3 de dezembro de 2010
Qual seria o significado das UPPs, no contexto da geopolítica urbana em curso, e que envolve diferentes aspectos? Por Marcelo Lopes de Souza [*]
Qual seria o significado das UPPs, no contexto da geopolítica urbana em curso, e que envolve diferentes aspectos? Por Marcelo Lopes de Souza [*]
A geopolítica urbana da “guerra ao tráfico”
A partir da desterritorialização dos traficantes de drogas de varejo [venda a retalho] da favela da Vila Cruzeiro (25 de novembro de 2010) e do Complexo de Favelas do Alemão (três dias depois), na Zona Norte do Rio de Janeiro, a expressão “reconquista do território” e outras equivalentes passou a ser fartamente utilizada por diferentes agentes do Estado. Nos dias imediatamente subsequentes àquele que o jornal O Globo denominou de “O Dia D da guerra ao tráfico”, a grande imprensa escrita, falada e televisionada ficou saturada de alusões à “estratégia territorial” adotada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, à importância da retomada do “controle territorial” por parte do aparelho de Estado e ao revés sofrido pelos traficantes ao terem perdido alguns de seus mais importantes (pela importância logística) territórios.
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As metáforas bélicas, também, passaram a ser ainda mais abundantemente empregadas. “A Guerra do Rio” é uma expressão consolidada já há anos no jornal O Globo, e a Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e vários outros grandes jornais não ficam muito atrás. “Guerra”, “batalha”, “soldados do tráfico” e outras expressões, hoje já até corriqueiras, passaram a conviver com outras, mais desabridas, entre as quais se destaca o “Dia D”. Ironia das ironias: o complexo de favelas que, a partir do “Dia D”, se buscava “reconquistar”, se chama, precisamente, Complexo do Alemão. À diferença da Normandia ocupada pelas tropas do Terceiro Reich, contudo, os “inimigos”, agora, são pessoas nascidas no mesmo país que os “libertadores” (“libertação”, aliás, tem sido outra expressão muito empregada); na sua esmagadora maioria, esses “inimigos” são jovens negros e mulatos, muitas vezes franzinos, armados com enormes fuzis mas calçados com chinelos de borracha. A juventude pobre dos espaços segregados é, em última análise, o grande “inimigo” a se temer, real ou potencialmente, no imaginário das elites e da classe média.
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“A comunidade hoje pertence ao Estado”…
A frase acima foi empregada, no dia seguinte à “reconquista” da Vila Cruzeiro, pelo subchefe operacional da Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Rodrigo Oliveira, e variantes dela foram utilizadas também pelo governador Sérgio Cabral Filho e por outras “autoridades”. Que seja do meu conhecimento, nenhum dos especialistas (com ou sem aspas) em segurança pública que desfilaram, em sucessão frenética, naqueles dias de fins de novembro, pelas telas de televisão ou pelas páginas dos jornais, lembrou-se de observar o profundo significado simbólico dessas palavras.
De fato, a “comunidade” nunca se “pertenceu”. Embora largamente desassistida e, obviamente, bastante estigmatizada pela classe média e pelo próprio Estado e pela grande imprensa, a tutela estatal, exercida de modo que em geral mesclava (ou alternava) a brutalidade (arbitrariedades da polícia) e o clientelismo mais rasteiro, não deixou de se fazer presente. Apesar de serem as favelas largamente desassistidas em matéria de provimento de serviços básicos e infraestrutura técnica e social, uma frase como “o Estado sempre esteve ausente [das favelas]” é retórica e politicamente compreensível, mas, em última instância, pouco rigorosa: seja pelas incursões da polícia, seja por meio das malhas do clientelismo, o Estado sempre lançou os seus tentáculos sobre os espaços segregados. Por outro lado, cada vez mais, ao longo dos anos 80, mas mais ainda a partir da década de 90, essa tutela passou a ser disputada e teve de se arranjar com a tutela exercida pelos chefetes microlocais do tráfico de varejo - representantes miúdos do capitalismo criminal-informal.
