terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Qual é, de fato, o projeto da al-Qaeda?

8/12/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Talvez reconforte saber – mais uma vez graças a WikiLeaks – que o Departamento de Estado dos EUA sabe tanto quanto qualquer observador bem informado que tenha dedicado alguns anos a observar o “AfPak”: grupos privados, organizações não governamentais, escolas religiosas [madrassas] e empresas da Arábia Saudita são como caixas de autoatendimento bancário que servem a al-Qaeda, os Talibãs e o grupo Lashkar-e-Taiba de militantes paquistaneses.

Mas, sendo essa uma “relação especial” muito sensível, de troca de petróleo por segurança, os sauditas naturalmente também merecem elogios por “progressos significativos” – sob pressão de Washington – nos esforços para conter o festim de dinheiro para a al-Qaeda. Fato é que, segundo os telegramas vazados, não se veem quaisquer progressos no front Talibã/Lashkar (nem ninguém jamais verá progresso algum, porque o dinheiro que chega aos grupos militantes transita pelas vias do sistema financeiro hawala, informal.)

Outros “amigos dos EUA” do eixo sunita tampouco fazem boa figura. O Kuwait é acusado de não definir como crime o financiamento de grupos terroristas; o Qatar é “passivo”; e os Emirados Árabes Unidos são “vulneráveis” – eufemismo para designar o alegre trânsito sem qualquer controle de fundos para os Talibãs e as redes Haqqani.

Uma al-Qaeda de baixo custo
Mas é preciso por essa informação no contexto da nova estratégia da al-Qaeda na Península Arábica [ing. Al-Qaeda in the Arabian Peninsula (AQAP)] de infligir aos EUA o suplício da “morte pelos mil talhos” [1].

Eis a lista de despesas da “Operação Hemorragia” (palavras da própria al-Qaeda), da última ação do grupo, uma bomba de cartuchos de toner para impressoras [2] em outubro passado, operação que foi abortada pelos serviços de inteligência dos sauditas): dois telefones Nokia (US$150 cada); duas impressoras HP ($300 cada); despesas de transporte (no total, $4.200), mais as horas de trabalho de seis pessoas, por três meses – segundo a página Internet Inspire, “inspirada” pelo imã norte-americano Anwar al-Awlaki.

É crucial observar que o advento do que se pode chamar de “al-Qaeda de baixo custo” só aconteceu depois que Washington superturbinou sua ofensiva no Iêmen. Washington trabalha para desalojar Awlaki desde a primavera passada, tanto quanto para desalojar o cabeça de Inspire, Samir Khan, cidadão norte-americano nascido na Arábia Saudita e criado entre o Queens e o Canadá.
Olhadela na nova lista da Interpol dos Top 5 da al-Qaeda mostra que, sim, hoje, o nome do jogo é Iêmen. Esqueçam a iconografia da velha escola de Osama bin Laden e seu lugar-tenente Ayman al-Zawahiri.

Eis a nova lista dos Top 5 da Interpol: Anwar al-Awlaki, 39, norte-americano; Nasir al-Wahishi, 34, iemenita; Qassim al-Raimi, 31, iemenita; Said al-Shiri, 37, saudita; e Abdelmalek Droukdel, 40, argelino. (Não, não! Julian Assange não está nessa lista – para desespero dos linha-dura da direita norte-americana).

Com a nova lista, vem uma nova narrativa para as agências de inteligência do Atlântico. Segundo essa nova narrativa, essas pessoas são culpadas, dentre outros malfeitos, pela bomba de toner em Chicago; pelo atentado fracassado ao voo 253 da Northwestern Amsterdam-Detroit; pelas repetidas ameaças à Torre Eiffel; e pelo atentado planejado contra o Reichstag em Berlim, revelado pelo semanário alemão Der Spiegel.

Nova lista, nova narrativa – e nova língua. Vão-se as conversas sobre ‘um califado’; em vez disso, a palavra-senha é “reislamização” dos muçulmanos que vivem no ocidente. Para unir tudo isso, uma (afinal, nem assim tão nova) estratégia; deslocalização crescente, processo que já levou à proliferação de siglas – da AQIM (al-Qaeda In Maghreb) à AQY (al-Qaeda Yemen), à AQAP (al-Qaeda Arabian Peninsula). E a novas táticas: “resistência sem liderança” – como no ataque ao coração do Atlântico, com “exército de um só homem”.

A culpa é da Internet!
Essa nova história de al-Qaeda Facebook/Youtube pode começar em Las Cruces, Novo Mexico, onde Anwar al-Awlaki nasceu, em abril de 1971, de pais iemenitas. O pai, Nasser, depois reitor e presidente da Universidade de Sana'a, é graduado e bolsista Fulbright na Universidade do Novo Mexico; o filho foi criado nos campi das universidades de Nebraska e Minnesota, onde Nasser trabalhou para obter seu diploma de Agronomia. Mais tarde, Anwar voltou aos EUA, aos 20 anos para graduar-se em Engenharia no estado do Colorado; para pós-graduar-se em Pedagogia em San Diego; e para doutorar-se em Georgetown, o que não fez.

