quarta-feira, 2 de maio de 2012

“IV. Os intelectuais e o poder”


2/3/1972, Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze [1]
Extraído do Blog Línea de Fuego 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Michel Foucault
Michel Foucault: Um maoísta [2] disse-me, dia desses: “Entendo bem por que Sartre está conosco, por que faz política e em que sentido faz política. Respeito você e, afinal, compreendo um pouco. Você sempre falou do problema da prisão. Mas Deleuze... Desse, não entendo nada”. Essa ideia surpreendeu-me muito, porque [o que você diz] parece-me sempre muito claro.

Gilles Deleuze: A explicação é, possivelmente, que vivemos hoje de outro modo as relações entre teoria e prática. Antes, se concebia a prática como uma aplicação da teoria, como uma consequência, e também, ao contrário, como se a prática devesse inspirar a teoria; como se a própria prática fosse criadora de uma forma futura de teoria. Mas sempre se concebiam as relações entre teoria e prática sob a forma de um processo de totalização, da prática para a teoria ou da teoria para a prática.

Gilles Deleuze
Para nós, contudo, a questão põe-se de outro modo. As relações entre teoria e prática são muito mais parciais e fragmentadas. Por um lado, porque a teoria sempre é local, relativa a um campo pequeno; e pode ser aplicada em outro domínio, mais ou menos distante. A relação de aplicação nunca é relação de semelhança.

Por outro lado, a partir do momento em que a teoria se incrusta em seu próprio domínio, ela passa a enfrentar obstáculos, barreiras, choques, que obrigam que a teoria seja proposta mediante outro tipo de discurso. Esse outro tipo de discurso é que, eventualmente, faz a teoria passar para um domínio diferente.

A prática é um conjunto de conexões entre um ponto teórico e outro. E a teoria é um movimento que abarca duas ou mais práticas. 

Nenhuma teoria pode desenvolver-se, se não encontrar uma espécie de muro, de resistência; e precisa-se da prática para perfurar esse muro.

Você, por exemplo: você começou por analisar teoricamente um modo de emprisionamento – o manicômio, no século 19, na sociedade capitalista. Depois, desembocou na necessidade de que as pessoas aprisionadas falassem por conta própria, que operassem uma conexão (ou, ao contrário, você é que estava em conexão com elas), e essas pessoas estão nas prisões. Quando você organizou o grupo de estudo sobre as prisões, foi sobre essa base: instaurar condições pelas quais os prisioneiros pudessem, eles mesmos, falar.

Seria completamente falso dizer, como parecem dizer os maoístas, que você estaria passando à prática, pela aplicação de suas teorias. No seu trabalho, não havia nem aplicação, nem projeto de reforma, nem investigação no sentido tradicional. Havia algo muito diferente: havia um sistema de conexão num conjunto, numa multiplicidade de peças e pedaços que eram, ao mesmo tempo, teóricos e práticos.

Para nós, o intelectual teórico deixou de ser um sujeito, uma consciência representante ou representativa. Os que agem e os que lutam já não são representados nem por partidos nem por sindicatos que se autoatribuam o direito de ser a consciência dos que lutam. Quem fala e quem luta? É sempre uma multidão, inclusive dentro da pessoa que luta e da pessoa que fala. Todos somos pequenos grupos. A representação já não existe. Só há a ação, ação de teoria, ação de prática, em relações de conexão ou de redes.

MF: Parece-me que, tradicionalmente, o intelectual politiza-se a partir de duas coisas: (i) de sua posição de intelectual na sociedade burguesa, no sistema de produção capitalista, na ideologia que a sociedade capitalista produz ou impõe (ser explorado, reduzido à miséria, rejeitado, ser “maldito”, acusado de subversivo, de imoral etc.); e (ii) o próprio discurso do intelectual, que revela alguma verdade, que descobre relações políticas onde, antes, nada se via.