No decorrer das décadas, os traficantes de varejo, regularmente extorquidos por policiais, passaram a se arranjar com os agentes do Estado também de várias outras maneiras, em uma promiscuidade que se tornou regra geral: intermediação entre políticos (ou candidatos) e as “comunidades”, em época de eleição ou não; interferências menos ou mais “toleradas”, “negociadas” quotidianamente, junto a programas governamentais, como o Favela-Bairro (urbanização), com a finalidade de evitar intervenções que pudessem causar estorvos à segurança ou aos negócios dos traficantes; e por aí vai. Não chegaram, contudo, ao ponto de se organizarem para eleger seus próprios representantes junto às câmaras de vereadores ou à Assembleia Legislativa. Isso ficou para as “milícias”, esquadrões da morte formados por (ex-)policiais e (ex-)bombeiros.
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No Rio de Janeiro, há muito tempo que a população, descrente de uma polícia reconhecidamente corrupta e (e, em parte, porque) deficientemente remunerada, equipada e treinada, faz brincadeiras do tipo: “Socorro! Chama o ladrão, que a polícia vem aí!” (Notadamente para a população das favelas, espremida entre a cruz e a caldeirinha, os traficantes de varejo, às vezes, realmente representam quase que um mal menor - coisa, aliás, além da compreensão da classe média, que, por conta disso, acostumou-se a acusar os favelados, entre outras coisas, de “coniventes” com os traficantes, como se fosse uma questão de escolha.) Em face das “milícias”, é de se perguntar: no caso de espaços controlados não por criminosos em sentido mais corriqueiro, mas sim por (ex-)policiais corruptos e criminosos, o que resta, aos olhos da população pobre, de credibilidade do Estado, a começar por sua face repressora? E mais: o que se poderá esperar, no longo prazo, caso a “instabilidade” do varejão [venda a retalho] do tráfico semiorganizado (constantes e sangrentas disputas territoriais, na verdade disputas por mercado e pontos logisticamente estratégicos) seja substituída por uma razoável “estabilidade” de uma “paz miliciana”, flanqueada por diversos arranjos e acumpliciamentos com a face formal do Estado capitalista?… São questões como essa que eu, preocupado sobretudo com as consequências em matéria de margem de manobra para os movimentos sociais emancipatórios, levantei em meu livro Fobópole [1].
“Pertencentes” ao Estado (em sua face formal), aos chefetes microlocais do tráfico de drogas ou a “milicianos”, as “comunidades”, de fato, nunca se pertenceram plenamente.
O papel da mídia
O papel da grande imprensa tem se revelado crucial e, pode-se dizer, estratégico, ao longo deste mais recente capítulo da militarização da questão urbana.
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Corações e mentes (os corações muito mais que as mentes) vêm sendo inusitadamente mobilizados para dar suporte de massas às “operações de guerra” empreendidas pelo Estado. A Rede Globo, muito embora tenha, timidamente, começado a noticiar, a partir de 30 de novembro, relatos de abusos das forças policiais contra moradores da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, não deixou de produzir um estilo de cobertura jornalística que, muito mais do que ser acriticamente simpático às ações de “reconquista” em curso, tem se revelado até operacionalmente simbiótico com o Estado e quase indissociável de sua dinâmica.
O estilo de outras empresas jornalísticas não tem sido muito diferente, se bem que a Folha de São Paulo(ou um ou outro articulista da Folha, mas não todos) venha se mostrando, a esse respeito, um pouco mais comedida e um pouco menos sensacionalista. Uma pequena matéria de um dos articulistas da Folha(Nelson de Sá), publicada em um cantinho da página C5 da edição de 29/11/2010, traz, porém, o que pode ser reputado como uma das chaves para o nosso entendimento da construção do “épico” acima mencionado:
Ameaçada pela Record no Rio, a Globo derrubou parte da programação regular a partir de quinta, repetindo a cobertura da enchente que em 1966, em cinco dias, com Walter Clark, a estabeleceu como a TV da cidade.
