quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Carta: A atenção que a “grande” mídia nos EUA não deu aos “Documentos do Iraque” não deveria surpreender ninguém

26/10/2010, Romenesko Letters, John Parker, leitura indicada por Glenn Greenwald, pelo Twitter: RT @Will_Bunch - " Todos os jornalistas devem ler essa carta amarga de um ex-correspondente militar, sobre o silêncio da mídia sobre os documentos WikiLeaks-Iraque  e ggrenwald
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A triste nenhuma cobertura (“Infelizmente, os noticiários de televisão ignoram os arquivos WikiLeaks sobre o Iraque) sobre o vazamento por WikiLeaks de informação não censurada sobre eventos que devem ser de conhecimento público é incômoda e perturbadora, mas é exatamente o que sempre aconteceu, historicamente, na grande mídia comercial dos EUA.

Uma vastíssima maioria de carreiras de jornalistas que cobrem o Pentágono, quase rotineiramente acabam no mesmo beco sem saída: ao longo do tempo, todos acabam por ser cooptados por uma mistura de medo e catatonia – efeito de viver tão próximos do mais poderosamente ficcionalizado aparelho de violência da história da humanidade –, sob o fascínio das mentes militares mais altamente treinadas do mundo, agudíssimas, concentradíssimas, focadas só, só, no dever. Cada alto oficial sempre arrasta atrás de si os próprios assessores de imprensa e seletos periodistas. É vergonha para qualquer jornalista que trabalhe no Pentágono jamais ter sido escolhido para dar testemunho, em primeira mão, isento e equilibrado, da impecável competência de seus comandantes. Não se fala, lá, sobre nada disso. Como não se fala tampouco do patriotismo inato e inabalável dos jornalistas ‘de dentro’ e que já levou vários bons jornalistas a abandonar – justificadamente, segundo o próprio juízo deles – a obrigação profissional de tratar todas as fontes com as mesmas doses de respeito e desconfiança.

São muitos os repórteres militares (na internet, nas televisões, nos jornais) que simplesmente já trocaram o dever profissional de fiscalizar o poder, pela ilusão de que seriam parte do poder. Exemplo disso é Tom Gjelten.

Entrevistado por um colega da National Public Radio (NPR), dia 22/10, sobre os documentos vazados essa semana por WikiLeaks, o diálogo foi o seguinte (transcrito da entrevista):

Robert Siegel: E a reação sobre os documentos vazados?
Gjelten: Bem. É claro. O Pentágono está compreensivelmente furioso, como se enfureceram também quando os documentos do Afeganistão vazaram. Dizem que a decisão de divulgar aqueles documentos foi presunçosa, subversiva. Dizem – e concordo enfaticamente [negritos meus] com eles – que o período do Iraque coberto por esses documentos já foi fartamente noticiado. Dizem que os documentos nada esclarecem e não melhoram o conhecimento que já havia sobre aqueles eventos.

Aí está, preto no branco. Gjelten aluga a própria credibilidade de jornalista “neutro” ao Pentágono. Quem não creia no Pentágono, talvez creia no jornalista... Sou jornalista há décadas, tempo demais para não ver o que Gjelten fez. Ele foi furado. Então, ligou o modo “quem-tem-cu-tem-medo” [ing. CYA (Cover Your Ass (CYA) or Cover Your Own Ass (CYOA) mode] e a primeira coisa que disse aos seus comandantes-editores foi “É tudo notícia velha”.

Mas, depois de o New York Times e outras grandes redes de notícias terem cansado de comentar as revelações contidas nos documentos recém-vazados por WikiLeaks, Gjelten dedica-se a redigir briefings perfeitos, brilhantes, com notícias que rouba do trabalho de outros jornalistas, e que repete, sempre que o Pentágono tem de falar ‘ao vivo’.

Gjelten, outros jornalistas do Pentágono e a parte informada da opinião pública muito teriam a ganhar se assistissem ao documentário “O marketing do Pentágono[1], de 1971.

Naquele documentário vê-se como, no auge da Guerra do Vietnã, o Pentágono usou dinheiro dos contribuintes contra a boa fé dos mesmos contribuintes, num esforço de propaganda para seduzir corações e mentes a favor da ideia de guerra ilimitada. 40 anos depois, as técnicas de modelagem da opinião pública são muitíssimo mais sofisticadas. As empresas jornalísticas hoje já compram e vendem, como se fosse jornalismo, qualquer notícia de ontem, desde que aprovada pelos ‘comandantes’.

Atenciosamente,

John Parker 
(Ex-correspondente militar, professor do Centro Knight de Estudos de Jornalismo Especializado - Cobertura de Atividades Militares, da University of Maryland) 

[1] Ver também  sobre o documentário The Selling of the Pentagon, 1971, CBS, 23/2/1971