sábado, 23 de outubro de 2010

Weimar em Jerusalém

23/10/2010, Uri Avnery, Gush Shalom [Bloco da Paz], Weimar in Jerusalem 
Traduzido pelo coletivo da Vila Vudu
  

Em Berlim, acaba de ser inaugurada uma exposição intitulada “Hitler e os alemães”. Examinam-se os fatores pelos quais o povo alemão levou Adolf Hitler ao poder e o seguiu até o fim.

Estou ocupado demais com os problemas da democracia israelense para viajar a Berlim. É pena, porque essa questão, precisamente, me perturba desde criança. Como pôde acontecer que uma nação civilizada, que se via como “povo de poetas e filósofos”, tenha seguido aquele homem, como as crianças de Hamelin seguiram o flautista rumo à morte [1]?

O tema perturba-me não só como fenômeno histórico, mas porque é sinal de alerta que não se pode ignorar com vistas ao futuro. Se aconteceu aos alemães, pode acontecer a qualquer povo. Pode acontecer em Israel?

Aos nove anos, fui testemunha ocular do colapso da democracia alemã e da ascensão dos nazistas ao poder. Tenho na memória as imagens gravadas – as campanhas eleitorais todas iguais, os uniformes cada dia mais numerosos pelas ruas, as discussões à mesa, o professor que, pela primeira vez nos saudou, na sala de aula, com “Heil Hitler”. Registrei essas lembranças em livro que escrevi (em hebraico) durante o julgamento de Eichmann, e cujo último capítulo pergunta: “Pode acontecer em Israel?” Tenho voltado àqueles dias, agora, escrevendo minhas memórias.

Não sei se a exposição em Berlim responde essas perguntas. Talvez não. Mesmo hoje, 77 anos depois, ainda não há resposta definitiva para a pergunta “Por que a república alemã desmoronou?” Mas é questão absolutamente importante, porque, hoje, os cidadãos israelenses também se perguntam, com preocupação crescente: “A república israelense estará desmoronando, aí, ante nossos olhos?”

PELA PRIMEIRA VEZ, é pergunta feita a sério. Ao longo dos anos, os israelenses sempre foram muito cuidadosos e sempre evitaram usar a palavra “fascismo” em discursos públicos. A palavra desperta lembranças monstruosas demais. Agora, também esse tabu já foi quebrado.

Yitzhak Herzog, ministro do Bem-Estar Social do governo Netanyahu, do Partido Labor, neto do Grande Rabino e filho de um presidente, disse, há alguns dias, que “o fascismo já toca as margens da sociedade israelense”. Errou. O fascismo já ultrapassou as margens e já chega ao coração do governo ao qual Herzog serve, e ao Parlamento, do qual ele é membro.

Não passa – literalmente – um dia, sem que um grupo de deputados apresente novo projeto de lei, todas racistas. O país ainda está dividido pela aprovação da “Lei da Fidelidade”, que obriga os que requeiram a cidadania israelense a jurar fidelidade a “Israel, estado judeu e democrático”. Agora, o gabinete discute se a exigência aplica-se só a não-judeus (o que soa muito mal) ou se se aplica também aos judeus – detalhe que nada altera no conteúdo racista da lei.

Essa semana, apareceu novo projeto de lei. Se aprovada, fará com que só cidadãos israelenses possam trabalhar como guias turísticos em Jerusalém Leste. Não-cidadãos israelenses serão impedidos de trabalhar nessa função. “Não-cidadãos israelenses” significa, é claro, os árabes. É assim, porque, quando Jerusalém Leste foi ocupada e anexada, pela força, por Israel, depois da guerra de 1967, os árabes que viviam lá não receberam a cidadania israelense. Ficaram definidos como “residentes permanentes”, como se fossem recém-chegados; como se não fossem filhos de famílias que vivem há séculos em Jerusalém.

O novo projeto de lei visa a roubar aos árabes jerusalemitas o direito de trabalhar como guias turísticos nos locais sagrados da cidade deles. Isso, sob o argumento de esse tipo de trabalho facilita desvios da linha da propaganda israelense oficial. Chocante? Inacreditável? Não aos olhos dos autores desse projeto de lei, entre os quais há membros do Partido Kadima. A proposta foi assinada também por um membro do Partido Meretz, mas a assinatura foi retirada; o deputado alegou que assinara sem entender exatamente o objetivo do projeto.
 
