29/11/2010, Bernard Porter, London Review of Books, vol. 32, n. 23 –
Two Cheers for Wikileaks
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
(Fabrice Coffrini / AFP)
Bem, grande coisa não há. Mas, até aqui, só nos serviram pequenas fatias saborosas selecionadas pelos editores dos jornais premiados com uma prévia da coisa toda: selecionados por critérios dos jornais (em geral, os temas que renderiam as melhores manchetes, por país); e aparentemente pesadamente "editados" pelos jornalistas. O que ainda esteja por vir, não sabemos. (Tentei entrar diretamente na página de WikiLeaks, mas não consegui. Meu computador estará envelhecendo? Tráfego congestionado na internet? Alguma espécie de bloqueio? [1]) Mas é pouco provável que se encontrem lá coisas realmente perigosas, tipo ‘top secret’, que provavelmente é material mais bem protegido.
O que mais se encontra nos WikiVazamentos, a julgar pelo que vi, são fofocas, e praticamente nenhuma novidade. As fofocas são evidentemente embaraçosas e poucos dizem sobre os assuntos ‘fofocados’: o que nos importa que o coronel Gaddafi ande pelo mundo com uma “voluptuosa enfermeira ucraniana”?! Será verdade? Será mentira?
Por outro lado, as fofocas dizem muito sobre o modo de pensar dos fofoqueiros; sobretudo quando se tem a oportunidade de examinar uma grande amostra de material redigido, por exemplo, pelos embaixadores dos EUA em Londres.
Descobri esse filão quando pesquisava as cartas privadas trocadas entre o Foreign Office e vários embaixadores britânicos nos anos 1850s: as cartas acompanhavam os telegramas oficiais, mas, diferentes dos telegramas, não eram reveladas ao Parlamento. O sistema de preconceitos que se inferia daquelas cartas tornava muito mais inteligíveis as políticas britânicas, do que os argumentos “oficiais” que acompanhavam, como “justificativas”, as propostas políticas.
Quanto a “já sabíamos disso”: sim, sim, muita gente sabia, mas muito do que já se sabia foi oficialmente desmentido no momento do evento, ou – o que é ainda pior – foi atribuída a alguma paranóia esquerdista ou sumariamente descartado como produto de alguma “teoria da conspiração”.
Em geral, são necessários no mínimo 30 anos para que historiadores afinal possam exibir provas de que a sempre tão demonizada esquerda afinal tinha mesmo razão numa ou duas de suas análises. (Ou, vez ou outra, é a direita. Por exemplo, a velha história do “ouro de Moscou” do velho Partido Comunista da Grã-Bretanha.) Mas quando afinal a verdade aparece já é tarde demais e ninguém se interessa por ela. E é assim que, depois de 30 anos, os safados conseguem escapar, outra vez
Revelações instantâneas, no calor da hora, dificultam ou, pelo menos, diminuem a probabilidade de que os safados escapem. E isso, me parece, justifica a divulgação, por WikiLeaks, dessa recente imensa quantidade de documentos semissecretos da diplomacia dos EUA.
Mas vejo alguns problemas. Primeiro, o problema da escala astronômica. Quem, afinal, conseguirá examinar tantos documentos e saber o que realmente documentam? Os historiadores só poderiam trabalhar com razoável segurança, se todo esse material tivesse aparecido, digamos, ao longo de trinta anos, ano após ano. E em todos os casos se aproximariam do material já com algumas ideias reunidas de outras fontes, e mesmo que provisórias, que lhes dariam um contexto histórico para os aspectos que mais lhes interessasse investigar. E trabalhariam com todo o conjunto dos dicta de cada embaixador dos EUA, por exemplo. Para isso, precisamente, inventaram-se as análises quantitativas.
Um segundo problema é o modo como essa informação é abordada pela imprensa e pelos leitores: todos à procura de ‘revelações’, de porções mais sexy, de alguma “denúncia”, todos trabalhando com programas de busca por palavras-chaves e por aí vai. Respostas instantâneas (espero que não aconteça no caso dessa minha resposta instantânea) estimulam esse tipo de reação.
