sábado, 17 de janeiro de 2015

França: República da Islamofobia

12/1/2015, Jim WolfreysCritical Muslim n. 13
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Os ataques persistentes contra muçulmanos estão impedindo a gestão efetiva da diversidade na sociedade francesa.


Jean-Marie Le Pen e a Frente Nacional em 2010 em campanha antiislâmica
Em março de 2014, um partido abertamente racista, com raízes profundas na tradição fascista francesa, a Frente Nacional [fr. Front National (FN)], foi eleito para uma dúzia de governos locais. Dois meses depois, ganhou mais assentos que qualquer outro partido nas eleições europeias, com ¼ dos votos totais. Pesquisas de opinião em 2014 até identificaram a líder desse partido, Marine Le Pen, como a figura com mais altas probabilidades de ser eleita nas eleições presidenciais de 2017. Le Pen já prometeu pôr as mesquitas sob vigilância, gravar telefonemas de “proselitistas” e banir de todos os serviços e prédios públicos todos os símbolos religiosos “ostensivos”. Comparou a visão de muçulmanos rezando nas ruas à ocupação nazista na França e prometeu “pôr de joelhos” a “gangrena” ou o “fascismo verde” do Islã radical.

Em áreas já controladas por governos da FN, os prefeitos do partido não perderam tempo para “criar suas marcas”. No sul da França, em Pontet, foram cortadas as refeições gratuitas nas escolas. Na cidade de Hayange, nordeste da França, o prefeito forçou um açougueiro halala fechar nos domingos, sob pena de prisão, depois de criar um novo feriado municipal: o Festival do Porco. No sétimo distrito de Marselha, a FN impôs o francês como único idioma admitido entre os colaboradores do prefeito. Intervenções pessoais, intromissões, de fato, do próprio prefeito, incluíram pôr fim a uma cerimônia de casamento porque a noiva tinha o rosto encoberto por um véu; e tornar obrigatório o bacon, como ingrediente, na quicheservida num evento anual na prefeitura.

Como parte de sua campanha para “salvar o secularismo”, a própria Marine Le Pen tem dedicado atenção concentrada à questão da carne de porco e derivados. Típica das falsas polêmicas que são especialidade da FN, foi a promessa de Marine, de que levantaria uma suposta “proibição” de carne de porco nas escolas. Mas a carne de porco já estava introduzida no cardápio em cidades governadas pela FN, com menus alternativos, como acontece na maioria das escolas francesas há décadas. Não há sinal algum de que organizações religiosas estivessem tentando intervir nessa questão.

Posto diante do avanço, na França, de um partido islamofóbico cada dia mais agressivo, como respondeu o establishment político dominante?

A dura verdade é que, em vez de isolar expor o racismo, e o modo como fora adaptado sob pressões da crise econômica, os dois principais partidos governantes, a coalizão de direita “União para um Movimento Popular” [orig. Union pour un Mouvement Populaire, UMP) e o Partido Socialista (PS) correram a abraçar o mesmo racismo. O ataque contra muçulmanos usados como bodes expiatórios alcançou níveis sem precedentes, com todas as suas atividades submetidas a vigilância ininterrupta. Atos insultantes, que noutros tempos teriam gerado escárnio ou teriam sido ridicularizados, são cada dia mais tolerados, até mesmo promovidos e buscados. A tolice provocativa de impor carne de porco nos cardápios, por exemplo, já foi elevada a estado-de-arte, com ativistas da extrema direita organizando recepções em que se servem vinho tinto e salsicha (Apéros saucission-pinard). Essa violenta provocação antimuçulmanos acabou por chegar até a Assembleia Nacional, levada pelos deputados do grupo “Direita Popular”, subdivisão da coalizão UMP.

Manifestação antiislâmica da FN em Marselha (7/3/2010)
Atitudes que envolvam a dieta, a carne, sobretudo, são modeladas, como a maioria dos preconceitos antimuçulmanos na França de hoje, não só por ignorância, mas também por uma espécie de fantasia desenfreada. Em 2012, Marine Le Pen declarou que pretendia banir a carne halal das cantinas escolares. O fato de que virtualmente nenhuma escola jamais seguiu qualquer política de servir carne halal não impediu que François Fillon, primeiro-ministro do governo de Nicolas Sarkozy, imediatamente alertasse que o comunitarismo estava pondo em perigo a própria República – e ruminou frases em que sugeria fortemente que as religiões deveriam vigiar melhor os descuidos com a saúde pública e “atualizar” suas tradições conforme o que ensinam a ciência e a tecnologia.