Esse projeto de lei é mais um, depois de dúzias de projetos semelhantes, e antes que outros muitos, na mesma linha, cheguem ao Parlamento. Os deputados israelenses agitam-se como tubarões em frenesi alimentar. Competem entre eles, para ver quem aparece com projeto de lei mais racista.

É bom negócio! Cada vez que se começa a falar de um desses projetos de lei racistas, o deputado-autor passa a ser convidado para todos os programas de entrevistas na TV, para “explicar” o projeto. Os jornais publicam fotos e manchetes. Quanto mais obscuro e desconhecido o deputado, maior a tentação de ganhar tratamento de celebridade. E a imprensa colabora.

ESSE FENÔMENO não é restrito a Israel. Está acontecendo em toda a Europa e nos EUA. Os fascistas estão voltando a erguer a cabeça. Os portadores de ódio, que até agora haviam sido contidos, e seu veneno só alcançava as margens da sociedade e do sistema político, agora avançam e já se aproximam dos centros de decisão.

Há demagogos em praticamente todos os países. Constroem carreiras incitando os fracos e desamparados. Sempre pregam a expulsão “dos estrangeiros”, a perseguição das minorias. No passado, foi fácil não os eleger, descartá-los, como aconteceu a Hitler em começo de carreira. Hoje, é preciso vê-los como ameaça real.

Há poucos anos, o mundo chocou-se quando o partido de Jörg Haider [2] passou a integrar a coalizão de governo na Áustria. Haider elogiava e divulgava os sucessos de Hitler. O governo israelense, furioso, retirou de Viena seu embaixador. Hoje, o novo governo alemão depende do apoio de um racista declarado. E partidos fascistas vencem eleições com largas vantagens, em vários países. O movimento “Tea Party”, que floresce nos EUA, tem traços muito claramente fascistas. Um dos candidatos nas eleições de meio de mandato nos EUA apoiados pelo movimento costuma aparecer vestido num uniforme das Waffen-SS nazistas.[3]

Assim sendo, Israel está em boa companhia. Israel não é pior nem melhor que ninguém. Se eles podem... por que Israel não poderia?

MAS HÁ, SIM, uma grande diferença. Israel não vive situação semelhante à da Holanda ou da Suécia. Diferente desses países, a própria existência de Israel está hoje ameaçada pelo fascismo. O fascismo pode destruir o estado de Israel.

No passado, há anos, eu acreditava que dois milagres haviam acontecido em Israel: o renascimento da língua hebraica e a democracia israelense.

Em nenhum outro lugar ou momento da história aconteceu a “ressurreição” de uma língua “morta”. Theodor Herzl, fundador do sionismo, não acreditava que fosse possível. Uma vez, perguntou, irônico: “Quem algum dia comprará passagens de trem, em hebraico?” O sonho de Herzl sempre foi que se falasse alemão em Israel. Hoje, a língua hebraica funciona muito melhor que os trens, em Israel.

Mas a democracia israelense foi milagre ainda maior. Não foi democracia nascida do povo, como na Europa. O povo judeu jamais viveu em democracia. O judaísmo, como quase todas as religiões, é totalitário. Os imigrantes que vieram para Israel jamais haviam conhecido qualquer democracia. Vinham da Rússia czarista ou bolchevique, da Polônia autoritária de Josef Pilsudski, das tiranias no Marrocos e no Iraque. Só pequeníssima parcela deles vinha de países democráticos. E mesmo assim, desde os primeiros passos, Israel sempre foi estado democrático – com uma única restrição: a plena democracia israelense para os judeus sempre foi democracia limitada para os cidadãos árabes.

Sempre me angustiei, porque sabia que a democracia israelense, por causa dessa restrição, sempre foi democracia pendurada num fio muito frágil; e que tudo poderia desabar a qualquer hora, a qualquer momento. Hoje, Israel enfrenta desafio sem precedentes.  

A REPÚBLICA ALEMÃ ficou conhecida como República de Weimar, nome da cidade onde se reuniu a Assembleia Constituinte e proclamou-se a Constituição alemã, depois da I Guerra Mundial. Weimar, cidade de Bach e Goethe, considerada um dos berços da cultura alemã.

Foi constituição brilhantemente democrática. Sob suas asas, a Alemanha conheceu florescimento intelectual e artístico maior que jamais antes. Até que a república alemã desmoronou. Por que desmoronou?