Assim foi até ontem, com a tomada do Complexo do Alemão […] - e sua transmissão ao vivo bateu a Record por grande margem.
E prossegue assim o articulista:
A cobertura global […] se fundiu ao próprio Estado, em engajamento semelhante ao da Fox News no Iraque. Sua repórter chegou ao Alemão ao lado da polícia. […]
O discurso de refundação do Estado nas áreas retomadas foi único, da cobertura como das autoridades na transmissão. […] No dizer do relações públicas da Polícia Militar, “um novo tipo de guerra, também é uma guerra midiática”.
Poderíamos dizer: é, essencialmente, e em vários sentidos, uma “guerra midiática”…
A dimensão “biopolítica” das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)
Em excelente artigo publicado neste Passa Palavra, Eduardo Tomazine Teixeira examinou, meses atrás, algumas características das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), implementadas já em pouco mais de dez favelas do Rio de Janeiro [2]. Eduardo Tomazine contribui, entre outras coisas, para chamar a atenção para a geograficidade da estratégia das UPPs, como a sua localização preferencial (favelas encravadas em meio a áreas turísticas e de residência dos mais privilegiados, na Zona Sul da cidade).
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Existem, no entanto, outras consequências das UPPs. Se os traficantes, fisicamente, migrarem para favelas mais distantes e lá se reinstalarem, desalojando outros traficantes ou territorializando novos espaços segregados, isso não contrariará frontalmente o atingimento do objetivo prioritário que é, afinal de contas, garantir maior tranquilidade para a classe média e os turistas, já pensando na Copa do Mundo em 2014 e nas Olimpíadas em 2016. Mas há mais: conforme o deputado estadual Marcelo Freixo já chegou, com preocupação, a reconhecer, em artigos de jornal e declarações públicas, existe um risco de que, com a valorização imobiliária que se vem observando no entorno formal de favelas já “pacificadas” e mesmo no que concerne ao mercado informal de certas favelas, a própria dinâmica de valorização do espaço vá, aos poucos, empurrando para fora das favelas da Zona Sul os moradores mais pobres, que seriam substituídos por camadas de poder aquisitivo um pouco maior - ou até bem maior, dependendo da localização. É o que se conhece, há muitos anos, como “expulsão branca”, e que, segundo algumas evidências, já teve início, acanhadamente, com o próprio Programa Favela-Bairro, anos atrás. As UPPs, portanto, a serviço, no médio e longo prazos, do capital imobiliário? Eis um cenário altamente provável, e surgem os indícios de que, especialmente em uma parte da cidade, isso já começa, devagar, a se tornar realidade.
Qual seria, enfim, o significado das UPPs, no contexto da geopolítica urbana em curso, e que envolve diferentes aspectos?
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1) Muito embora ele tenha colaborado de maneira destacada e quase ímpar para a compreensão da “microfísica do poder” e da importância de se enxergar o poder (e a ideia de poder) para muito além do Estado, o termo “território” foi por ele empregado, via de regra, para se referir ao aparelho de Estado e à sua “soberania”. No entanto, todo e cada poder que se exerce, inclusive nas escalas mais acanhadas, “microfísicas”, possui uma dimensão espacial, vale dizer, propriamente territorial [4]. Como outros autores também já reconheceram - seja explícita ou implicitamente [5] -, o uso que Foucault faz do termo “território” é bastante restrito. O que está em curso, no Rio de Janeiro, é um complexo conflito de territorialidades, com interesses econômicos e políticos divergentes por trás (sendo que ainda falta incorporar um agente à análise, as “milícias”, o que será feito na próxima seção). E, por parte do Estado, claramente se vê o desenho, cada vez mais nítido, de uma geopolítica urbana - ainda tateante, capenga (basta pensar na ineficiência e no elevado grau de corrupção que assolam as polícias fluminenses), mas nem por isso negligenciável.