Essas duas formas de politização não eram estranhas uma à outra, mas também não coincidiam necessariamente. Havia o tipo “intelectual maldito” e o “socialista”. Essas duas politizações muito facilmente se confundiram em alguns momentos em que o poder reagiu violentamente – depois de [18]48, depois da Comuna, depois de 1940.

O intelectual foi rechaçado, perseguido, no preciso instante em que “as coisas” estariam aparecendo “de verdade”; no momento em que não seria preciso que alguém dissesse que o rei estava nu. O intelectual, nesses momentos, estaria dizendo a verdade a gente que ainda não estaria vendo a verdade; e o intelectual falaria em nome dos que não podiam dizer a verdade: seriam a consciência e a eloquência.

Ora, depois da recente avalanche os intelectuais descobriram que as massas não precisam deles para saber; que as massas sabem claramente, precisamente, muito melhor que os intelectuais. E que sabem afirmar extremamente bem o que sabem. Mas há um sistema de poder que proíbe, que impõe obstáculos, que invalida esse saber e esse discurso. É poder que não está só nas instâncias superiores da censura, mas que também se funde mais profundamente, mas sutilmente, em toda a malha social. Os próprios intelectuais são parte desse sistema de poder. A ideia de que os intelectuais seriam os agentes “da consciência” e do discurso está incluída nesse sistema de poder.

O papel do intelectual não é situar-se “um pouco à frente” ou “um pouco à margem”, para daí dizer a verdade de todos, verdade a qual, sem os intelectuais, permaneceria muda.

Trata-se, sobretudo, de lutar contra as formas de poder em todos os pontos nos quais o poder é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do “saber”, da “verdade”, da “consciência” e do “discurso”.

Nesse sentido, a teoria não expressa, não traduz nem é aplicação de uma prática: a teoria é uma prática. Mas é prática local e regional, como você diz, não é prática totalizadora. Luta-se contra o poder, luta-se para fazê-lo aparecer e golpeá-lo nos pontos em que o poder é mais invisível e insidioso.

Não se luta por alguma “tomada de consciência” – já faz muito tempo que as massas tomaram consciência, como saber; e também já faz muito tempo que a burguesia tomou, ocupou, a consciência, como sujeito. Luta-se, isso sim, para nos infiltrarmos no poder e tomar o poder, ao lado de todos os que lutam também por isso. Ao lado. Não afastados, a uma distância da qual os intelectuais iluminariam as massas. Cada sistema regional dessa luta é “uma teoria”.

GD: É. Cada teoria é precisamente uma caixa de ferramentas. Não há qualquer relação entre a teoria e seu significante. A teoria tem de servir, de funcionar. Tem de haver pessoas que se sirvam da teoria, a começar pelo próprio teórico, que deixa de ser teórico, e que, se não deixar de ser teórico, não vale nada (ou o momento ainda não chegou). Mas não se volta para teorias passadas: fazem-se outras. Há outras teorias por fazer.

Curioso é que o autor que mais passa por puro intelectual tenha sido quem disse isso com mais clareza: Proust [3]. Tratem meu livro como um par de lentes [4] dirigidas para fora; e, bem, se não servirem, troque as lentes, encontrem vocês mesmos, cada um, suas lentes próprias, o próprio aparelho, que será necessariamente aparelho de combate.

A teoria não pode ser totalizada; ela multiplica e multiplica-se. Quem, pela própria natureza, opera totalizações é o poder. Você diz exatamente: a teoria está, por natureza, contra o poder. Desde que uma teoria incrusta-se num ou noutro ponto, passa a enfrentar o risco de não ter qualquer consequência prática possível, de não provocar explosão alguma, sequer em algum outro ponto.

Por isso a noção de reforma tem, de estúpida, o que tem de hipócrita. Ou a reforma é feita por gente que se apresenta como representativa, gente que faz profissão do tomar a palavra de outros, do falar em nome de outros; nesse caso, a reforma não passa de remodelagem do poder, distribuição do poder, que sempre se faz acompanhar de repressão violenta; ou é reforma reclamada, exigida, por gente interessada em ser reformada e, nesse caso, a reforma deixa de ser reforma, é ação revolucionária que, do fundo de seu caráter parcial, está determinada a alterar a totalidade do poder e da hierarquia do poder.

