segunda-feira, 21 de abril de 2014

Ucrânia, o imbróglio, e o declínio do império norte-americano

18-20/4/2014, [*] Arno J. Mayer, Conterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

É tempo de se fazer um debate nacional – e um referendo a ser iniciado pelos cidadãos norte-americanos – sobre se, sim ou não, os EUA devem empreender imediatamente o autodesarmamento nuclear unilateral. Pode ser exercício salutar e exemplar, em democracia participativa.

Península da Crimeia reincorporada, via eleições democráticas, à Federação Russa
Ao discutir a “crise” Ucrânia-Crimeia, pode ser higiênico para os norte-americanos, incluindo os políticos, os especialistas de think-tank e os torsos falantes de televisão, lembrar dois momentos notáveis, “às primeiras luzes do alvorecer” [1] do Império Norte-Americano: em 1903, no início da Guerra Hispano-Americana, sob o governo do presidente Theodore Roosevelt, os EUA tomaram a parte sul da Baía de Guantánamo mediante um Tratado Cuba-EUA que reconhece a soberania inafastável de Cuba sobre essa base; um ano depois da Revolução Bolchevique, em 1918, o presidente Woodrow Wilson despachou 5 mil soldados dos EUA para Arkhangelsk no norte da Rússia, para participar da intervenção Aliada na Guerra Civil da Rússia, que abriu as cortinas para a Primeira Guerra Fria. Para anotar: em 1903, não havia Fidel Castro em Havana; e em 1918 não havia Joseph Stálin no Kremlin.

Pode ser também saudável notar que o impasse sobre Ucrânia-Crimeia [2] acontece no interminável eco da Segunda Guerra Fria, no momento em que o sol está começando a pôr-se no Império Norte-Americano, enquanto emerge um novo sistema internacional de várias grandes potências.

Edward Gibbon
Claro, os impérios têm modos diversos não só de nascer e brilhar, mas também de declinar e expirar. O que hoje tem especial relevância apareceu como uma das questões percucientes e desafiadoras de Edward Gibbon sobre o Declínio e Queda do Império Romano. Gibbon acabou por concluir que, mesmo com as causas do declínio e da ruína de Roma já satisfatoriamente provadas e explicadas, permanece ainda o grande enigma de por que “subsistiu por tanto tempo”. De fato, as causas internas e externas de ter subsistido são muitas e complexas. Mas um aspecto merece atenção especial: a confiança na violência e na guerra, tentando retardar e adiar o inevitável.

Nos tempos modernos e contemporâneos, os impérios europeus continuaram a lutar, não apenas entre eles mesmos, mas também contra aqueles “seus novos cativos, servos obstinados, metade demônio, metade criança”, [3] sempre que se atrevessem a resistir ou eventualmente se levantassem contra seus amos imperiais-coloniais. Depois de 1945, na Índia e no Quênia; na Indochina e Argélia; no Irã e Suez; no Congo. Desnecessário dizer: até hoje o ainda vigoroso império dos EUA e os decaídos impérios europeus terçam lanças no esforço para salvar o que possa ser salvo nas terras ex-coloniais por todo o Oriente Médio Expandido, África e Ásia.

Não há como negar que o império excepcionalmente informal dos EUA, sem colônias de ocupação, expandiu-se por todo o globo durante e depois da IIª Guerra Mundial. Fez o que fez, porque foi poupado da horrenda e imensa perda de vidas, da devastação material e da ruína econômica que se abateram sobre as outras grandes potências beligerantes, Aliados e Eixo. Para completar, o “complexo industrial-militar” sempre em expansão, disparou, do dia para noite, o poder circunstancial e momentaneamente único, marcial, econômico e soft, da Pax Americana.

Mas agora, o peculiar Império Americano já ultrapassou o momento do apogeu. Seus tendões econômicos, fiscais, sociais, cívicos e culturais estão seriamente desgastados. Ao mesmo tempo, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e Irã reclamam seu lugar no concerto das potências mundiais no qual, por bom tempo, cada um e todos jogarão pelas regras de um novo modelo de mercantilismo numa soi-disant economia capitalista de “livre mercado” globalizante.


