeno, insignificante precedente histórico.

Um comentário:

  1. A problematica da ordem politica mundial é difícil de decifrar. Porém é razoável dider que a "ordem mundial bipolar" é o mínimo declarado obrigatório para o equilíbrio do mundo, sendo esta consequência natural e imediata das diversas circunstâncias. Portanto, no seu parecer os EUA terão sempre uma contraparte na balança mundial, quer seja um estado único como a Rússia por exemplo, quer seja um grupo de países, estados ou movimentos fundamentalistas "fracos" unidos pela necessidade comum da sobrevivência, sendo este último grupo o pior que possa prevalecer.

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