É bem claro no caso das prisões: a mais mínima, a mais modesta, a mais minúscula reivindicação dos prisioneiros já basta para esvaziar qualquer pseudo reforma. Se as crianças numa escola maternal conseguem que se ouçam suas reivindicações, ou, pelo menos, que suas perguntas sejam consideradas, já basta para que se produza uma explosão no conjunto do sistema de ensino. De fato, o sistema no qual vivemos não pode suportar nenhuma pressão. Por isso é radicalmente frágil em todos os pontos. E por isso também, acumulou tal força de repressão global.

Em minha opinião, você foi o primeiro a nos ensinar algo de fundamental, tanto nos livros como num território prático: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer: a representação é cômica, é de rir. Já se disse que a representação estaria acabada. Mas não se extraíram todas as consequências dessa reconversão ‘teórica’ – quero dizer: que a teoria exige que os envolvidos falem, doravante, pode-se dizer, praticamente por conta deles mesmos

MF: E quando os prisioneiros puseram-se a falar, viu-se que tinham uma teoria da prisão, da pena, da justiça. Essa espécie de discurso contra o poder, esse contradiscurso mantido pelos prisioneiros e por todos que se considera como delinquentes, é, na realidade, o que importa, não alguma teoria sobre a delinquência. O problema da prisão é problema local e marginal; por ano, não passam mais de 100 mil pessoas pelas prisões; na França, atualmente [1972], há talvez 300 ou 400 mil pessoas que passaram pela prisão. Mesmo assim, esse problema marginal sacode todo mundo. Surpreendeu-me muito ver que tanta gente não prisioneira se interessava pelo problema das prisões. Surpreendeu-me que tanta gente que não estava predestinada a ouvir esse discurso dos prisioneiros o tenha afinal ouvido. Como explicar isso?

Talvez, porque, de modo geral, o sistema penal é a forma pela qual o poder se mostra como poder, de forma mais claramente manifesta? Meter alguém numa cela, fechá-lo, privá-lo de comida, de calefação, impedir alguém de sair, de fazer amor etc., essa é a mais delirante manifestação de poder que se poderia imaginar.

Outro dia, conversei com uma mulher que esteve presa, e ela dizia: “E pensar que me meteram na cadeia, a pão e água, eu, que tenho 40 anos...” O que me chama a atenção nessa história não é só a puerilidade do exercício do poder, mas também o cinismo com que o poder exerce-se como poder. Não há forma mais arcaica, mais pueril, mais infantil. Por alguém de castigo, a pão e água, é lição que se ensina a criança. A prisão é o único lugar em que o poder manifesta-se a nu, em suas dimensões mais excessivas, e nde se justifica como poder moral. “Tenho razão para castigar, porque todos sabem que não se deve roubar, matar...”.

O mais fascinante nas prisões é que ali, só ali, o poder não se esconde, não se mascara: mostra-se plenamente como tirania imposta, até nos mais ínfimos detalhes, poder cínico e, ao mesmo tempo, puro, completamente ‘justificado’, já que pode ser completamente formulado no interior de uma moral que mascara o próprio exercício. A tirania selvagem do poder aparece ali como serena dominação do Bem sobre o Mal, da ordem sobre a desordem.

GD: E o inverso também é verdade. Não só os prisioneiros são tratados como crianças: as crianças também são tratadas como prisioneiros. As crianças padecem uma infantilidade que não é a deles. Nesse sentido, pode-se dizer que as escolas são prisões, que as fábricas são prisões. Basta ver a entrada na [fábrica] Renault. Ou em outros locais: três pausas por dia, para fazer xixi. 

Você encontrou um texto de Jeremias Bentham no século 18 que propõe, precisamente, uma reforma das prisões. Em nome dessa reforma, estabelece um sistema circular pelo qual, ao mesmo tempo, a prisão renovada passaria a servir de modelo, para que, sem qualquer dificuldade ou salto, se passe, da prisão para a escola e para a fábrica, e da fábrica para a prisão. Aí está a essência do reformismo, da representação reformada.

