sexta-feira, 30 de maio de 2014

Pepe Escobar: “O futuro visível em São Petersburgo”

30/5/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online − The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

“O modelo de ordem mundial unipolar falhou”
22/5/2014, Vladimir Putin, São Petersburgo

Centro de Convenções do Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo
Em mais de um sentido, o último fim de semana viu nascer um século eurasiano. Claro, com o negócio de gás de US$400 bilhões entre Rússia e China, anunciado no último minuto em Xangai, na 4ª-feira (28/5/2014)(complemento do negócio de petróleo, para 25 anos, assinado em junho de 2013, de $270 bilhões, entre a Rosneft russa e a CNPC da China).

Depois, na 5ª-feira (29/5/2014), a maioria dos principais atores lá estavam, no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo – resposta russa a Davos. E na 6ª-feira (30/5/2014), o presidente Vladimir Putin, ainda sob a aura da glória alcançada em Xangai, falou aos participantes do FE; a casa veio abaixo, de tantos aplausos.

Será preciso mais tempo para avaliar o redemoinho que se viu semana passada, em todas as suas complexas implicações. Nessa página veem-se alguns dos destaques de São Petersburgo, em algum detalhe. Haveria menos altos executivos e presidentes de empresas ocidentais na cidade, porque o governo Obama pressionou-os a não ir – como parte da política de “isolar a Rússia”? Talvez um ou outro a menos, mas não muitos a menos; Goldman Sachs e Morgan Stanley não deram as caras, mas os europeus que realmente contam lá estavam, foram, viram, falaram e suplicaram por negócios.

Mais importante, havia asiáticos por todos os lados. Considere isso aqui como mais um capítulo do contragolpe-revide à chinesa contra o tour do presidente dos EUA Barack Obama pela Ásia em abril, amplamente descrito como tour de contenção contra a China.

Li Yuanchao e Vladimir Putin no 18o. Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo
No primeiro dia do fórum em São Petersburgo, assisti a sessão crucial (vide o programa), sobre a parceria estratégica Rússia-China. Prestem bem atenção: o mapa do caminho está, inteiro, ali. Como o vice-presidente da China, Li Yuanchao declarou:

Planejamos combinar o programa para o desenvolvimento do Extremo Leste da Rússia e a estratégia para o desenvolvimento do Nordeste da China, num conceito integrado.

É apenas um aspecto da coalizão Eurásia que está emergindo muito rapidamente, destinada a desafiar até o osso os excepcionalistas “indispensáveis”. Comparações com o pacto sino-soviético são infantis. O putsch na Ucrânia – parte do “pivô” de Washington para “conter” a Rússia – só serviram para acelerar o pivô da Rússia em direção à Ásia, o qual, mais cedo ou mais tarde se tornaria inevitável.

Tudo começa em Sixuan

Em São Petersburgo, de sessão em sessão e em conversas cuidadosamente selecionadas, o que vi foi a construção de blocos cruciais da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda chinesa, cujo objetivo final é unir, pelos negócios e pelo comércio, nada menos que China, Rússia e Alemanha.

Para Washington, é além e muito pior que anátema. A resposta foi empurrar alguns negócios que, em tese, garantiriam o monopólio dos EUA sobre dois terços do comércio global: a Parceria Trans-Pacífico [orig. Trans-Pacific Partnership (TPP)] – que, na essência, foi rejeitada por asiáticos-chave como Japão e Malásia durante a viagem de Obama; e a ainda mais problemática Parceria Trans-Atlântico [orig. Trans-Atlantic Partnership (TAP) com a União Europeia, que os europeus médios absolutamente detestam. Esses dois negócios estão sendo negociados em segredo e só são lucrativos, de fato, para as corporações multinacionais norte-americanas.

Para a Ásia, a China por sua vez propõe uma Área de Livre Comércio do Pacífico Asiático; afinal, a China já é o maior parceiro comercial da Associação de Nações do Sudeste Asiático [orig. Association of Southeast Asian Nations (ASEAN)], de dez membros.