Em novembro de 2013, quando um juiz decidiu que prisioneiros muçulmanos de uma prisão em Grénoble poderiam receber refeições de carne halal, sob o argumento de que secularismo significa que todos têm o direito de praticar a própria religião, o governo socialista recorreu contra a sentença, que, em julho seguinte foi cancelada. O Ministro do Interior, Manuel Valls, alertou para a importância de manter constante vigilância, em tempos de crise econômica, sobre tudo que pusesse em discussão “nossa própria identidade”, ou desse a impressão de que “princípios fundamentais da República” estariam sendo desconsiderados. Custou-lhe muita dor, mas, afinal, ele reconheceu que o secularismo, sim, era um daqueles princípios.

Tentativas para prescrever o que muçulmanos podem ou não podem comer produziram pelo menos três momentos notáveis. Em 1989, o primeiro “caso do véu” terminou com três alunas muçulmanas expulsas, porque usavam o hijab. Em 1994, circular lançada pelo Ministro da Educação, François Bayrou, tentava regulamentar o uso de símbolos religiosos em escolas, distinguindo entre símbolos “discretos” aceitáveis, como o crucifixo e o kippah; e símbolos “ostensivos” inaceitáveis, como o hijab. Em 2004, a tal circular foi convertida em lei. Adiante, em 2011, burqa e  niqab foram proibidos em lugares públicos, como já era proibido orar nas ruas – consequência de as mesquitas sempre estarem superlotadas e não haver outros locais adequados para as orações. O Ministro do Interior naquele momento, Claude Guéant, deu-se ao trabalho de alertar que seu governo usaria meios de força, se necessário, para fazer cumprir esses princípios secularistas.

Nicolas Sarkozy (E) e François Hollande em 16/5/2012
Durante a campanha presidencial de 2012, os dois principais candidatos, François Hollande e Nicolas Sarkozy, dedicaram tempo em seus discursos e entrevistas, e até no debate televisionado, para discutir uma decisão de uma piscina municipal em Lille, que ordenava que um grupo de mulheres obesas (algumas das quais muçulmanas) usassem outra piscina separada, para suas sessões de hidroginástica. Os dois candidatos mostraram-se impressionantemente sensibilizados por essa flagrante violação de princípios seculares. Sarkozy declarou que a agenda de horários da piscina já seria, só ela, grave ameaça à República. Ninguém que advogasse a favor de diferenças entre homens e mulheres, ou quem não se curvasse ao princípio da total igualdade não tinha “lugar no território da República”. Que o presidente de uma das maiores potências mundiais se sentisse obrigado a encerrar aquela discussão fixando, ele mesmo, uma “lei da hidroginástica mista em piscinas municipais” já é prova impressionante de que as coisas já estavam escapando a qualquer controle ou ponto de vista racional.

Da direita conservadora à esquerda socialista, nenhum político perdia qualquer oportunidade de destacar o quanto estava comprometido com o secularismo. Claude Guéant, chefe de gabinete de Sarkozy, que foi Ministro do Interior entre fevereiro 2011 e maio 2012, revelou que sua oposição a que se garantisse aos imigrantes direito de votar em eleições locais era motivada pelo medo de que, se eleitos para governos locais, os estrangeiros tornassem obrigatório o consumo de carne halal nas cantinas escolares, ou que administrariam piscinas públicas “por sexo” sem levar em consideração os princípios da diversidade. Em fevereiro de 2013, seu sucessor, o socialista Manuel Valls, interveio pessoalmente no caso de uma atendente numa creche, demitida por usar o hijab. A demissão havia sido plenamente justificada, disse Valls, porque o véu continuava a ser “batalha essencial pela República”.

Adiante, naquela mesma primavera, uma aluna, 15 anos, foi alvo de uma decisão do Conselho de Estado, que a expulsou da escola que frequentava. Ela usava uma longa saia sobre calças compridas e uma faixa preta que cobria de 1 a 3 polegadas dos cabelos. A comissão disciplinar da escola concluiu que a combinação das duas peças constituía símbolo religioso e pôs a moça em sala separada, longe das colegas. Foi proibida de falar com os colegas e de participar de qualquer recreação. O deputado da região levou a questão ao Parlamento, onde disse que estaria em curso uma “guerra latente”, agitada por ideólogos que declaravam estar combatendo a islamofobia, mas só faziam, de fato, tentar impor seus valores à sociedade francesa. Para ele, a decisão dos administradores da escola só fazia aumentar a desconfiança contra os muçulmanos.