E é diferente, quando as pessoas não contrapõem uma representatividade ‘nova’ e falsa, à falsa representatividade velha do poder. Por exemplo, lembro que você disse que não há justiça popular contra a justiça, que a coisa acontece noutro nível.

MF: Penso que, se se considera o ódio que o povo tem da justiça, de juízes, de tribunais, das prisões, não é aconselhável considerar só a ideia de outra justiça, melhor, mais justa. Entendo que se deva, em primeiro lugar e sobretudo, perceber o ponto singular no qual o poder exerce-se às expensas do povo. A luta antijudicial é luta contra o poder. Não me parece que seja luta contra as injustiças, contra as injustiças da justiça, e por um melhor funcionamento da instituição judicial. Mesmo assim, é surpreendente que sempre que houve motins, revoltas e sedições, o alvo tenha sido o aparelho judicial, ao mesmo tempo e pelas mesmas causas que o aparelho de fiscalização, o exército e as demais formas de poder.

Minha hipótese, mas é só uma hipótese, é que os tribunais populares – por exemplo, no momento da Revolução – sempre foram um modo, usado pela pequena burguesia aliada às massas, para esvaziar, para enfraquecer a luta contra a justiça. Para esvaziar a luta contra a justiça e reforçar a justiça, propuseram esse tipo de tribunal dito revolucionário, onde se faria justiça justa, com juiz justo, que ditaria sentenças justas. Assim se salvam os tribunais, os juízes, a justiça e as sentenças.  

Mas a própria forma de tribunal para fazer justiça, que é parte de uma ideologia burguesa de justiça (burguesa), essa, escapa ilesa.

GD: Se se considera a situação atual, o poder tem, necessariamente, uma visão total, global. Quero dizer que todas as atuais formas de representação, que são muitas, podem, do ponto de vista do poder, serem facilmente somadas numa só, podem ser facilmente totalizadas: a repressão racista contra os imigrados, a repressão nas fábricas, a repressão na escola e no ensino, a repressão contra os jovens em geral. Não se deve só procurar ver a unidade de todas essas formas só na reação ao maio-68; deve-se procurar vê-la, mais, numa preparação e numa organização concertadas de nosso futuro próximo.

O capitalismo francês precisa muito de uma “reserva de desemprego” e abandona a máscara liberal e paternalista do pleno emprego. Desse ponto de vista, eles encontram sua unidade: limitam a imigração, depois que ouviram dizer que os emigrados estavam sendo encarregados dos trabalhos mais duros e ingratos; limitam a repressão nas fábricas, no instante em que se tratou de devolver ao francês “o gosto” por um trabalho cada vez mais duro. A luta contra os jovens e a repressão na escola e no ensino, já que a repressão policial é tanto mais viva quanto menos o mercado de trabalho precise de jovens. Todas as categorias profissionais virão a ser convidadas para exercer funções cada vez mais claras de polícia: os professores, os psiquiatras, o pessoal da educação em geral, etc..

Vê-se aqui algo que você anuncia há tempo e que se supunha que não aconteceria: o reforço de todas as estruturas do encarceramento, da reclusão. Então, frente a essa política global do poder, surgem respostas locais, respostas corta-fogo, defesas ativas e, às vezes, preventivas.

Não nos interessa totalizar o que o poder já totaliza, e que só poderemos totalizar se restaurarmos formas representativas de centralismo e de hierarquia.

O que se pode fazer, isso sim, é instaurar conexões laterais, horizontais, um sistema de redes, de base popular, justamente o que é mais difícil. Seja como for, a realidade, para nós, absolutamente não passa pela política no sentido tradicional de competição e de distribuição de poder, das instâncias chamadas representativas, para o Partido Comunista ou a Confederação Geral do Trabalho.