A esplêndida Era Norte-Americana de “coturnos no solo” e “mudança de regime” está começando a chegar ao fim. Mesmo na esfera hegemônica decretada pela Doutrina Monroe, há um mundo de diferença entre as intervenções de antes e de hoje. Nos nem tão distantes bons velhos tempos, os EUA intrometeram-se sem disfarces na Guatemala (1954), Cuba (1962), República Dominicana (1965), Chile (1973), Nicarágua (1980s), Grenada (1983), Bolívia (1986), Panamá (1989) e Haiti (2004), quase invariavelmente sem entronizar e dar posse a “regimes” mais democráticos e socialmente progressistas. Atualmente, se pode dizer que Washington caminha com muito mais cautela, servindo-se de uma parafernália de criptoagências tipo-ONGs e seus agentes, na Venezuela. Assim faz porque em todos os domínios, exceto o militar, o império está não só muito excessivamente estendido e disperso, mas, também, porque, ao longo dos últimos poucos anos, governos/“regimes” de tendência à esquerda emergiram em cinco nações latino-americanas os quais, muito provavelmente, se tornarão cada vez menos economicamente e diplomaticamente dependentes de, e menos temerão, os EUA.

Embora em vasta medida subliminarmente, quanto mais forte o sentimento de decadência e o medo da decadência e do declínio imperiais, maiores a húbris nacional e a arrogância do poder que atravessam as linhas partidárias. Na verdade, o tom e o vocabulário nos quais neoconservadores e conservadores de centro-direita continuam a trombetear o autoformatado e historicamente sem similar excepcionalismo dos EUA, a grandeur e a indispensabilidade, são mais agudos que os “da esquerda”, na qual, nos apertos, todos tendem a ter medo, primeiro, da própria sombra. Atualmente, a posição e a retórica de Winston Churchill são emblemáticas dos conservadores e seus parceiros de viagem na época do declínio imperial do Ocidente que se sobrepôs com a ascensão e queda da União Soviética e do comunismo. Churchill foi ferozmente anti-Soviético e anticomunista de primeira hora e tornara-se discreto admirador de Mussolini e Franco antes, em 1942, proclamando alto e claro:

Não me tornei Primeiro−Ministro do rei para comandar a liquidação do Império Britânico.

Winston Churchill
Àquela altura, Churchill também já se tornara há muito tempo proclamador do mantra ideologicamente envenenado do “appeasement” [aprox. “apaziguamento”, mas com traço semântico de “medo de lutar”, “medo de enfrentar” e, até, de “covardia” (NTs)], que faz dupla perfeita com seu discurso famoso “Cortina de Ferro” de março de 1946.

Desnecessário dizer, jamais uma palavra sobre Londres e Paris, na reunião de Munique, depois de terem deliberadamente ignorado ou recusado a oferta de Moscou para colaborar na questão tcheca (Sudeten). Nem Churchill, nem sua torcida organizada jamais concederam que o Pacto Ribbentrop-Molotov (Pacto Nazi-Soviético) de agosto de 1939 foi selado um ano depois do Pacto de Munique, e que ambos foram movimentos de xadrez geopolíticos e militares igualmente ideologicamente infames.

Stálin foi tirano indizivelmente cruel. Mas foi a Alemanha Nazista de Hitler que invadiu e desgraçou a Rússia Soviética pelo corredor da Europa Central e Oriental. E foi o Exército Vermelho, não os exércitos dos aliados ocidentais, que, a custo horrendo, quebrou a espinha dorsal da Wehrmacht.

Se as grandes nações da União Europeia hesitam hoje em impor sanções econômicas totais contra Moscou pela atitude de desafio na Crimeia e Ucrânia, não é só por causa do efeito bumerangue desproporcional contra elas. As potências ocidentais, especialmente a Alemanha, têm memória e narrativa continentais, mais que transatlânticas, da Segunda Crise e Guerra dos Trinta Anos da Europa, seguida imediatamente, praticamente até hoje, pela Guerra Fria dirigida e incansavelmente financiada pelos EUA contra “o império do mal”.