2) Durante seus últimos cursos no Collège de France, Foucault testou e explorou o assunto da“biopolítica”, que seria uma “tecnologia de poder” distinta da “soberania” (que um Estado exerceria territorialmente) e da “disciplina” (que seria exercida com o auxílio de estruturas espaciais como a prisão, o manicômio, etc.). A “biopolítica”, como o nome sugere, seria a tentativa de enquadramento de populações não por meio da repressão, mas sim mediante um conhecimento de características populacionais (através de recenseamentos e similares) e uma tentativa de interferir, com base nisso, para fazer face a situações contigentes e largamente inevitáveis (mas de algum modo a serem enfrentadas), como epidemias [6]. As preocupações com a “segurança pública” igualmente devem, e com destaque, ser articuladas com as atuações estatais no campo “biopolítico”, não menos que os esforços de enquadramento especificamente soft e vinculados às políticas e legislações de “bem-estar” (legislação trabalhista e previdenciária, etc.), como foi o caso, historicamente, principalmente em certos países europeus - coisas que podem ser entendidas como as versões modernas do “poder pastoral”, para utilizar uma outra expressão foucauldiana [7]. Todavia, Foucault equivocou-se um pouco ao sugerir que o “poder pastoral”, mais que ao “território” (como é o caso do Estado em sua busca de preservação da soberania), visaria as populações, em sua multiplicidade [8]. Ora, Foucault sabia que, também no que diz respeito à “segurança”, populações e espaço são, sempre, indissociáveis - e, como se pode ver, as UPPs, ao mesclarem uma promessa de políticas públicas “sociais” (compensatórias…) com uma ocupação armada, apresentam, cristalinamente, uma dimensão “biopolítica”, para além das tradicionais ações meramente repressivas. Dessa combinação deriva, aliás, em grande parte, a sua ampla aceitação, inclusive por uma classe média “arejada”. Mas não se trata somente do “espaço”, em geral (na sua materialidade, ou como um “meio” em que operam redes e fluxos). Trata-se, muito propriamente, também de territórios e processos de territorialização (e desterritorialização). Territórios controlados por agentes diversos; territórios em escala microlocal (favela, bairro, conjunto habitacional…), que em parte se superpõem relativamente a outros territórios referenciados a outras escalas, em parte se justapõem uns aos outros; territórios que atritam uns com os outros e se sucedem, ao longo das fricções e alterações em matéria de relações de poder. A territorialidade conta, portanto, e muito; em todas as escalas, e em conexão com as políticas estatais de controle para além da “soberania” e da “disciplina”, da repressão, do “vigiar e punir”.
O Haiti como “laboratório”: o significado mais amplo da reconquista do(s) território(s)”
Para quem conhece e gosta de História, a palavra “reconquista” se associa a um processo associado a uma espiral de fervor patriótico e fanatismo religioso: la reconquista da Península Ibérica, com a expulsão definitiva dos mouros pelos espanhóis. Reconquista que, como se sabe, foi a antessala da conquista da América e a escravização e o genocídio das populações ameríndias.
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Vale a pena registrar, de passagem, que, em 1988, o então comandante e diretor de estudos da Escola Superior de Guerra (ESG), Gal. Muniz Oliva, já fazia notar, ainda que acanhadamente, em um artigo intitulado “ESG: Opções político-estratégicas para o Brasil”, a importância crescente de preocupações envolvendo a criminalidade comum como fator de tensionamento social [9]. Antes mesmo do fim “declarado” da Guerra Fria, por conseguinte, já havia, nas fileiras militares brasileiras, quem entrevisse e sugerisse, nas entrelinhas, o gradual deslocamento do foco a propósito do “inimigo interno”: em vez dos “comunistas”, os “bandidos” e outros representantes de comportamentos contrários à “ordem”. Curiosamente, os novos “subversivos” ofereceriam alguns elementos de conexão aparentes com as típicas obsessões do imaginário militar brasileiro: simbólico-terminologicamente e, em parte, organizacionalmente (“Comando Vermelho”, “Primeiro Comando da Capital”…). Não têm faltado, por isso — entre militares e policiais, mas também no meio jornalístico e até na academia —, aqueles que, nos últimos anos, e novamente em fins de novembro de 2010, tecem paralelos (às vezes parcialmente pertinentes, mas comummente exagerados e sem rigor) entre as ações e padrões de atuação dos criminosos, de um lado, e práticas guerrilheiras e terroristas, de outro.