E para a Europa, Pequim propõe uma extensão da estrada de ferro que em apenas doze dias de viagem liga Chengdu, a capital de Sichuan, a Lodz na Polônia, cruzando o Cazaquistão e a Bielorrússia. O negócio total é a rede Chongqing-Xinjiang-Europa, com uma estação final em Duisburg, Alemanha. Não surpreende que esteja sendo planejada como a mais importante rota comercial do mundo.

Nova Rota da Seda entre Chongqing-Xinjiang-Duisburg na Alemanha
E tem mais. Um dia antes de ser assinado o negócio Rússia-China de gás, o presidente Xi Jinping pregou a criação de nada menos que uma nova arquitetura de cooperação para segurança asiática, incluindo é claro Rússia e Irã e excluindo os EUA. Ecoando de certo modo o que Putin dissera, Xi descreveu a OTAN como relíquia da Guerra Fria.

E adivinhem quem estava presente ao anúncio em Xangai, além dos “-stões” da Ásia Central: o primeiro-ministro do Iraque, Nouri al-Maliki; o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai e, crucialmente importante: o presidente Hassan Rouhani do Irã.

Os fatos em campo falam por eles mesmos. A China está comprando pelo menos metade da produção de petróleo do Iraque – e está investindo pesadamente na infraestrutura de energia iraquiana. A China investiu pesadamente na indústria afegã de mineração – especialmente na mineração do lítio e do cobalto. E é óbvio que China e Rússia continuam a fazer negócios no Irã.

Quer dizer... Eis o que Washington conseguiu com uma década de guerras, abusos incessantes, sanções as mais sórdidas e trilhões de dólares desperdiçados, mal gastos.

Não surpreende que a sessão mais fascinante à qual assisti em São Petersburgo foi sobre as possibilidades comerciais e econômicas em torno da expansão da Organização de Cooperação de Xangai [orig. Shanghai Cooperation Organization (SCO)], cujo convidado de honra foi ninguém menos que Li Yuanchao. Pode-se dizer com razoável certeza que eu era o único ocidental na sala, cercado por um oceano de chineses e centro-asiáticos.

A SCO trabalha para converter-se em algo que superará em tamanho uma espécie de contraparte da OTAN, focada principalmente no combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas. Quer fazer grandes, grandes negócios. Irã, Índia, Paquistão, Afeganistão e Mongólia são observadores, e mais cedo do que se supõe serão aceitos como membros plenos.

Mais uma vez, eis aí a integração eurasiana em ação. O desdobramento em vários ramos da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda é inevitável; o que faz ver, na prática, integração mais íntima com o Afeganistão (minérios) e o Irã (energia).

O boom na nova Crimeia

São Petersburgo também expôs bem claramente como a China quer financiar uma série de projetos na Crimeia, cujas águas, por falar delas, cheias de riqueza energética ainda não explorada, são hoje propriedade russa. Os projetos incluem uma ponte crucialmente importante que atravessará o Estreito de Kerch para conectar a Crimeia à Rússia continental; expansão dos portos crimeanos; usinas de energia solar; e até zonas econômicas especiais [orig. special economic zones (SEZs)] de manufaturas; Moscou, obviamente, interpretou tudo isso como gesto de aprovação, por Pequim, da reintegração da Crimeia à Rússia.

Depósitos de petróleo e gás no Mar Negro e oleogasodutos da Crimeia 
Quanto à Ucrânia, é preciso, sim, como Putin voltou a dizer em São Petersburgo, que pague as próprias contas. E quanto à União Europeia, como o presidente em final de mandato da Comissão Europeia, Jose Manuel Barroso afinal entendeu, é o óbvio: antagonizar a Rússia não é precisamente estratégia vencedora.

Dmitry Trenin, diretor do Carnegie Moscou Center, foi um dos raros bem informados a aconselhar o ocidente, embora de pouco tenha adiantado o conselho:

Rússia e China certamente passarão a cooperar cada vez mais intimamente (...). Esse resultado com certeza beneficia a China, mas dará à Rússia uma oportunidade para fazer frente à pressão geopolítica dos EUA, compensar pela reorientação da energia na União Europeia, desenvolver a Sibéria e o Extremo Leste da Rússia e ligar-se à região do Pacífico-Asiático.