Anwar é wahhabista ortodoxo; casou-se com uma prima e tem cinco filhos. Nos meses antes do 11/9, estava em San Diego, amigo e mentor espiritual de Nawaf al-Hazmi e Khalid al-Mihdhar – dois dos “mártires” do 11/9. Dia 11/9, é o imã de Falls Church, nos subúrbios de Washington. Em 2002, muda-se para Londres, passando a viver bem próximo do Sheikh Omar Bakri. Faz sucesso no Youtube – para não falar de Facebook. As caixas de seus DVDs e CDs fazem furor nos mercados do “Londonistão”. Um dos seus seguidores no Youtube é Faisal Shahzad, o detonador fracassado de Times Square.

Em 2004, Anwar volta – clandestino – ao sudeste do Iêmen, onde se torna mentor de Umar Farouk Abdulmutallab, o somaliano que tentou explodir o voo 253 da Northwestern nos céus de Detroit. E em março, em vídeo enviado à CNN, Anwar reivindica a coroa da jihad anti-EUA. No Iêmen, Anwar alia-se aos emires locais. A narrativa-master da CIA afirma que se deve considerar todo o sul da Península Arábica como a casa da al-Qaeda.

A trajetória de Anwar cruza-se com as de Nasir al-Wahishi, Said al-Shiri e Qassim al-Raimi. Durante anos, Nasir foi secretário pessoal de bin Laden, muito jovem mas de absoluta confiança do chefe, no Afeganistão. Seus caminhos só se separaram em 2001; Nasir tinha então 23 anos. Foi capturado pela inteligência iraniana e extraditado para o Iêmen, onde permaneceu por cinco anos numa prisão de segurança máxima em Sana'a, da qual fugiu em fevereiro de 2006 – com outros 23 comandantes militares da al-Qaeda.

Foi Nasir quem inventou a sigla AQY (al-Qaeda Yemen). Três anos depois, em 2009, é solenemente coroado por al-Zawahiri, num vídeo enviado à al-Jazeera, no qual é apresentado como agente da transformação da AQY em AQAP. Nasir é o novo comandante. Faz sucesso na internet com Inspire – primeira publicação online da al-Qaeda em inglês – ao lado de outra publicação digital, essa em árabe, Sada al-Malahem, “Eco dos Épicos”. Tudo isso é reflexo da estratégia de alcançar grandes públicos na Internet, para manter acesa a jihad mediante ataques de pequeno alcance, anônimos e “fáceis” contra “alvos soft”. Nasir é encarregado da internet; dois dos seus comandantes cuidam do front militar.

Nasir mantém conexão direta com o saudita Said al-Shiri e o iemenita Qassim al-Raimi; Qassim fugiu com ele da prisão de Sana'a. Said al-Shiri combateu no Afeganistão e foi capturado em dezembro de 2001. Foi dos primeirosjihadistas a usar o macacão cor-de-laranja e a ser mandado para o Campo Delta – Guantánamo. Só saiu de Guantánamo em novembro de 2007, repatriado para a Arábia Saudita para um programa de “reabilitação” – que completou até a última lição; imediatamente depois voltou como clandestino ao Iêmen. Em abril de 2009, Nasir convocou publicamente os piratas somalianos e “os rapazes” de al-Shabaab a engajar-se na jihad “contra os cruzados”.

A CIA dos EUA quer desesperadamente por as mãos em Said e em Qassim al-Raimi, o dito “cérebro” que estaria por trás da bomba de toner. Qassim havia mais ou menos anunciado em janeiro, online, a nova estratégia da al-Qaeda, na revista Sada al-Malahem, exortando químicos, físicos e técnicos em eletrônica a unir-se à al-Qaeda, conceitualizando a batalha entre os EUA e todas as tribos na Península Arábica.

Do ponto de vista da CIA, não poderia haver combinação mais perfeita que unir a al-Qaeda na Península Arábica e o chifre da África, especialmente a Somália, e apertar o nó com o Maghreb.

A ‘desculpa’ atende pelo nome de Abdelmalek Droukdel, argelino nascido em Meftah. É emir, autodescrito “discípulo do mártir al-Zarqawi” que “astutamente entreteceu” a herança, a ferocidade e a força do notório Grupo Salafista para Pregação e Combate [orig. Salafist Group for Predication and Combat; fr. Groupe Salafiste pour la Predication et le Combat (GSPC)] argelino – que foi transformado em AQIM em 2007. Abdelmalek odeia visceralmente a França e opera uma florescente indústria de sequestros (já fez vítimas francesas, espanholas e italianas) nos desertos da Mauritânia. Paris está em pânico; Droukdel já disse claramente que a al-Qaeda pode estar-se aproximando, cada dia mais, do Mediterrâneo.

Há ainda uma gangue adicional que ainda nem está incluída nos Top 5. São os 16 membros da al-Qaeda que passaram oito anos presos no Irã e foram recentemente libertados. Nesse grupo estão Saad bin Laden (um dos filhos de Osama bin Laden), Saiful Adil, Suleman al-Gaith e Abu Hafs al-Mauritani.