“Realidade” é o que efetivamente se vê hoje na fábrica, na escola, no quartel, na prisão, numa delegacia. Por isso, a ação implica um tipo de informação que é, por natureza, muito diferente da informação que nos chega pelos jornais (ou pela Agência de Notícias do jornal Liberation).

MF: Essa dificuldade, a dificuldade que temos para encontrar as formas adequadas de luta, não é resultado de nós ainda ignorarmos, até hoje, o que seja o poder? Foi preciso chegar ao século 19 para aprender que o poder era a exploração, mas ainda não se sabe e talvez jamais consigamos saber o que é o poder. Marx e Freud talvez não bastem para nos ajudar a conhecer essa coisa enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte, e que se chama “poder”. A teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado não esgotam, é claro, o campo do exercício e do funcionamento do poder.

A grande incógnita atualmente é: “quem exerce o poder, e de que lugar o exerce?”

Já se conhece na prática quem explora, para onde vai o lucro, por quais mãos passa e onde é investido. Mas sobre o poder... Sabe-se que o poder não pertence aos governantes. A noção de “classe dirigente” não é clara nem foi satisfatoriamente elaborada. “Dominar”, “dirigir”, “governar”, “grupo no poder”, “aparelho de Estado” etc. – todas essas noções têm de ser analisadas. E seria preciso sabem bem até onde se exerce o poder, por quais conexões e até quais mínimas instâncias, quase sempre, instâncias de hierarquia, de controle, de vigilância, de proibições, de sujeições. Em todos os pontos onde haja poder, o poder é exercido. Dito com mais rigor, ninguém é titular do poder; mas, mesmo assim, o poder é sempre exercido numa determinada direção, com uns de um lado e os outros de outro. Nunca se sabe quem exatamente tem o poder; mas sempre se sabe quem não tem o poder.

Se a leitura de seus escritos (desde Nietzsche e a filosofia [1972] [5]) até o que pressinto de Anti-Édipo.Capitalismo y esquizofrenia [6]) foi tão essencial para mim, é porque que eles fazem muito mais que apenas propor o problema do poder, afinal, sob o velho tema do sentido, do significado, do significante etc.; a desigualdade dos poderes, de suas lutas.

Cada luta desenrola-se em torno de um específico centro de poder (de um desses inúmeros pequenos focos, desde o chefete, o vigilante de casas populares, o diretor de uma prisão, um juiz, um diretor de sindicato, até o redator-chefe de um veículo da imprensa-empresa).

E, se indicar os núcleos, apontá-los, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, isso não acontece porque as pessoas não tenham consciência, mas, sim, porque falar desse tema, forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez o quê, indicar um alvo, já é uma primeira inversão do poder, já é um primeiro passo na direção e em função de outras lutas contra o poder.

Se discursos dos encarcerados ou dos médicos que trabalham nas prisões são lutas, é porque esses discursos confiscam, pelo menos por um momento, o poder de falar das prisões – um poder que, hoje, é exclusivamente ocupado pela administração das prisões e por seus compadres “reformadores”.

O discurso de luta não faz oposição ao inconsciente: ele só se opõe ao secreto. Por isso, dá a impressão de ser menos importante. Mas e se, por isso, for muito mais importante?

Há toda uma série de equívocos sobre o “oculto”, o “reprimido”, o “não dito”, e esses equívocos permitem que se faça uma “psicanálise” de baixo preço do que deve(ria) ser objeto de luta. Provavelmente, é mais fácil “vazar” o secreto, o sigiloso, do que deixar à vista o inconsciente.

Até há pouco tempo, os dois temas que mais apareciam eram: “a escritura é o reprimido” e “a escritura é, de pleno direito, subversiva”. E os dois, me parece, mostram algumas operações que se deve denunciar com severidade.

GD: Quanto ao problema que você coloca – vê-se bem quem explora, quem se aproveita, quem governa, mas o poder é algo ainda mais difuso – ofereço a seguinte hipótese: o marxismo também, e sobretudo, determinou o problema em termos de interesse (o poder está em mãos de uma classe dominante definida por seus interesses). Mas, de repente, se tropeça numa pergunta: Como é possível que gente sem qualquer interesse preciso de assumir o poder, siga o poder, case-se tão completamente com o poder e passe a reclamar para si parte do ganho?