Nikita Khrushchev 
Durante o reinado de Nikita Khrushchev e Mikhail Gorbachev, a OTAN, fundada em 1949 e essencialmente liderada e financiada pelos EUA, foi inexoravelmente empurrada diretamente para ou contra as fronteiras russas. Foi feito ainda mais deslavadamente depois de 1989-1991, quando Gorbachev libertou as “nações cativas” e assinou a favor da reunificação da Alemanha. Entre 1999 e 2009, todas as nações da Europa Oriental libertadas – membros do ex-Pacto de Varsóvia – em torno da Rússia, e três ex-repúblicas soviéticas foram integradas à OTAN, até eventualmente comporem 1/3 dos 28 países membros dessa aliança militar do Atlântico Norte.

Só a Finlândia optou por neutralidade desarmada dentro da esfera soviética e depois pós-soviética. Do dia para a noite, ou quase, a Finlândia passou a ser acusada, não só de estar “apaziguando−amolecendo” com a potência nuclear sua vizinha, mas, também, de constituir perigoso modelo para o resto da Europa e, na sequência, para o então chamado Terceiro Mundo.

Na verdade, durante a Guerra Fria perpétua, em quase todo o “mundo livre”, a palavra e o conceito de “finlandização” tornaram-se ferramentas de maldição, equivalentes a “comunismo”, ainda mais porque foram adotados pelos que criticavam os sacerdotes da Guerra Fria e advogavam a favor de uma “terceira via” ou do “não alinhamento”. Ao mesmo tempo, a OTAN, quer dizer, Washington, olhava intensamente na direção das duas: da Geórgia e da Ucrânia.

Dia 2/3/2014, o Departamento de Estado dos EUA distribuiu uma declaração sobre a situação na Ucrânia, pelo Conselho do Atlântico Norte, no qual declarou que:

(...) a Ucrânia é considerada parceira da OTAN e membro fundador da Parceria para a Paz (...) e que os aliados da OTAN continuarão a apoiar a soberania, independência e integridade territorial da Ucrânia, e o direito do povo ucraniano de determinar o próprio futuro, sem interferência externa.

O Departamento de Estado também declarava que

(...) além de sua tradicional defesa das nações aliadas, a OTAN lidera a Força Internacional de Segurança e Assistência [orig. International Security Assistance Force (ISAF)] coordenada pela ONU no Afeganistão, e tem missões em andamento nos Bálcãs e no Mediterrâneo; a OTAN também mantém exercícios extensivos de treinamento e oferece apoio de segurança a parceiros por todo o mundo, inclusive à União Europeia em particular, mas também à União Africana.

Em questão de dias, depois do movimento de monitoramento de Putin na Ucrânia, a OTAN, especificamente o presidente Obama, reagiu: um destróier armado com mísseis atravessou o Bósforo para o Mar Negro para exercícios navais, com navios das Marinhas romena e búlgara; jatos de combate F-15 foram despachados para reforçar as missões de patrulha da OTAN sobre os estados do Báltico (Estônia, Latvia e Lituânia); e um esquadrão de bombardeiros F-16 e uma companhia completa de “coturnos em solo” foi deslocada às pressas para a Polônia.

Claro: esses deslocamentos e reforços foram ostensivamente ordenados por causa daqueles aliados da OTAN ao longo da fronteira da Rússia, todos “regimes” que, durante as duas guerras e especialmente durante os anos 1930s, não haviam sido exatamente exemplos de democracia; e porque sua fobia anti-Rússia & anticomunismo os aproximara, todos, da Alemanha nazista. E depois que as legiões de Hitler entraram na Rússia pelas fronteiras, setores não insignificantes da sociedade política e civil nesses países não foram exatamente meros transeuntes inocentes, nem meros colaboradores na Operação Barbarossa e no judeicídio.

Por via das dúvidas, o Secretário de Estado, John Kerry, sacudidor-de-dedo-em-chefe do governo Obama, só denunciou o deslocamento ordenado por Putin na e em torno da Ucrânia−Crimeia como “ato de agressão completamente escancarado em termos de pretexto”. Também por via das dúvidas, contudo, ele logo acrescentou que “não se invade outro país”. Foi o que disse, e num momento em que nada havia de ilegal no movimento de Putin.