Diferentes dos Top 5 da Interpol, esse ramo decidiu instalar-se nas áreas tribais do AfPak e hoje já há sinais de que estão plenamente de volta ao trabalho ativo operacional. Saiful Adil tem sido citado como o principal estrategista da al-Qaeda no AfPak para 2011 – operando do Waziristão Norte e ligando os pontos com Somália, Iêmen, Turquia e por toda a Europa. Não há qualquer evidência de que a inteligência dos EUA tenha qualquer ideia sobre seu esconderijo.

Entre um cartucho de toner e um oleoduto
Combinem-se agora esses desenvolvimentos cruciais sobre “al-Qaeda de baixo custo” e outro telegrama, dos mais explosivos vazados até agora por WikiLeaks – a lista de Washington de nós-chaves de infraestrutura, os pontos que, se tomados como alvos de ataques terroristas, provocariam caos total na segurança dos EUA.
É altamente improvável que esse festival de siglas de al-Qaeda não tenham considerado a possibilidade de atacar, dentre outros alvos, a plataforma de carga do porto crítico de Bab al-Mendeb; os terminais de importação e descarga de exportação do Canal de Suez; o terminal de petróleo de Basra no Iraque; o terminal de exportação de Mina' al-Ahmadi no Kuwait; o gasoduto do Estreito de Gibraltar-Maghreb-Europa (GME) no Marrocos; o gasoduto Trans-Med na Tunísia; o Centro Industrial Ras Laffan no Qatar (que em breve será a maior fonte de exportação para os EUA de gás natural liquefeito (ing. liquefied natural gas, LNG); ou o terminal de exportação de Jabal Zannah, nos Emirados Árabes Unidos.

E que tal os tentadores alvos na Arábia Saudita, como Abqaiq (a maior usina de processamento e estabilização de óleo cru do planeta); o terminal de exportação de al-Ju'aymah; o centro de processamento de As Saffaniyah; a junção do oleoduto Qatif; o centro de processamento de Ras at Tanaqib; o terminal de exportação de Ras Tanura; e a usina central de separação de petróleo e gás de Shaybah?

O que realmente interessa ver é que, nessa lista de locais tão altamente sensíveis para os EUA, no arco que vai do Oriente Médio à Ásia Central, não há nenhum alvo localizado no Afeganistão, onde o Pentágono e a OTAN, segundo a matéria oficial de capa, estariam “combatendo a al-Qaeda”.

Telegrama de fevereiro de 2009 do Departamento de Estado dos EUA admite que um ataque contra qualquer desses pontos “impactaria criticamente” a saúde pública, a vida econômica e a segurança nacional dos EUA. Como se al-Qaeda não soubesse disso!  

Mas se “al-Qaeda” é de fato o monstro gigante do mal que as agências de inteligência dos EUA querem que o mundo tema – um monstro que, para ser combatido, exige que se gastem centenas de bilhões de dólares do dinheiro dos contribuintes norte-americanos – por que, então, diabos, al-Qaeda investe hoje em manipular cartuchos vazios de toner para impressoras do mal... em vez de paralisar Bab al-Mendeb?

O grande escritor italiano Umberto Eco, no ensaio publicado em Libération em 2/12/2010, Umberto Eco, Libération, Paris (traduzido em PresseEurop, Portugal), chama a atenção para o quanto WikiLeaks tornou transparentemente claro que os segredos da secretária de Estado Hillary Clinton são de fato segredos ocos – segredos que já não têm poder algum. Assim como WikiLeaks revelou que o imperador está nu (porque o império já não consegue sequer manter os seus próprios segredos), pode-se dizer que o império continua nu – porque já não consegue manter as suas próprias mentiras. Avante. Sugiro que se dê andamento à “morte pelos mil talhos”.




Nota
[1] Death by a Thousand Cuts [“morte por mil talhos”; em chinês lingchi, “fatiamento”] é uma modalidade de tortura e execução da qual há registros desde o século X, na China; foi extinta em 1905. O lingchi consiste do “fatiamento” do corpo do condenado, que prossegue depois da morte.

É título também de um estudo histórico sobre a mesma modalidade de tortura (Timothy Brook e Gregory Blue, historiadores; e Jérôme Bourgon, médico). Para esses autores, a pena implica degradação maior que o castigo físico, porque a vítima era sedada com ópio e morta logo no início da execução; a pena implicava, de fato, negar ao condenado “a integridade do cadáver” e, portanto, a possibilidade da vida depois da morte; a pena, afinal, implicava vergonha eterna para o condenado e sua descendência.

Vários autores têm-se servido da metáfora da “morte dos mil talhos”, na literatura (p. ex., Salvador Elizondo, no romance Farabeuf [ed. Siglo XXI, México, 1960]) e na filosofia (George Bataille e Susan Sontag, dentre outros). Em todos esses livros comentam-se algumas fotos de prisioneiros supliciados que chegaram ao ocidente no início do século 20, uma das quais é reproduzida no romance de Elizondo (NTs, com informações de Wiki: Slow slicing ).
[2] A bomba de cartuchos de toner de impressora foi tema de FoxNews em outubro .

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