Em termos gerais, identificam-se duas causas para o colapso da democracia alemã: a humilhação e o desemprego. Ainda nos primeiros dias da República, a Alemanha teve de assinar o Tratado de Paz de Versailles, imposto a ela pelos vitoriosos da I Guerra Mundial. Nem foi “tratado”: foi humilhante ato de rendição. Quando a República de Weimar não honrou os pagamentos das pesadíssimas indenizações de guerra que lhe foram impostas, o exército francês invadiu o coração industrial da Alemanha, em 1923. Em seguida, foi a inflação galopante –  trauma do qual a Alemanha ainda não se recuperou até hoje.

Quando a economia mundial entrou em crise, em 1929, a economia alemã destroçou-se. Milhões, que já conviviam com o desemprego e o subemprego, mergulharam na miséria mais abjeta. Qualquer promessa de salvação seria recebida como verdadeira salvação. Hitler prometeu derrotar a humilhação da derrota e do desemprego e cumpriu as duas promessas: deu emprego aos desempregados, na indústria bélica e em obras públicas – sobretudo na construção de autoestradas, já planejadas para a guerra que viria em seguida.

E há uma terceira razão para o colapso da república alemã: a crescente apatia dos democratas. O sistema político democrático passou, rapidamente, a ser visto como encenação: o povo afundava-se cada dia mais na mais terrível miséria, e os políticos lá, enrolando-se nos seus jogos de palavras. Os alemães ansiavam por um líder forte, capaz de impor a ordem. Os nazistas não derrubaram a República de Weimar. A própria República implodiu. Os nazistas só fizeram preencher o vácuo gerado pelo fracasso daquela democracia.

EM ISRAEL não há crise econômica. Ao contrário, a economia prospera. Israel não assinou nenhum tratado humilhante, como o Tratado de Versailles. Ao contrário: Israel vence guerras. Sim. Os fascistas israelenses falam dos “criminosos de Oslo”, mais ou menos como Hitler esbravejava contra “os criminosos de novembro”. Mas os acordos de Oslo são o contrário do que foi assinado em Versailles, em novembro de 1919.

Se é assim, de onde brota a profunda crise que aflige a sociedade israelense? O que leva milhões de cidadãos a observar, completamente apáticos, o que fazem os governantes, limitando-se a balançar a cabeça frente ao aparelho de TV? O que os leva a ignorar o que está acontecendo nos territórios ocupados, a meia hora, de carro, de onde moram? Por que tantos declaram que deixaram de assistir aos noticiários de televisão e já não leem jornais? Qual a origem da depressão, do desespero, que deixa caminho livre para o fascismo?

O estado israelense chegou a uma encruzilhada: ou paz ou guerra eterna. Paz significa fundar o estado palestino e evacuar todas as colônias nos territórios ocupados. Mas o código genético dos sionistas parece empurrar para a anexação de toda a área histórica até o rio Jordão e – direta ou indiretamente –, para a expulsão de todos os árabes. A maioria dos israelenses foge de ter de decidir e repete que “não temos parceiros para a paz”. Israel está condenando-se à guerra eterna.

A democracia sofre de paralisia crescente, porque os diferentes setores da sociedade vivem em mundos diferentes não comunicantes. Os israelenses seculares de um lado e, de outro, os nacionalistas-religiosos e os ortodoxos recebem educação completamente diferente. A cada dia, estreita-se o território comum. Outras divisões separam a antiga comunidade azquenase, os judeus orientais, os emigrados da ex-URSS e da Etiópia, e os cidadãos árabes, cuja exclusão aumenta dia a dia.

Pela segunda vez em minha vida, talvez assista ao colapso de uma república.

Mas não tinha de ser assim. Israel não é a Alemanha do passo-de-ganso daqueles dias. 2010 não é 1933. Ainda há tempo para que a sociedade israelense desperte e mobilize as forças democráticas que vivem nela.

Mas, para que isso aconteça, temos de despertar do coma, entender o que está acontecendo e aonde nos levará. E protestar e lutar por todos os meios que haja (enquanto é tempo), para deter a onda fascista que ameaça afogar Israel.

Notas de tradução
[1] Sobre o conto folclórico europeu, recolhido pelos irmãos Grimm. Em português, há linda edição bilíngue da versão em versos de Robert Browning (1812-1889): O Flautista de Manto Malhado em Hamelin, 2010, São Paulo: Musa Editora, trad. Alípio Correia de Franca Neto [NT].
[2] Jörg Haider do “Partido da Liberdade”, da extrema direita austríaca. Morreu em 2008, em acidente de carro.  
[3] Rich Lott, candidato Republicano, em Ohio.