sábado, 11 de dezembro de 2010
Noel, o X do problema
Maio deveria ser o mais triste dos meses para os brasileiros. Assim pensei em começar este artigo. Depois de mudar e riscar, pensei em começá-lo com uma pergunta: “Quem dá mais por um artista feito no rigor da arte, sem introdução e sem segunda parte, que expressa três terços de todo brasileiro?”. Depois me ocorreu que bem melhor seria uma crônica em feitio de oração, com humor, para suportar a paixão, com harmonia, ritmo... .
Por Urariano Mota
Mas depois vi que esses começos, essa crônica, tudo que eu tentasse era ridículo e medíocre. Porque eu queria simplesmente dizer: maio deveria ser o mais triste dos meses, porque nesse
Pela décima vez
Jurei não mais amar
Pela décima vez
Jurei não perdoar
O que ela me fez
O costume é a força
Que fala mais alto
Do que a natureza
E nos faz dar prova de fraqueza.....
Ou porque
Gago apaixonado
Mu-mu-mu mulher
Em mim fi...fizeste um estrago
Eu de nervoso
Estou fi-fi... ficando gago.....
Agora veem por que a indecisão, agora sentem por que esse último recurso de citar o começo de dois sambas para começar um esboço sobre os contornos de Noel. Se ainda não consegui me fazer entender, procurarei ser mais claro: Noel é um compositor tão rico quanto a vida, e quanto mais a gente procura apanhá-lo, pegá-lo, nem que seja para um riscado de caricatura, mais ele nos foge, escapole, por entre os dedos. Ele fica a sorrir de nossa vã pretensão. Por onde tentemos pegar Noel, ele se furta à nossa frente. Vejam por quê. Se tentamos agarrá-lo pelos dados biográficos, a nossa tendência é situá-lo como o personagem ideal de um dramalhão de circo.
Dama do cabaré
Foi num cabaré da Lapa, que eu conheci você
Fumando cigarro, entornando champanha no seu soirée
Dançamos um samba, trocamos um tango por uma palestra
Só saímos de lá meia hora depois de descer a orquestra.
Em frente à porta um bom carro nos esperava
Mas você se despediu e foi pra casa a pé
No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da dama do cabaré
Eu não sei bem se chorei no momento em que lia
A carta que recebi, não me lembro de quem
Você nela me dizia que quem é da boemia
Usa e abusa de diplomacia, mas não gosta de ninguém.
Pois sim. Em outra elevação se diz que Noel transformava a sua vida em samba. Isso consola. Nós, como todo filisteu, como todo bom pequeno-burguês, adoramos um artista sofrido, machucado, que cante para nós a sua dor. (Há uma foto de mulher, há uma foto de uma feiticeira, há uma foto da Dama do Cabaré que deve ter tantalizado Noel. Imaginamos o que ela escreveu no verso da própria imagem, se alguma vez deixou para Noel alguma foto: “Como prova de amizade, Ceci”. De amizade...) Então se diz que ele transformava a vida em samba, mas se olvida que nos intervalos da arte Noel evitava comer na frente dos admiradores. O queixo danificado mortificava-o, o seu mastigar era um espetáculo de animal de zoo. E por isso nas noites em claro, de brutas farras, alimentava-se apenas de caldos, de comidas leves, e comia mais cigarros, muitos e muitos cigarros, que deviam torná-lo um homem, acreditava-se então, de aparência bonita. Ele, que já havia sido chamado, num duelo de sambas, de O Frankestein da Vila. Mas com um cigarro permanentemente nos lábios até um monstro se recompunha, naqueles idos mal vividos. Acreditava-se. Não riam, porque dessa dieta alimentar, estilo de vida e hábito sobrevieram ao nobre artista: febre, hemoptise, pulmões podres. Um gênio arrebentado em plena criação e juventude. Que se foi, aos 26 anos, no dia 4 de maio de 1937.
Meio trágico, não? Pois sim, esse mesmo Noel que foi chamado de Frankestein pelo sambista Wilson Batista num momento de raiva (e como são sinceros esses momentos de raiva), esse mesmo Noel tuberculoso, raquítico, é o homem que diz em uma entrevista à revista O Cruzeiro, ao lhe ser perguntado que relação existiria entre o amor e a música:
“Romeu e Julieta morreram ignorando essa relação. Acho, porém, que a relação seja a mesma que existe entre a casca de banana e o tombo, num escorregão”.
É esse homem que tosse e escarra sangue o mesmo humorista que numa madrugada, ao nascer o dia, é reconhecido por amigos músicos que voltavam de automóvel, de uma festa. Conta-se que seu perfil, em um poste à espera do bonde, se destacava pela negação: terno branco à procura de um corpo, rosto que descia à procura de um queixo. Então os amigos param o carro e mandam-no embarcar. Ele entra e vai pedindo:
- Me sirvam um conhaque.
- Por que isso, Noel?
- Por quê?! Eu estava esperando um bar, quando vocês passaram.
É o mesmo homem que à sua magreza de doente assim se referiu:
Quem foi que disse que eu era forte?
Nunca pratiquei esporte
Nem conheço futebol
O meu parceiro sempre foi o travesseiro
eu passo o ano inteiro
Sem ver um raio de sol
A minha força bruta reside
Em um clássico cabide
Já cansado de sofrer
Minha armadura é de casimira dura
Que me dá musculatura
Mas que pesa e faz doer
Eu poso pros fotógrafos
E distribuo autógrafos
A todas as pequenas lá da praia de manhã
Um argentino disse
Me vendo em Copacabana
No hay fuerza sobre-humana
Que detenga este Tarzan!