É possível que, em termos de investimentos, sejam econômicos sejam inconscientes, o interesse não tenha a última palavra... Há investimentos de desejo que explicam a necessidade de desejar, não contra o próprio interesse, já que o interesse sempre continua e aparece onde o desejo o ponha, mas desejar de forma mais profunda e difusa do que o simples interesse. É preciso preparar-se para ouvir o grito de Reich: não, não, as massas não foram enganadas; num determinado momento, as massas desejaram o fascismo!

Há investimentos de desejo que modelam o poder e o difundem, e fazem o poder estar tanto no plano policial como no plano do primeiro-ministro; e apagam qualquer diferença de natureza entre o poder de um simples policial e o poder de um primeiro-ministro. A natureza desses investimentos de desejo sobre um corpo social explica por que os partidos e os sindicatos – que, em nome dos interesses de toda a classe, teriam ou deveriam fazer investimentos sempre revolucionários – fazem muitas vezes, no plano do desejo, investimentos reformistas ou perfeitamente reacionários.

MF: Como você diz, as relações entre desejo, poder e interesse são mais complexas do que se pensa. Resulta que os que exercem o podem não precisam ter, necessariamente, qualquer interesse em exercê-lo; os que têm interesse em exercer o poder não o exercem; e o desejo de poder joga, entre o poder e o interesse, um jogo muito especial.

Acontece que as massas, no momento do fascismo, desejam que alguns exerçam o poder; alguns que, contudo, não se confundem com as próprias massas, porque o poder será exercido sobre as massas e à custa das massas, até a morte, o sacrifício, o massacre. Mas as massas, mesmo assim, desejam aquele poder, querem que aquele poder seja exercido. Ainda conhecemos mal esse jogo de desejo, poder e interesses. E melhor conhecimento desse jogo teria sido muito útil para saber o que é a exploração. O desejo foi e é assunto muito amplo. É possível que as lutas que se travam hoje, e, além delas, também essas teorias locais, regionais, descontínuas que se vão elaborando nas lutas e ganham corpo com as próprias lutas, é possível que tudo isso seja o começo de um descobrimento de como exerce-se o poder.

GD: Muito bem. Eu volto à questão: o movimento revolucionário atual tem muitos focos, e não por debilidade ou insuficiência do movimento, já que as totalizações são projetos e realizações do poder e da reação. Por exemplo, o Vietnã é uma formidável resposta local.

Mas como conceber as redes, as conexões transversais entre esses vários pontos ativos descontínuos, de um país a outro e no interior de um mesmo país?

MF: Acho que essa descontinuidade geográfica de que você fala pode significar o seguinte: desde o momento em que se lute contra a exploração, é o proletariado quem, não só conduz a luta, mas quem também define os alvos, os métodos, os lugares e os instrumentos de luta. Aliar-se ao proletariado é unir-se nas posições dos proletários, sua ideologia, retomar os motivos de sua luta. É fundir-se.

Mas se se luta contra o poder, todos aqueles sobre os quais o poder é exercido como abuso, todos os que veem o poder como intolerável, podem comprometer-se com a luta no ponto em que estão, no local onde vivam, a partir de sua atividade (ou inação) específica. Comprometendo-se nessa luta que é deles, cujo alvo conhecem perfeitamente, e luta da qual eles podem definir o método, então, entram no processo revolucionário.

Como aliados dos proletários, sim, pois, se o poder exerce-se como tal, exerce-se, com certeza, para manter a exploração capitalista. Servem realmente à causa da revolução proletária, lutando, precisamente, nos pontos nos quais a opressão abate-se sobre eles. As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os enfermeiros nos hospitais, os homossexuais abriram hoje uma luta específica contra a forma privada de poder, de imposição, de controle que se exerce sobre eles.