A lei acabou por proibir símbolos e roupas “imediatamente reconhecíveis por afiliação religiosa”. Claro que, se o significado da roupa puder ser discutido e interpretado, é razoável questionar se poderia alguma roupa ser considerada “símbolo ostensivo”. Como argumentou um deputado socialista, Christophe Caresche, no início do caso, o debate recorrente sobre ohijab era menos um sinal do crescimento do “comunitarismo” que consequência de ideias que tivessem a ver com a questão da identidade na sociedade francesa. Esse endurecimento de posições numa seção da sociedade francesa estava gerando no Estado um “desejo obsessivo”, de tornar invisível qualquer signo de filiação ao Islã.

O racismo ganha respeitabilidade

Parte do problema foi que vozes como a de Caresche já haviam sido marginalizadas dentro de todos os partidos dominantes. E, em vez deles, quem estava ganhando ímpeto era a Frente Nacional. Em maio de 2014 a deputada da Frente Nacional, Marion Maréchal Le Pen, neta do ex-líder da FN Jean-Marie Le Pen, voltou à questão no Parlamento. Estava preocupada por que se usavam cada dia maior número de “trajes islâmicos”, como saruels e longas saias escuras. Para ela, era a subversão do princípio do secularismo consagrado na lei de 2004 que proibia símbolos religiosos “ostensivos”. Como o pessoal das escolas poderia saber de onde vinham os trajes que as moças usavam? Seriam necessárias medidas extras, para fazer valer a lei?

Marion Maréchal Le Pen da FN em campanha nacional antiislâmica em 18/10/2014
Essas intervenções mostram uma mudança no debate público. Por mais de três décadas, Jean-Marie Le Pen falou contra os “duzentos milhões de muçulmanos” ao sul do Mediterrâneo, às portas da França; e contra os imigrantes inassimiláveis, por causa das diferenças de raça, religião e valores, que os tornavam distintos dos “franceses por nascimento e criação”. Essa retórica já não se mantém confinada nas franjas do debate público.

Hoje, a Frente Nacional já está posicionada como baluarte do secularismo, enquanto o establishment político “respeitável” assume a tarefa de policiar o comportamento da população francesa muçulmana.

Em teoria, o laicismo (secularismo) na França é o princípio da neutralidade religiosa, que permite que as liberdades de religião sobrevivam no espaço público. Inicialmente preocupada com os que trabalhavam na educação pública no final do século XIX, para mudar o controle sobre a educação, da igreja católica para o Estado, desde o final da década dos 1980s o estado cada dia mais, hoje, concentra-se contra mulheres muçulmanas e mulheres muçulmanas que estudam. Políticos de todos os partidos, nesse processo, transformaram o secularismo em ferramenta para impedir a diversidade no espaço público, baseados em distinções cada dia mais arbitrárias sobre como alguns símbolos especiais são percebidos.

A lei que proibiu o uso do niqab e da burqa em público, por exemplo, não tem qualquer fundamento na região, mas na ideia de que cobrir o rosto em público seria agredir o conceito do “viver juntos”. Na sequência, balaclavas também foram proscritas (e a lei faz exceção para capacetes de motociclistas e máscaras usadas em desfiles, como de carnaval).

Os deputados franceses davam tratos à bola para conseguir aplicar um verniz de racionalidade à lei inspirada unicamente no desejo de erradicar toda e qualquer expressão de identificação com o Islã. Muçulmanos que desejassem integrar-se teriam de provar que se “converteram” à República francesa e cuidar para afastar qualquer suspeita de que pudessem tender ao fundamentalismo. Para tanto, teriam de adaptar-se a situações que, sem melhor pretexto, visavam a refinar o código de vestimentas republicano. Políticos de todos os partidos argumentavam que mulheres muçulmanas tinham de remover aquelas “focinheiras”, “mortalhas ambulantes”, “máscaras de Mickey Mouse”. Quando se tratou de redigir leis, então, a emoção, o instinto e o preconceito tomaram a dianteira e deslocaram qualquer debate racional.