De novo na estrada (da seda)

A aliança estratégica agora simbiótica China-Rússia – com a possibilidade de estender-se na direção do Irã – é O FATO fundamental em campo nesse jovem século XXI. Terá extrapolações para os BRICS, para a Organização de Cooperação de Xangai, para a Organização do Tratado de Segurança Coletiva e para o Movimento dos Não Alinhados.

Claro que os laranjas & testas-de-ferro de sempre continuarão a “ensinar” e a “noticiar” que o único futuro possível tem de ser qualquer um, desde que liderado por império “benigno”. Como se bilhões de pessoas em todo o mundo real – inclusive atlanticistas bem-informados – fosse idiotas o suficiente para acreditar nisso. É. A unipolaridade pode estar morta, mas o mundo, ainda tem, tristemente, de arrastar às costas o cadáver da unipolaridade. Segundo a nova doutrina Obama, aliás, o cadáver anda “empoderando parceiros”.

Parafraseando Dylan (“I left Rome and landed in Brussels[1] [Deixei Roma e aterrissei em Bruxelas]), eu deixei São Petersburgo e aterrissei em Roma, para acompanhar mais um episódio da lenta decadência da Europa – as eleições parlamentares. Mas antes disso, tive a felicidade de viver uma iluminação estética.

Visitei um quase deserto Instituto de Manuscritos Orientais da Academia de Ciências da Rússia, onde dois pesquisadores importantes, extremamente dedicados e a quem muito agradeço, ofereceram-me um tour privado por algumas peças da coleção que bem se pode dizer que é a mais fantástica do planeta, de manuscritos asiáticos. Como viajante serial fanático da Rota da Seda, eu já ouvira falar de muitos daqueles documentos, mas jamais vira qualquer deles. Até que... lá estava eu, às margens do Neva, menino em loja de doces (históricos), imerso naquelas maravilhas de Dunhuang à Mongólia, em védico ou sânscrito, sonhando passadas e futuras Rotas da Seda. Por mim, lá ficava até o fim dos meus dias.



Nota dos tradutores
[1] Música e letra de “When I Paint My Masterpiece” a seguir:


Oh, the streets of Rome are filled with rubble,
Ancient footprints are everywhere.
You can almost think that you're seein' double
On a cold, dark night on the Spanish Stairs.
Got to hurry on back to my hotel room,
Where I've got me a date with Botticelli's niece.
She promised that she'd be right there with me
When I paint my masterpiece.

Oh, the hours I've spent inside the Coliseum,
Dodging lions and wastin' time.
Oh, those mighty kings of the jungle, I could hardly stand to see 'em,
Yes, it sure has been a long, hard climb.
Train wheels runnin' through the back of my memory,
When I ran on the hilltop following a pack of wild geese.
Someday, everything is gonna be smooth like a rhapsody
When I paint my masterpiece.

Sailin' 'round the world in a dirty gondola.
Oh, to be back in the land of Coca-Cola!

I left Rome and landed in Brussels,
On a plane ride so bumpy that I almost cried.
Clergymen in uniform and young girls pullin' muscles,
Everyone was there to greet me when I stepped inside.
Newspapermen eating candy
Had to be held down by big police.
Someday, everything is gonna be diff'rent
When I paint my masterpiece.
_______________________

[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009. 

3 comentários:

  1. O problema é que comprar petróleo do Iraque é dar dinheiro pras petrolíferas americanas.
    Ficaram fora de lá por 30 anos, mas voltaram para roubar até a última gota...

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    1. Nouri al-Maliki quer aumentar a participação do Iraque na cota de exploração de seu petróleo. Isso pode inviabilizar parte da exploração. Não à-toa os EUA tentaram a Ucrânia, mas perderam a joia da coroa, a Crimeia, com suas inexploradas reservas do Mar Negro. Nesta postagem tem um mapinha sobre isso. Veja lá..

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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