domingo, 19 de dezembro de 2010

EDUCAR E INSTRUIR

*José Flávio Abelha

Em memorável palestra na antiga Escola Superior de Cinema da PUC/MG o pioneiro do cinema brasileiro e, com destaque, chefe do INCE - Instituto Nacional do Cinema Educativo, o deslembrado cineasta Humberto Mauro nos contou sobre o primeiro contato com o professor Edgard Roquette-Pinto.

Depois de aceitar o convite, em nome do Ministro Gustavo Capanema, para chefiar o Instituto o professor lhe disse:

-Olha Humberto, vou lhe dizer o que penso sobre educar e instruir.

E Roquette-Pinto lhe deu, em poucas palavras, a dimensão da diferença, segundo nos disse o mestre Humberto.

“Instruir é você dizer para um garoto que a escovação dos dentes evita cáries, torna-os sempre brilhantes, combate bactérias e o mau-hálito.
Educar é você obrigar o garoto a escovar os dentes, criando nele um hábito salutar”.

Esta lição de Roquette-Pinto deveria ser a base de todas as atitudes das autoridades governamentais. Da saúde bucal? NÃO! Da cidadania, do respeito às leis, do respeito entre as pessoas.

Instruído o povo está; nossas leis estão aí, até em excesso, no entanto nenhuma é obedecida na sua plenitude, às vezes, nem simplesmente observada.

O prefeito Rudolph Giuliani, da cidade de Nova Iorque, sem saber da lição de Roquette-Pinto, iniciou um trabalho sério de educação do povo, a chamada TOLERÂNCIA ZERO aplicada durante sua gestão. Gritaram uns que era uma verdadeira ditadura. Outros, que os direitos civis estavam sendo ameaçados. O certo é que a cidade sem lei passou a obedecer aos homens da lei.

A administração Giuliani educou o nova-iorquino. Com tapinha nas costas? Não! Com a lei nas costas. Nada de instruir os gringos para que não estacionassem os carrões em lugares proibidos. O reboque era fatal, sem qualquer argumentação e o depósito de carros era na capital do Estado, na cidade de Albany (240 quilômetros de distância). Ou se perdia um dia de trabalho ou o carro. E mais todas aquelas pequenas infrações que, juntas, provocam o caos em uma cidade.

E nesse nosso brasilzão, como funcionam as coisas?

A população está instruída sobre a construção de casas em áreas de risco, mas mesmo assim constrói. Não aparece qualquer autoridade para impedir a ilegalidade. A conseqüência é funesta quando os céus abrem o chuveiro.

Instrução há, mas não há quem eduque. E a educação é penosa. Tanto na lição de Roquette-Pinto quanto na atitude de Giuliani. Não há diferença entre obrigar o menino a escovar os dentes ou rebocar um carro estacionado em local proibido. O chororô é o mesmo, tanto do menino rebelde quanto do cidadão infrator.

O calçadão da praia onde moro foi construído com os impostos que pagamos. Atualmente ele é pista para bicicletas, motocicletas, tri e quadricíclos e belíssimos cachorros. A população está instruída de que o calçadão é uma área de lazer para pedestres, mas, não havendo a intolerância governamental, a punição pedagógica que exclui multas e inclui o seqüestro dos veículos e cães, de tal forma que o dinheiro não possa comprar o desprazer de ir retirar do depósito os brinquedinhos dos marmanjos e os cães das madames, que rolam nas areias e fazem cocô no calçadão.

Todos os motoristas sabem que não podem dirigir quando tomam, ainda que uma pequena dose, bebida alcoólica. Estão instruídos à exaustão. Nos feriados prolongados a carnificina nas rodovias é assustadora. E não é só o álcool, a falta de manutenção dos veículos e a imprudência também.

Nunca se viu um carro saindo da cidade rumo à praia ou à montanha, cheio de crianças, interceptado por uma autoridade que, ao contrário de uma multa irrisória, proibisse o veículo de trafegar naquela situação, lamentavelmente acabando com o fim de semana da garotada e do irresponsável garotão.

No próximo feriadão aqueles meninos seriam os primeiros fiscais a chamar a atenção do pai. A tolerância zero agiria como uma lição pedagógica ou, como diria Roquette-Pinto – “... teriam adquirido salutar hábito de se tornarem colaboradores para que o escandaloso índice de mortalidade nessa época tivesse uma diminuição considerável”.

É certo que, se o incidente da detenção do veículo atingisse um irresponsável “cidadão acima de qualquer suspeita”, logo surgiria um habeas corpus, uma liminar, uma ONG dos direitos civis e a mídia que vive das manchetes viciosas. Afinal, o repressor, mesmo tentando evitar um mal maior, a matança nas estradas, estava ferindo o direito de ir e vir da família.

E sempre surgiria uma autoridade para liberar o veículo com a família dentro, rumo à máquina de moer gente que é uma estrada entulhada de carros nos fins de semana, todos apressados, ultrapassando de qualquer forma e aumentando assustadoramente as estatísticas de mortos e feridos.

O repressor ainda correria o risco de ser preso e processado.

Aqui não há espaço para o assunto dos celulares no trânsito, a mão segurando o cigarro enquanto dirigindo e outras mazelas cuja população está bastante instruída.

Será que os nossos pouquíssimos fiscais de trânsito, das praias e das ruas, sabem o que são decibéis? Carros, centenas, nos fins de semana, são estacionados nos calçadões com um som que estupra qualquer tímpano. Festas e churrascadas varam as madrugadas com o som nas alturas.

Se esse pessoal todo está instruído de que está cometendo uma infração? Claro que está! Falta quem os eduque e sejam intolerantes, interrompendo a festa, frustrando convidados com visíveis sintomas de embriaguês, na linguagem policial.

E a falta da educação impera, em muitas outras atividades que este pequeno texto não comporta citá-las.

Faço aqui apenas um lembrete: nesta segunda feira última, de calçadão deserto, que uma moto quase me atropelou. E ficou por isso mesmo. Denunciar? E a vindita, a desforra?A falta de policiamento e o perigo do nome do denunciante ser entregue, na bandeja, ao infrator ou ao meliante?

Se lá de cima não partem vigorosas medidas educadoras, na base das lições de Roquette-Pinto e Giuliani, não serei eu quem vai corrigir os instruídos cidadãos.

Afinal, não tenho qualquer mandato para tanto nem vocação para ser um novo Dom Quixote.

*Mineiro, autor de A MINEIRICE e outros livretes, reside na Restinga de Piratininga/Niterói, onde é Inspector of Ecology da empresa Soares Marinho Ltd. Quando o serviço permite o autor fica na janela vendo a banda passar.

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