De lutas não entendo abacate
Pois o meu grande alfaiate
Não faz roupa pra brigar
Sou incapaz de machucar uma formiga
Não há homem que consiga
Nos meus músculos pegar
Cheguei até a ser contratado
Pra subir em um tablado
Pra vencer um campeão
Mas a empresa pra evitar assassinato
Rasgou logo o meu contrato
Quando me viu sem roupão.
No entanto, se tentamos apanhar Noel a partir da maioria de suas letras, que diríamos, sem erro, quase sublimes, no limite da oração, da queixa de um homem a Deus,
Último desejo
Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar, sem violão
Perto de você me calo
Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero o seu beijo
Mas meu último desejo
Você não pode negar
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não,
Diga que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separação.
Às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim
Que eu arruinei sua vida
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim
Diante de uma letra assim, diante de uma melodia que não podemos expressar em palavras, diante da expressão de tal sentimento, sempre novo, tão vivo e primordial que nos faz penetrar um cheiro de sal e mar pelo nariz, diríamos, que dor, que felicidade trágica na expressão! A impressão que Noel nos deixa, em seus versos mais cruéis, é que ele compõe epitáfios. Mas ele não compõe como um indivíduo póstumo, deveríamos dizer com mais precisão que ele pinta e canta enternecedores testamentos. O dicionário dirá que testamento é um “ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual alguém, com observância da lei, dispõe de seu patrimônio, total ou parcialmente, para depois de sua morte”. Ora, unilaterais, solenes e limitados por vezes são os dicionários! Último Desejo é uma expressão de última vontade bem ambígua. Para as pessoas amigas, a mulher deverá dizer que o adora, e lamenta e chora a separação. Mas para os inimigos ela deverá dizer que o seu lar foi um botequim, que ele arruinou a sua vida, e que é indigno do pão que ela pagou para ele. E aqui cabem duas observações. A primeira delas é que o patrimônio do poeta se faz em torno de coisas, como diríamos, intangíveis: bares que jamais possuiu, álcool bebido e sumido, amor que se foi, se alguma vez houve. Visto de um modo mais geral, as letras de Noel sempre exibem uma miséria material que não atinge o seu espírito. A miséria de bens tangíveis, materiais, não atinge a miséria humana. A outra observação fala da ambigüidade dos seus rompimentos amorosos. Ações típicas de quem rompe pelo afastamento físico, mas não rompe no sentimento:
Jurei não mais amar
Pela décima vez
Jurei não perdoar
O que ela me fez...
E nesta altura acrescentamos, ou melhor, o gênio de Noel acrescenta um precioso dado: em uma linha de um verso ele exprime uma vivência, uma observação fina. Por exemplo, quando ele compõe em Dama do Cabaré o verso “Você nela me dizia que quem é da boemia”, ele nos diz, para todos que já passamos noites e mais noites a beber: a gente dessas noitadas, pelo estilo de vida ou por vício, é leviana, dispersa, mentirosa, tão egoísta por fim quanto animais mimados, e por isto, “ não gosta de ninguém”. Ele é capaz de em linhas de versos impor uma reflexão que causa espanto aos preconceitos que acham alturas somente na tradição acadêmica, nas glórias institucionalizadas. Em dúvida?
“O costume é a força
Que fala mais alto
Do que a natureza”
Ou
“Quem acha vive se perdendo” ou
“Não posso mudar minha massa de sangue”, para dizer que é suburbano, do lado marginalizado, por vocação, gosto, alma e destino.
Não tenho exata certeza se a partir de Noel, mas com certeza ele é um dos responsáveis pelo destaque, pela individualização da letra na canção do Brasil. Com ele ganha corpo autônomo uma letra que só existia tão só e somente na música. Aquele fenômeno destacado por Hesse num conto, quando observa: “Era surpreendente constatar como um verso cantado soava completamente distinto do lido ou recitado. Na leitura um verso era um todo, tinha um sentido, constava de frases. No canto constava só de palavras, não havia frases, não havia sentido; mas em troca as palavras soltas cantadas, arrastadas, adquiriam uma estranha vida independente, às vezes eram até sílabas, em si totalmente carentes de sentido, que se tornavam independentes no canto e ganhavam uma imagem”, se isso é verdade na canção em geral, e mais particularmente no canto religioso, em Noel ganha outro sentido. A sua letra é capaz de nos elevar a um sentimento de beleza, ainda que não conheçamos a sua melodia. Os estrangeiros, os não-brasileiros, que não têm a felicidade de conhecer a música de Noel, poderão com mais justiça dizer se há razão no que digo. Leiam isto:
Três apitos
Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você.
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Ou está interessada
Em fingir que não me vê
Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?
Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé com agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo
Artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você
Nos meus olhos você lê
Como sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você
Sou do sereno
Poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe por quê.
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você.
Será que foi possível sentir, somente com a letra, somente no silêncio, o perfume dessa delicada flor? No romance Os Corações Futuristas essa composição fala: “Cai um silêncio, a agulha fica raspando. Até o ponto em que Canhoto se levanta e põe Três Apitos, de Noel. Isso dói no peito e faz aumentar a sede. O uísque jorra, parece. Os copos com gelo ficam a meio, com aquele uísque safado, estragado, distribuído com uma fraternidade que a comunhão da santa hóstia da santa missa jamais conseguiu. Bebem, calados, amando a vida amarga e ruim. ‘Com ciúmes do gerente impertinente que dá ordens a você’ ...”.
Com Noel, o X do problema, que se não o resolve, pelo menos o escreve, é que ele é um artista de excepcional talento, diria, até, e nos perdoem o capricho livresco: Noel é um artista total, aquele artista que todos sonhamos, ou deliramos em noites de febre e loucura, algum dia numa felicidade ou maldição ser. Ele é trágico, satírico, lírico, humano, cômico, alto, verdadeiro.
enviado por Urariano Mota
Postado por
Castor Filho
às
11:14:00
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