François Hollande assumiu e reconheceu explicitamente tudo isso, quando, em seu primeiro grande discurso de campanha às presidenciais de 2012, declarou que ser presidente da República era ser “visceralmente ligado ao secularismo”... e recebeu aplausos trovejantes dos que o apoiavam.

Por muito tempo o Islã foi a segunda religião da França, embora o número de muçulmanos na França seja frequentemente superestimado. O número de que se fala mais frequentemente está entre 5 e 6 milhões, mas estimativas mais precisas falam de algo entre 2,1 milhões e 4,2 milhões. Em outras palavras, assume-se em geral que a “população muçulmana” na França seja precisamente igual ao número de pessoas de origens norte-africana que vivem na França. Assim, “Islã”, frequentemente, descreve uma comunidade diversificada de milhões de pessoas, como se fosse uma entidade homogênea. Esses lapsos contribuem para o processo de essencialização que subjaz à construção da “ameaça muçulmana”.

Percentagem de muçulmanos na França em 2009
Já não há identidade fixada que possa ser rotulada como “Islã” na França, como já não há tampouco entidade que se possa definir como “os franceses”. A história da imigração e a cidadania na França mostra que é possível existir em mais de uma cultura, que identidade é conceito fluido, e que os indivíduos engajam-se em relacionamentos múltiplos com a sociedade, que podem contradizer, modificar, reforçar ou transformar o próprio sentido de identidade.

Reduzir os muçulmanos a uma identidade definida primariamente pela religião deles e tentar forçá-los a conformar-se nos limites de “normas” arbitrariamente impostas pela nação “hospedeira” é coisa que tem impacto direto tanto sobre a percepção do Islã como sobre a percepção que a própria França tem dela mesma. O modelo republicano de cidadania, baseado historicamente na identificação partilhada com um conjunto de valores políticos, vai-se tornando cada vez mais e mais alinhado com noções etnoculturais de “francesidade” que enfatizam diferenças de religião, cultura ou “tradição” que ameaça a identidade nacional.

A implicação de que haveria alguma “islamidade” inata, que tornaria impossível que os muçulmanos se integrassem e fossem assimilados, abre o caminho para a ideia de que os muçulmanos representariam um “inimigo interno” e ameaça semelhante ao “choque de civilizações” de Samuel Huntington. Em 2012, o Ministro Guéant, do Interior, explicitamente endossou essa noção, ao anunciar que considerava algumas civilizações superiores a outras. A França, por exemplo, respeita mais as mulheres que outras civilizações – como, só faltou completar, o Islã.

O debate realmente mudou-se para terreno que a Frente Nacional conhece bem.

Para a Frente Nacional, os problemas da França derivam, em parte, da noção republicana de “direitos de residência”, que garante cidadania a qualquer pessoa nascida na França. Isso, diz Jean-Marie Le Pen, significa que a promessa de integração atinge elementos inassimiláveis. É como, disse ele, em metáfora bombástica, pretender que “um bode nascido numa estrebaria seja um cavalo”. Embora os políticos da “elite” sempre evitem essa retórica, os esforços que o establishment político “respeitável” tem feito para policiar o comportamento da população muçulmana na França só servem para reforçar as ideias que subjazem àquela metáfora à Le Pen, gerando a noção de que uma parte da população exigiria disciplinamento constante, para adaptar-se às ‘normas’ da sociedade.

Efeitos sociais

Alguns dos efeitos dessa crescente islamofobia foram destacados pela Comissão Nacional Consultiva dos Direitos do Homem (CNCDH) em 2012. Tendo constatado que o número de agressões racistas contra muçulmanos na França haviam aumentado 33,6% em 2011, um relatório daquela Comissão identificou “crescente desconfiança contra muçulmanos”.

Linguagem racista e termos racistas estavam-se tornando lugar comum, alimentando a exploração de questões como identidade nacional, imigração e religião, nos debates políticos. Sobre seus achados para 2013, a Comissão observou que estavam sendo criados novos bodes expiatórios: muçulmanos e romanos. Ambos os grupos eram identificados como grupos isolados na sociedade francesa. Polarização e distorção em torno de questões de racismo eram reforçadas também por um novo fenômeno, a sensação de que as principais vítimas do racismo seriam os franceses – opinião partilhada por 13% dos respondentes. Pelo terceiro ano em sequência houve aumento no número de atos islamofóbicos, 50% a mais em 2013. As mulheres são as principais vítimas, alvos de 78% dos ataques, com as que usam hijab como alvo principal de todos os tipos de ataque e discriminação. Em Argenteuil, periferia de Paris, uma mulher muçulmana grávida sofreu um aborto depois de ser atacada.