Em 2 de dezembro, portanto menos de uma semana depois da “reconquista” do Complexo do Alemão com o auxílio dos paraquedistas, as emissoras de televisão noticiavam a decisão de, em um futuro próximo, ou em uma “segunda fase” da operação policial-militar, o Exército estabelecer um contingente permanente no referido Complexo, em missão um tanto análoga à que ele vem desempenhando no Haiti. (No mesmo dia, emissoras de TV divulgaram pesquisa de opinião realizada pelo Ibope, conforme a qual 88% da população do Rio estão apoiando as medidas tomadas contra o tráfico de drogas, e nada menos que 93% aprovam a participação das Forças Armadas.) Eis, coerentemente, o título da manchete principal do jornal Estado de Minas do dia 3 de dezembro, estampada em letras garrafais: “O Haiti é aqui”.
Conforme demonstrou Jorge Zaverucha [10], e como eu também indiquei [11], a utilização das Forças Armadas para finalidades de controle social (sócio-espacial) interno ao país é algo que vem sendo preparado e ensaiado há muito tempo, desde o início da década de 90. Os riscos disso não são poucos, em um país marcado pela alternância de regimes autoritários explícitos (como em 1964-1985) e momentos de “democracia” representativa um tanto caricatural, na qual os direitos humanos de grande parcela da população são sistematicamente desrespeitados. Mas, como o medo é mau conselheiro, amplos setores da sociedade civil (a começar pela grande imprensa) se mostram crescentemente favoráveis a apoiar, e com cada vez menos ressalvas, a militarização explícita da questão urbana. Se antes esta era amiúde reduzida a um “caso de polícia”, agora avança-se, a passos largos, para torná-la, de maneira plenamente institucionalizada, uma questão militar. Os efeitos que isso pode, no longo prazo, acarretar, são em parte previsíveis: aumento da corrupção e dos “desvios de conduta” nas fileiras do próprio Exército; possibilidade incrementada de sistemática utilização futura das tropas para reprimir movimentos sociais emancipatórios e todo protesto que for criminalizado e julgado como uma ameaça à “ordem pública”, em uma reedição atualizada dos temores paranoides referentes à “segurança nacional”; novo momento histórico de afastamento dos militares em relação ao papel precípuo que lhes consagra a Constituição, a defesa externa, com prováveis consequências políticas internas nefastas. Porém, quem liga para tudo isso, nas atuais circunstâncias?…
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As imagens das tropas do Exército desfilando por ruelas do Complexo do Alemão, inclusive com banda de música, em 2008, parecem ter caído no esquecimento. Interessantemente, pareceu a alguns (ou a muitos), naquela ocasião, que as “forças da ordem” se haviam apossado, definitivamente, daquele “território inimigo”. Não se passou muito tempo para que, atropelado pelos fatos, o efeito do espalhafato midiático fosse reduzido a nada.
O que teria mudado que justificaria, agora, maior otimismo?
De certa forma, é certo que algo mudou: parece haver um grau de concertação e uma “inteligência sistêmica” maiores agora, e a entrada em cena das UPPs é apenas um aspecto (embora muito importante) do novo cenário. Quanto a isso justificar “otimismo”, entretanto, é, sem dúvida, uma questão de perspectiva. Ou de interesse(s).
Na esteira das UPPs, e apesar da onda de incêndios atribuídos aos traficantes de varejo em fins de novembro (e que foi, aliás, o que deflagrou o novo capítulo da militarização), a classe média, está, após o “Dia D”, mais aliviada. Resta saber por quanto tempo.