Hillary Hitler
Mas Hillary Clinton, predecessora de Kerry no mesmo cargo, e muito provável candidata à indicação pelos Democratas à presidência, que muito mais e mais diretamente demoniza Putin como agente não reconstruído da KGB ou mini-Stálin, saltou logo à jugular:

Se está soando familiar... É como Hitler fez nos anos 30s.

Também, como que para enfraquecer qualquer crítica ao seu surto verbal, Clinton logo acrescentou que:

Só quero que as pessoas tenham um pouco de noção histórica.

Quer dizer: quer que “as pessoas” aprendam as táticas nazistas no cenário da IIª Guerra Mundial.

Quanto ao senador Republicano, John McCain, derrotado por Barack Obama à presidência em 2008, operava no mesmo comprimento de onda. Disse que a política externa “acovardada” de seu arquirrival praticamente induzira o movimento agressivo de Putin, com a implicação não dita de que o presidente Obama seria um neo-Neville Chamberlain, avatar do “apaziguamento−amolecimento”.

Mas foi o senador Republicano Lindsey Graham quem disse com todas as letras o que já se sussurrava pelos corredores do establishment da política exterior e em tantas redações da imprensa-empresa dominante. Pregou que se criasse “um cordão democrático em torno da Rússia de Putin”. Para isso, Graham propôs que se iniciassem as providências para tornar a Geórgia e a Moldávia membros da OTAN. Graham também advogou um aumento na capacidade militar dos membros da OTAN “mais ameaçados” junto às fronteiras da Rússia, além de expansão nos sistemas de radar e de mísseis de defesa.

Em resumo, estaria “amarrando a bandeira da OTAN o mais firmemente possível, em torno de Putin” – que é a política da OTAN desde 1990. Assumindo diferentes tarefas, enquanto o senador Graham tocava o tambor Republicano no Capitólio e para a imprensa-empresa, o senador McCain correu para Kiev, para dar prova da firmeza, decisão, competência e músculos dos “outros” EUA, tão diferentes da tibieza, da frouxidão do presidente Obama e de sua equipe de política exterior. Esteve na capital da Ucrânia pela primeira vez em dezembro; e novamente em meados de março de 2014, liderando uma delegação bipartidária de oito senadores, todos com ideias parecidas.

Na Praça Maidan em Kiev, ou Praça Independência, McCain não apenas se misturou como também discursou para a massa de ferozes nacionalistas anti-Rússia, incluídos os não poucos neofascistas; também andou por lá ao lado de Victoria Nuland, Secretária de Estado Assistente dos EUA para assuntos europeus e eurasianos. Já se falou muito daquele infeliz ou revelador “Foda-se a União Europeia” dela, na conversa gravada com o embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Ryatt; e da farta distribuição de docinhos na Praça Maidan. O que interessa é que Nuland é parceira assumida e consumada do establishment da política externa imperial de Washington, serviu aos governos Clinton e Bush, antes de subir a bordo do governo Obama; e é amiga muito próxima de Hillary Clinton.

Além disso, ela é casada com Robert Kagan, mago da geopolítica que, embora visto como neoconservador, dá-se igualmente bem, como a esposa, tanto com os Republicanos importantes quanto com os Democratas importantes. Foi assessor para política externa de John McCain e Mitt Romney durante a campanha presidencial, duas vezes, em 2008 e 2012, antes de o presidente Obama revelar ao mundo que esposava alguns dos principais argumentos de The World America Made (2012), o mais recente livro de Kagan. Nesse livro, Kagan ensina modos de preservar o império, controlando-o com algo como 12 forças navais construídas em torno de invencíveis porta-aviões movidos a energia nuclear, com o que expandirá o Mare Nostrum dele até o Mar do Sul da China e o Oceano Índico.

Como discípulo de Alfred Thayer Mahan, Kagan naturalmente se beneficiou, para consumar sua entrée nos círculos próximos dos fazedores e agitadores das políticas exterior e militar dos EUA, e passou anos na Carnegie Endowment e na Brookings Institution. Isso, antes de, em 1997, tornar-se cofundador, com William Kristol, do neoconservador “Projeto Para o Novo Século Norte-Americano” [orig. Project for the New American Century], comprometido com promover a “liderança global” dos EUA, à caça da segurança nacional e dos interesses dos EUA. Poucos anos depois, quando esse think tank expirou, Kagan e Kristol passaram a ter papel chave na Iniciativa de Política Exterior [orig. Foreign Policy Initiative], descendente ideológico linear do outro.