A islamofobia prossegue na França
A reunião de intolerância de direita contra os muçulmanos, com o tal “secularismo visceral” da dita esquerda, inflado quase sempre por objeções das feministas contrárias ao hijab, levaram a um processo de essencialização e de desumanização dos muçulmanos.

O que muitos dos que proibiram que mulheres jovens usassem saias longas ou cobrissem os cabelos não viram foi a possibilidade de que a bandana nos cabelos e a saia sobre as calças compridas fossem uma tentativa de negociar um lugar possível para as crenças pessoais daquelas moças no contexto da lei que proibia símbolos religiosos “ostensivos”. Numa sala em que outras estudantes usam saias longas e bandanas no cabelo, uma moça muçulmana foi separada das colegas e posta em ostracismo porque, na cabeça de alguns, suas roupas foram interpretadas como evocação “ostensiva” do Islã. Foi castigada por ser vista como muçulmana.

A ortodoxia republicana que exclui estudantes muçulmanos do espaço público que eles estão tentando ou encontrar ou preservar como tal é profecia que se autorrealiza. Ao isolar muçulmanos, a tal ortodoxia republicana está obtendo, mediante seu dogmatismo “secular” o que ela denuncia rotineiramente como produto de impulsos “comunitaristas”.

O relatório da CNCDH confirmou uma tendência já subjacente há algum tempo na sociedade francesa. Duas ou três décadas antes, “árabes” eram mais impopulares em pesquisas de opinião, que “muçulmanos”. Racistas organizados na forma de um coletivo de think-tanks de direita, conhecidos em conjunto como “A Nova Direita” já tentaram, desde os anos 1970s, mascarar, sob termos culturais, o racismo biológico.

Segundo Maurice Bardèche, uma das principais figuras nos esforços para reviver o fascismo na França de pós-guerra, esse “arranjo” permitiria que a direita se autorrenovasse. Criaria, inclusive, o direito de a direita se autodeclarar antirracista.

Na França contemporânea, a palavra “imigrante” carrega uma série de preconceitos raciais implícitos contra a população francesa norte-africana e seus descendentes, mas a retórica racista sempre se focou, de modo geral, na ideia de que os imigrantes partilham cultura diferente, especialmente a fé muçulmana, e, portanto, a assimilação deles é impossível. Ressentimentos contra imigrantes, assim, cada vez mais encontram expressão em ataques contra o Islã.

A oposição entre valores republicanos e muçulmanos fixada por atores em todo o espectro político serve para legitimar o preconceito na sociedade como um todo. Assim, com a colusão dos principais partidos, a Frente Nacional alcançou seu principal objetivo numa estratégia de acentuar diferenças culturais, não raciais: o racismo ganhou respeitabilidade!

No processo, como Marine Le Pen já observou, a “muralha anti-FN” – o chamado “front republicano” que reúne os partidos principais, independente de se são ou não racistas, em “blocos” eleitorais para excluir do governo a FN – já veio abaixo em colapso total. As consequências desse colapso não são simplesmente eleitorais.

Em 2012, um político e líder conservador, Jean-François Copé, em sua bem-sucedida campanha para chegar à liderança da União para um Movimento Popular, UMP, demonstrava que Bardèche teria razão para protestar contra um “racismo anti-brancos”. Um líder socialista, Arnaud Montebourg, falava do consenso em que se reuniam todos, o Partido Socialista, a UMP e a Frente Nacional, em torno da questão da imigração. E Sarkozy, enquanto isso, declarava que a FN, até então considerada fora do “bloco”, passava então a ser “compatível com a República” – declaração que diz mais sobre o esvaziamento dos tais “valores republicanos”, do que sobre alguma evolução progressista que tivesse acontecido dentro da Frente Nacional.

Por que a França tombou, presa da islamofobia?

Ao longo das recentes três ou quatro décadas, os grandes partidos franceses passaram por processo de esvaziamento de ideias e valores que, antes, definiam suas respectivas tradições políticas.

