sábado, 16 de outubro de 2010

O anti-Foucault



Meu amigo Pedro Meira Monteiro, de Princeton University, um dos grandes intelectuais brasileiros da nova geração, acaba de escrever este texto como reação a uma palestra de Mario Vargas Llosa em sua universidade. Pedi permissão para publicá-lo aqui no Biscoito.
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O anti-Foucault
Uma das muitas virtudes do pensamento conservador é lembrar, aos que temos a veleidade de afirmar-nos imunes à cantilena da conservação, que o nosso discurso é sempre guiado por fantasmas. De fato, não há voz que se sustente sem espectros. Quando falamos, a potência muitas vezes inconfessável que nos move é aquela que trabalha por materializar, diante de nós mesmos e dos que nos ouvem ou leem, um fantasma.
Anteontem, em Princeton, Mario Vargas Llosa, recém-laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, proferiu uma palestra intitulada “Breve discurso sobre la cultura”. Em sua fala, o alvo era, sem nenhum pejo ou temor, a figura “sofística” de Michel Foucault.
Incomoda profundamente, a Vargas Llosa, que a figura da Autoridade tenha sido profanada pela geração de 68, a qual, iludida, teria feito tábula rasa da “cultura” (que ele cuidadosamente utiliza no singular). Até aí, nada de propriamente surpreendente, já que a postura conservadora do escritor peruano é bastante conhecida. O que me surpreendeu foi ver um módulo do pensamento conservador, que eu tive a oportunidade de estudar em detalhe em outro momento, reaparecer, quase intacto, diante dos meus olhos incrédulos.
Quando escrevi sobre o visconde de Cairu – um economista do início do século XIX no Brasil – , flagrei-lhe, em meio ao mais empedernido conservadorismo, algo que então considerei quase genial: a capacidade de apaixonar-se quando expende seus argumentos contra um alvo. A questão é menos simples do que parece: é que um conservador existe siderado pela necessidade de reagir à soltura dos instintos e dos corpos. (Por isso, em geral, o conservador é aquele que sabe, com razoável ou inquebrantável segurança, o que é a “barbárie”.) No caso de Cairu, a soltura dos corpos se revelava plenamente na loucura da massa torpe e ignara (a Revolução Francesa), e nos avanços subsequentes do “dragão corso” (Napoleão Bonaparte) pela Europa. Eis o paradoxo: o autor, que cautelosamente reage aos indivíduos que se deixam tomar pelas paixões, deixa-se ele mesmo tomar pela paixão do discurso, lançando-se aos mais incríveis golpes de efeito poético, comparando, por exemplo, as revoltas provinciais no Brasil imperial a uma “explosão” de vontades mal concertadas, mais perdidas e enfurecidas que “os átomos de Epicuro” soltos no espaço. O velho ranzinza (o frei Caneca chamava-lhe “rabugento sabujo”) deixava-se tomar pelas mesmas paixões que pretendia controlar, e era pela soltura de sua imaginação, e de seus demônios, que vinham à página seus melhores momentos como escritor. O problema é que Cairu nunca foi um bom escritor.
Guardadas as diferenças e as proporções (Vargas Llosa é, naturalmente, um bom escritor), o autor peruano tem também o seu dragão, que não é corso, mas é ainda francês. Sua ira mal contida, derramada anteontem contra Foucault, chegou a momentos de incrível ousadia, como quando o espírito “sofístico” do filósofo de maio de 68 é lembrado em paralelo à degradação de seu corpo. É que Foucault, sendo o emblema mesmo da geração de 68, e herói-intelectual daquela aventura tresloucada, entregou-se também aos desvios do corpo e da alma. Foi com pasmo que ouvi Vargas Llosa evocar as famosas e já folclóricas excursões do filósofo francês pelas saunas e bares gay de San Francisco, até o ponto de que sua morte com AIDS (referida também na palestra) ficasse no ar, como uma espécie de justiça poética e maldita, que recai sobre aquele que tragicamente negou o aspecto dissoluto de sua vida moral.
Houve outros momentos de pasmo para mim, como quando sua ira se estendeu a toda uma tradição do pensamento crítico no pós-68, e quando, dos teóricos pós-estruturalistas (De Man, Derrida), ouvimos as piores coisas, pelo menos até que, num estranho golpe de misericórdia, se dissesse que o que tal pensamento produziu não é muitas vezes mais que uma inútil e aparatosa “masturbação” (sic).
Eu respeito o pensamento conservador, e respeito especialmente aqueles que, como Vargas Llosa, têm a coragem de defendê-lo e de, ao mesmo tempo, sustentar publicamente sua voz, cultivando, ademais, a forma do diálogo. Há, contudo, pelo menos um equívoco grande naquilo que disse ontem o ganhador do prêmio Nobel deste ano: em dado momento, ele reproduziu a já usada e cansada gracinha de que, diante de um texto de Derrida, nada ou pouco se compreende. Foi aí que pulei da cadeira, e vi meu próprio demônio diante de mim: não é verdade que ele nada tenha compreendido dos textos de Derrida! Que não compreendeu os textos em si, o seu “breve discurso” deixa claro. Mas ele compreendeu – e como conservador, compreendeu perfeitamente – que o gesto de desconfiança em relação ao sentido, que está no coração da aventura desconstrucionista, é o mais perigoso dos gestos, porque comporta a aposta no desejo e a possibilidade mesma do desvio. Mas desvio de quê? Rumo a quê? À cultura? Ou estamos todos perigosamente fugindo da cultura? Cultura de quem? Para quem?
Vargas Llosa não crê que, transviados, cheguemos à cultura. Por isso, o seu é um discurso de retenção, de contenção, e de recalque em relação aos poderes dissolventes do corpo, ou do Corpo.
É de fato uma enorme questão, que o “Breve discurso sobre la cultura” tem o mérito de trazer de novo à baila. Como acontece com quase todo conservador, o mais importante talvez não seja o que ele propõe, mas sim aquilo de que ele foge.
Pedro Meira Monteiro
Princeton, NJ, 13 de outubro de 2010.
enviado pelo pessoal da Vila Vudu