Quanto aos pobres, que são a grande maioria da população da cidade e do país (a despeito dos esforços de celebração midiática de uma “nova classe média” na qual, forçadamente, são enfiadas as camadas de assalariados suburbanos, periféricos e até favelados capazes de adquirir certos eletrodomésticos ou um automóvel), seguramente continuam e continuarão sendo estigmatizados e segregados, ainda que, às vezes, em lugares mais distantes - ou, também, separados internamente e classificados, político-ideologicamente, entre “bons pobres” (a “classe média baixa” “ordeira” e “bem-comportada”, residente em loteamentos irregulares ou em favelas “pacificadas”) e “maus pobres” (os moradores de ocupações de sem-teto, os ambulantes que insistem em sua estratégia de sobrevivência, os moradores de favelas “não pacificadas”…). Admirável mundo novo!
Notas
[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[1] Marcelo Lopes de Souza, Fobópole: O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2008.
[2] Eduardo Tomazine Teixeira, “Unidades de Polícia Pacificadora: O que são, a que anseios respondem e quais desafios colocam aos ativismos urbanos?” 1.ª Parte aqui, 2.ª Parte: aqui, 25 de junho de 2010.
[3] Refiro-me ao primeiro dos dois filmes. “Tropa de Elite 2”, de 2010, representa uma nítida mudança de tom, talvez buscada pelo diretor (José Padilha) para se redimir da pecha de patrocinador de um “filme fascista”, acusação sofrida em função do primeiro filme.
[4] O território não deve ser entendido, como ainda hoje muitas vezes o é, como sinônimo de “espaço geográfico” em geral. Um território é um espaço social qualificado, em primeiro lugar e acima de tudo, pela dimensão do poder. Ele constitui uma espécie de “campo de força”, que corresponde às relações de poder (exercício do poder: estatal ou não, duradouro ou efêmero, heterônomo ou autônomo) referidas a um espaço material (e a identidades e ideologias sócio-espaciais) específico (vide, sobre isso, por exemplo, o texto “O território: Sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento”, contido na coletânea Geografia: Conceitos e temas, organizada por Iná de Castro et al. (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995).
[5] Ver, por exemplo, de Rogério Haesbaert, o texto “Sociedades biopolíticas de in-segurança e des-controle dos territórios” (in: M. P. de Oliveira et al. [orgs.], O Brasil, a América Latina e o mundo: Espacialidades contemporâneas [II]. Rio de Janeiro, Lamparina, 2008).
[6] Segundo Foucault, a “biopolítica” ou o “biopoder” consistiria na “maneira como se procurou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças…” (Michel Foucault, O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pág. 431).
[7] “[…] [A] história do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo dos homens, essa história do pastorado no mundo ocidental só começa com o cristianismo.” (Michel Foucault,Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, pág. 196) Porém, como Foucault esclarece, “[i]sso não quer dizer que o poder pastoral tenha permanecido uma estrutura invariante e fixa ao longo do quinze, dezoito ou vinte séculos da história cristã. Pode-se até mesmo dizer que esse poder pastoral, sua importância, seu vigor, a própria profundidade da sua implantação se medem pela intensidade e pela multiplicidade das agitações, revoltas, descontentamentos, lutas, batalhas, guerras sangrentas travadas em torno dele, por ele e contra ele.” (Michel Foucault, Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, pág. 197)
[8] Conforme Foucault, “[…] a ideia de um poder pastoral é a ideia de um poder que se exerce mais sobre uma multiplicidade do que sobre um território.” (Michel Foucault, Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, pág.173).
[9] Consulte-se, de Oswaldo Muniz Oliva, “ESG: Opções político-estratégicas para o Brasil”. Revista da Escola Superior de Guerra, IV(9), 1988, pp. 9-15.
[10] Jorge Zaverucha, FHC, Forças armadas e polícia: Entre o autoritarismo e a democracia (1999-2002). Rio de Janeiro, Record, 2005.
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