Nenhuma das duas principais formações políticas francesas, o Partido Socialista (PS) e a União do Movimento Popular (UMP), conseguiu oferecer um ponto focal positivo que reunisse seus apoiadores em torno dos valores de mercado que subjazeriam a todos os aspectos da política, mas todos os partidos participam de um mesmo consenso que apresenta aqueles mesmos valores como o melhor contexto para modelar a sociedade francesa.

Os principais partidos políticos na França estão juntos na islamofobia
O clamor a favor de respeitarem-se princípios republicanos preencheu cada vez mais o vácuo deixado pela total ausência de afiliação positiva ao neoliberalismo. Esse processo levou à convergência de vários tipos de agitação que, das (I) tentativas dos socialistas para definir e regulamentar o respeito a valores ‘'seculares'’ numa sociedade cada vez mais multicultural, até (II) a crescente confiança que a direita deposita no processo de servir-se de bodes expiatórios racialmente definidos, acabou por deixar os muçulmanos praticamente sem aliados (ou com bem poucos aliados) no debate público na França.

A história recente também está vendo a experiência de declínio social no longo prazo pela qual a França passa. O desemprego chegou a 8% em 1982, para nunca mais ser tão baixo e subir sem parar nos 32 anos seguintes; o desemprego entre jovens foi multiplicado por quatro a partir de meados dos anos 1970s, afetando, em 2012, 25% dos jovens e adultos jovens com menos de 25 anos.

No final dos anos 1960s, cerca de ¾ dos que eram aprovados no exame de baccalauréat [admissão à universidade] ingressavam em carreiras liberais ou de administração. No início do século XXI, só 1/5 dos mesmos aprovados tinham a mesma sorte. A mobilidade social paralisou-se, a ponto de, hoje, ser muito menos provável que alguém consiga superar a barreira da situação social dos pais, do que era nos anos 1960s e 1970s.

Desigualdade crescente na França significa que, nos anos seguintes depois do crash bancário de 2008, a renda dos 10% mais ricos aumentou, ao mesmo tempo em que a renda dos 10% mais pobres diminuiu. Ao longo do mesmo período, cresceu o número de desempregados (cerca de dois milhões de novos desempregados, o mais forte aumento, desde a recessão do final dos anos 1970s e início dos 1980s.

Pessoas originárias do Norte da África sofreram desproporcionalmente os efeitos desse declínio social. Os que tenham formação acadêmica têm probabilidade cinco vezes maior de não conseguir emprego, que a média nacional. Os que abandonam a escola no conjunto dos não franceses têm muito maior probabilidade de não conseguirem emprego, que os franceses que abandonam a escola. Pesquisas mostram também que pessoas com nomes não franceses são sistematicamente discriminadas, no conjunto dos que se apresentam para seleção para novos empregos.

Apesar disso, estudos já demonstraram convincentemente que os muçulmanos na França manifestam forte identificação com sua cidadania francesa e com valores republicanos, o que desmente a noção amplamente divulgada (e aceita) de que o Islã geraria a segregação.

Mas, como os levantes que varreram as periferias [orig. banlieues] das grandes cidades francesas em 2005 demonstram, a fúria e o ressentimento gerados pela discriminação também tendem a buscar e encontrar vias de expressão/manifestação.

Tumultos de 2005 nos subúrbios de Paris
Acusações de “comunitarismo” servem só para mascarar a realidade de que os muçulmanos oriundos do Norte da África encontram-se hoje, na França, confinados em áreas como as banlieues (subúrbios, Nrc), não porque a religião deles “ensine” que eles devam manter-se autoexcluídos do resto da sociedade, mas porque todas as suas possibilidades de mobilidade social estão vedadas, o que os relega a viver em quarteirões “de miséria”. As pressões sociais e econômicas que essas situações criam são ocultadas ativamente pelo foco nas diferenças religiosas e culturais, as quais, como alguns comentadores já observaram, contribuem para a “etnização” e a “racialização” das relações sociais.

Em nenhum outro momento ou local isso foi mais visível que nas reações contra os levantes urbanos que varreram as banlieues por três semanas no outono de 2005. Cerca de 300 áreas foram afetadas em todo o país, 10 mil carros foram queimados, 5 mil pessoas foram presas e os danos a propriedade alheia ultrapassaram os 100 milhões de libras. Os tumultos de rua eclodiram depois que o Ministro do Interior da França, Nicolas Sarkozy, disse que a juventude das periferias urbanas seriam “escória”, “lixo”.