O terceiro problema é que agora que toda aquela gente já sabe que suas opiniões e fofocas não são protegidas, de fato, por nenhum tipo de proteção confiável, e podem acabar publicadas em jornais, eles nunca mais escreverão tanto, nem tão descuidadamente. Assim, os historiadores do futuro não terão tanta informação da qual inferir os preconceitos que geram as atuais políticas quanto temos hoje – nesse que provavelmente foi o último jorro diluviano de material escrito para ser secreto, mas que acabou por chegar aos ouvidos do povo.
Nada disso deve ser lido como argumento contra revelar tudo o que foi revelado. Não gostaria de por meus interesses de historiador acima dos meus interesses de cidadão. Tenho-me divertido muito lendo o que fulano ou beltrano pensa de David Cameron ou de Nicolas Sarkozy ou de seja lá quem for, tanto quanto qualquer leitor de jornal não historiador.
Estou gostando de ver com que facilidade algumas revelações já lançam dúvidas sobre o velho mito das boas relações anglo-norte-americanas – e não me incomodará se a coisa toda ruir como castelo de cartas. Não me incomoda ver tantos políticos tão atrapalhados; e adoraria – embora sem qualquer esperança de que aconteça – que todos os políticos que hoje tanto nos envergonham fossem trocados por outros que nos envergonhassem menos.
De fato, encho-me de novas esperanças, ao ver que todos esses políticos e autoridades e embaixadores são tão ingênuos a ponto de entregar toda sua correspondência confidencial a um sistema tecnológico que pode ser facilmente violado por um hacker de 23 anos. Em certo sentido, vejo a coisa como deserção do sistema oficial de vigilância ao qual nós, cidadãos ordinários, estamos submetidos há anos [2]. Não me parece, pelo que vi até aqui, que alguma vida tenha ficado ameaçada por causa daquilo lá. Assim sendo, no geral, congratulo-me, com algumas reservas, com WikiLeaks, por ter feito o que fez.
E estamos ainda no começo. Será interessante ver o que mais aparecerá nas próximas semanas; e se o que aparecer fará alguma diferença. Se fizer, seja qual for, é possível que eu descarte parte da minha reserva.
[1] Entramos facilmente na página, a partir de Cablegate – WikiLeaks todas as vezes que foi preciso conferir alguma citação. À direita, na página inicial, há um box intitulado “Traduções”. Lê-se ali que, nos arquivos já liberados, há 2.855 telegramas enviados do Brasil; 1.947 da embaixada em Brasília (54 secretos; 409 confidenciais); 12 do Consulado do Recife; 119 do Consulado do Rio de Janeiro; 777 do Consulado de São Paulo. Classificados por ano: 1989 – 1; 2002 – 1; 2003 – 45; 2004 – 196; 2005 – 306; 2006 – 391; 2007 – 321; 2008 – 279; 2009 – 348; 2010 – 59.
Ao final dessa página, há um endereço para contatos: e uma nota: “Contato somente para veículos com público superior a 500 mil” [NTs].
Ao final dessa página, há um endereço para contatos: e uma nota: “Contato somente para veículos com público superior a 500 mil” [NTs].
[2] Ver “Thank God for Traitors” [Graças a Deus, há traidores!], Bernard Porter, 18/11/2010, LRB, vol. 32, n. 22, pp. 20-22, em , resenha do livro de Richard Aldrich GCHQ: Government Communications Headquarters. The Uncensored Story of Britain ’s Most Secret Intelligence Agency (ed. Harper, 2010). Nessa resenha, lê-se: “GCHQ reúne segredos de inteligência, mas eletronicamente, sem usar espiões: “sigint” em vez de “humint”. (E também há “comint”, “elint”, “comsec”, “sinews” e “sigmod”). Foi o último dos três serviços secretos britânicos (de que temos notícia) a ser criado e é o mais secreto de todos.”
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