Todas essas lutas são parte, atualmente, do movimento revolucionário, nos casos em que sejam radicais, sem concessões nem reformismos, sem tentativas para modelar o poder de sempre, para conseguir, no máximo, uma troca de titular.

E esses movimentos estão unidos ao movimento revolucionário do proletariado, na medida em que o proletariado haverá de combater contra todos os controles e imposições que reproduzem, em todos os cantos e pontos, sempre o mesmo poder.

Isso significa que a generalização e a generalidade da luta não se fazem mediante alguma totalização teórica, sob a forma de alguma “verdade”. Quem generaliza a luta é o próprio sistema de poder, todas as formas de exercício e de aplicação do poder.

GD: Não é possível tocar num ponto, seja qual for, sem que, a partir dali, já estejamos enfrentando todo esse conjunto difuso de poder que se quer tentar reverter, a partir das mais mínimas reivindicações. Por isso, todas e quaisquer defesas ou ataques revolucionários parciais, unem-se e integram-se na luta operária.



Notas dos tradutores

[1] Em espanhol em “Los intelectuales y el poder. Entrevista Michel Foucault-Gilles Deleuze”, in FOUCAULT, Michel, Microfísica del poder, ed. e trad. Julia Varela y Fernando Alvarez-Uría, Madrid: La Piqueta, 1992, 3ª, pp. 83-93; reproduzido 30/4/2012, no Blog Linea de Fuego . Aqui, traduzido do espanhol, cotejado com o original em francês pelo pessoal da Vila Vudu, para presentear alguns amigos. Há outra tradução para o português 

[2] É uma espécie de intelectual francês que, em Paris, nos anos 60s, era chamado de “maoísta”. Mao jamais teve coisa alguma a ver com aqueles caras. A discussão chegou ao Brasil ainda mais contaminada por outros zilhões de “leituras” intermediárias nem sempre explicitadas com clareza e com as quais, tampouco, Mao teve, algum dia, alguma coisa a ver. Em 1967, Goddard fez um filme sobre aqueles “maoístas à francesa” [na França: La Chinoise; no Brasil: “A Chinesa”; em Portugal: “O Maoísta”].
O maoísmo, fantasiado dessa vez de chinesa sexy-misteriosa-fetiche de intelectuais ocidentais e vítima de pressuposta perseguição pressuposta desumana, por defender pressupostos direitos pressupostos humanos (como, hoje, o tal “dissidente chinês cego”) também aparece, também falsificado, em Les invasions barbares (dir. Denys Arcand, 2003, “As Invasões Bárbaras”).

Mao, como se sabe, sempre ensinou que “só a luta ensina”. Essa lição foi interpretada em vários círculos como “pôr a prática à frente da teoria” ou, como Deleuze diz aí: “passar da prática à teoria”. Nada mais distante da cabeça de Mao, que essa leitura. Mao sempre disse que só a luta ensina a lutar. Jamais lhe passou pela cabeça que só alguma luta ensinaria alguma teoria, mesmo que fosse teoria da luta.
No máximo, admite-se que tenha dito que para conhecer uma maçã é preciso mordê-la. Mas conhecer não é, de modo algum, construir teoria completa e consistente, nem, mesmo, meia teoria, sobre (I) o conhecer; (II) a maçã; ou (III) o morder, quer dizer, a prática.

[3] Ver DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio C. Piquet e RobertoMachado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

[4] PROUST, Marcel, A busca do tempo perdido, vol. 7: O tempo recuperado. Retradução de Fernando Py. Mas a melhor tradução que jamais se fez em língua portuguesa, desse 7º volume da Recherche, é a de Lúcia Miguel Pereira, para a Ed. Livraria do Globo, Porto Alegre: PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Trad. de Mário Quintana, Lourdes de Souza Alencar, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Lúcia Miguel Pereira. Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo: Globo, 1956-1958. 7v.

[5] DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia, Rio de Janeiro: Ed. Rio, Coleção Semeion, 1976.

[6] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia, São Paulo: Editora 34, Trad. Luiz B. L. Orlandi, 2010, 1ª ed.

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