São áreas em que a privação é generalizada: em 2005, mais de 700 daquelas áreas periféricas, onde vive população somada de 4,5 milhões de pessoas, eram oficialmente definidas como “áreas em dificuldade”.

Segundo relatório do serviço secreto que circulou depois dos levantes, os protagonistas eram motivados por forte senso de identidade, não, em primeiro lugar, por algum critério étnico ou geográfico de origem, e por sua condição social, vale dizer, por sua condição de excluídos da sociedade francesa.

A preocupação do estado francês com o fundamentalismo islamista e com o terrorismo significa que aquele mesmo estado negligenciou o problema das banlieues. Mas até os comandantes dos dois braços do serviço secreto francês comandados então por Sarkozy relataram que não havia sinal da participação de fundamentalistas islamistas naqueles atos de violência, nas banlieues, 2005.

Foram vozes ignoradas, afogadas por um coro de vozes muito mais falantes. O filósofo e “intelectual midiático” Alain Finkielkraut dizia que as raízes dos tumultos de rua podiam ser encontradas não em alguma reação ao racismo na França, mas no “ódio ao ocidente”, como nos ataques do 11/9. Teria havido uma revolta “etnorreligiosa”, um “pogrom antirrepublicano” executado por negros e árabes de “identidade muçulmana”. O sindicato de oficiais de Polícia escreveu a Sarkozy lastimando que, nas periferias, havia “intifada permanente, uma guerra civil orquestrada por radicais islamistas”.

A rede Fox News mostrava cenas dos tumultos de rua, intituladas “Tumultos muçulmanos”. Segundo o príncipe Alwaleed bin Talal bin Abdul Aziz Al-Saud, acionista saudita da News Corporation, o telefonema que fez imediatamente para Rupert Murdoch, reclamando daquela cobertura, fez com que o título fosse modificado, em menos de uma hora, para “Tumultos civis”.

Mas se havia alguém telefonando para os ministros franceses, nenhum telefonema teve qualquer impacto. Sarkozy declarou que “Tentar compreender já é desculpar”.

Príncipe Alwaleed bin Talal bin Abdul Aziz Al-Saud
Como que para reforçar essa posição, vários políticos franceses destacados, inclusive o Ministro do Emprego, o presidente do UMP no Parlamento e o próprio Sarkozy (candidato à presidência) identificaram rapidamente o que entendiam que fosse a causa dos tumultos: a poligamia. A ausência da figura paterna nas famílias poligâmicas deixaria as crianças suscetíveis de comportamento antissocial, o que também as tornaria adultos inempregáveis.

A França não é o único país com problemas sociais e econômicos, em surto de crise de identidade no momento em que perde o próprio império, ou que passa por mutação em suas tradições políticas. Mas poucos países veem tanto racismo e tanto uso de muçulmanos como bodes expiatórios (já servindo como ferramenta na própria prática política de todos os grandes partidos), como a França

Há três principais razões para isso.

Primeiro, a emergência, o crescimento e a durabilidade da Frente Nacional, partido dedicado a isolar e denegrir imigrantes e seus descendentes em tempos de crise econômica, e partido que traz genuína ameaça aos valores democráticos, mas que conseguiu, sim, trazer o debate público para o seu próprio território, ao fixar a defesa da “identidade nacional” como sua prerrogativa política.

Segundo, a incapacidade dos demais grandes partidos para desconstruir esses mecanismos de criar bodes expiatórios, em parte por causa da crença errônea de que, se os governos se mostrassem ‘'duros'’ contra a imigração e o Islã, eles estariam minando, não reforçando, as credenciais da Frente Nacional para fazer o mesmo.

Esse círculo vicioso prendeu todos os partidos ‘progressistas’ numa lógica que só pode favorecer a Frente Nacional direitista. Ao dar-se os braços à FN para defenderem juntos a “tradição republicana”, os grandes partidos contribuíram para o encolhimento de um conjunto de ideias que, antes, foram ponto de referência, mesmo que nem sempre imaculada, para os antirracismo e antirracistas, num reflexo defensivo e desencantado.

Será preciso que esses partidos deem vários passos importantes, para que consigam encontrar meios para não se deixarem ver como se fossem oposição ao –e já nem se fala de voltarem a ser capazes de defender o – multiculturalismo.

Terceiro, essa deriva alarmante foi deixada livre para acelerar muito, porque não havia qualquer movimento antirracismo e antirracistas capaz de garantir oposição unida e consistente à Frente Nacional e às acomodações com a direita.

Aqui, a filiação à tradição republicana gerou um ponto-cego, que impede que os ‘'progressistas'’ defendam uma minoria vitimizada: em momentos cruciais, decisivos, essa tarefa básica nas lutas antirracismo e antirracistas ficou subordinada à defesa dos tais “valores republicanos”. Isso jogou sobre os muçulmanos o ‘'dever'’ de se integrarem... ao mesmo tempo em que todas as instituições republicanas e todas as vias que poderiam encontrar para a integração – a escola, os locais de trabalho, os espaços públicos – lhes foram vedados ou os rejeitaram. Na sequência, os mesmos ‘'progressistas'’ passaram a culpar pelo fracasso ‘'dos muçulmanos'’ aquelas mesma vidas e comportamentos já estigmatizados.

Conclusão

Esse processo desenrolou-se ao mesmo tempo em que se viam vastos eventos internacionais. O “caso do véu” emergiu pela primeira vez em 1989, logo depois do “caso Rushdie”, quando o Aiatolá Khomeini lançou uma fatwa contra Salman Rushdie e todos os envolvidos na publicação de seus Satanic Verses.

Salman Rushdie
Assim também, o aumento no número de atos islamofóbicos e correspondente retórica depois do 11/9 ofereceu o contexto e uma justificativa para os que viam o Islã como ameaça a alguma “identidade francesa” e já estavam com dificuldades para lidar com os efeitos desorientadores da descolonização e da globalização.

Desemprego estrutural, nenhuma mobilidade social e crescentes tensões nas áreas urbanas mais pobres e desassistidas também contribuíram para essa atmosfera de crise permanente e declínio nacional na França.

A emergência de um partido racista autoritário, sob o formato da Frente Nacional e como figura na paisagem política, e o despertar de lembranças reprimidas do regime de Vichy, reforçaram, esses dois eventos, o sentimento de decadência e contribuíram para que a população muçulmana da França fosse identificada como causa de tudo.

As ações discriminatórias e para dividir, dos prefeitos que a Frente Nacional elegeu nas eleições locais de 2014 são apenas pequena amostra do tipo de comunitarianismo estreito, raso, racista, que o partido quer impor nacionalmente.

Concessões às políticas da Frente Nacional e, cada vez mais, tentativas para fazer mais do mesmo que faz e quer a FN, já comprovaram que só favorecem o desenvolvimento de uma organização que é ameaça incomensuravelmente maior e mais grave contra a coesão nacional na França, que algum fundamentalismo islamista, que continua a ser fenômeno limitado e marginal.

“Endurecer” contra muçulmanos ou imigrantes, porque há mitos que repetem que eles seriam responsáveis pelo desemprego, pelos crimes e pelo crescimento de tensões sociais só faz expor a impotência dos grandes partidos. Dado que nem muçulmanos nem os imigrantes são a causa da decadência da sociedade francesa, discriminá-los, expulsá-los ou matá-los não deterá a decadência.

A ideia de que o bode morto para finalidades de expiação realmente expie tudo é delírio e espiral sem fim. No fim, a frustração, quando não se resolverem os problemas que “deveriam” ser resolvidos com “endurecimentos” crescentes, só fará aumentar a atração que exercem partidos “marginais”, como a extrema direita e sua FN – sempre interessadas em propor uma violência a mais.

A evidência de que os muçulmanos estão sendo tomados como alvo está impedindo qualquer efetiva gestão da diversidade dentro da sociedade francesa. Está exacerbando tensões e obscurecendo qualquer solução viável que se possa tentar para superar os problemas sociais e econômicos fundamentais que assolam a França. Está encorajando o crescimento da FN. O único meio para escapar desse círculo vicioso é pôr no alvo e isolar totalmente a terrível ameaça que é a Frente Nacional.

A islamofobia é o maior obstáculo a impedir que se neutralize a Frente Nacional – e todas as diferentes máscaras sob as quais a FN aparece.

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