Mas a questão não é que a démarche de Victoria Nuland na Praça Maidan possa ter sido indevidamente influenciada pelos escritos e engajamentos políticos do marido. De fato, na questão ucraniana, o mais provável é que ela esteja mais atenta a Zbigniew Brzezinski, outro especialista em geopolítica de alta visibilidade o qual, contudo, nada exclusivamente em águas Democratas já desde 1960, quando foi conselheiro de John F. Kennedy durante a campanha eleitoral à presidência e tornou-se Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Jimmy Carter. Pesadamente fixado na Eurásia, Brzezinski parece montado mais nos ombros de Clausewitz, que de Mahan. Mas os dois, Kagan e Brzezinski, são imperialistas norte-americanos de sangue quente.

Em 1997, em seu O Grande Tabuleiro de Xadrez, Brzezinski escreveu que:

Zbigniew Brzezinski
(...) a luta pela primazia global continuará a ser disputada” no “tabuleiro de xadrez” eurasiano, e que aquele é um “novo e importante espaço [nesse] tabuleiro de xadrez (...) A Ucrânia foi um pivô geopolítico porque até a sua existência como país independente ajuda a transformar a Rússia. De fato, (...) se Moscou recupera o controle sobre a Ucrânia, com seus [então] 52 milhões de habitantes e ricos recursos, além do acesso ao Mar Negro, a Rússia (...) automaticamente recupera condições para tornar-se poderoso estado imperial, alastrando-se para Europa e Ásia.

O roteiro não escrito de Brzezinski, idêntico ao dos conselheiros para política exterior de Obama é: intensificar os esforços do Ocidente – leia-se: dos EUA – por todos e quaisquer meios, para separar a Ucrânia da esfera de influência russa, incluindo especialmente a Península do Mar Negro que dá acesso ao leste do Mediterrâneo pelo Mar Egeu.

Presentemente, mais do que se focar nos projetos geopolíticos e objetivos da “agressão” russa contra Ucrânia−Crimeia, Brzezinski virou os holofotes de sua pregação contra as intenções e movimentos (para ele sempre nefandos) de Putin, sobre o Grande Tabuleiro de Xadrez. Admitir que Putin ande livremente na Ucrânia-Crimeia seria “semelhante às duas fases da tomada, por Hitler, do Sudeten, depois de Munique, em 1938, e a ocupação final de Praga e da Tchecoslováquia no início de 1938”. Sem discordância possível, “muito depende da clareza com que o Ocidente faça saber ao ditador no Kremlin – em parte arremedo cômico de Mussolini, sem esquecer o arremedo muito mais grave, de Hitler – que a OTAN não poderá ser passiva, se eclodir uma guerra na Europa”. Porque se a Ucrânia for “esmagada, com o Ocidente apenas assistindo, a nova liberdade e a segurança de Romênia, Polônia e das três repúblicas do Báltico também serão ameaçadas”.

Depois de ter ressuscitado a Teoria do Dominó, Brzezinski exige que:  

(...) o Ocidente reconheça imediatamente o atual legítimo governo da Ucrânia e garanta privadamente (...) que o exército ucraniano pode contar com imediata e direta ajuda do ocidente, para reforçar suas capacidades de defesa. Ao mesmo tempo, “as forças da OTAN (...) devem ser postas em alerta máximo, para o caso de o envio por ar de forças aeroembarcadas da Europa e dos EUA ser politicamente e militarmente significativo.

Como para complementar, Brzezinski sugeriu que além de

(...) todos os esforços para evitar erros que possam levar a guerra, o Ocidente deve reafirmar seus desejos de acomodação pacífica (...) [e] garantir à Rússia que não está tentando arrastar a Ucrânia para a OTAN nem voltá-la contra a Rússia.

Mirabile dictu. Mas que maravilha! Que ideia oportuna! Brzezinski, como Henry Kissinger, geopolítico seu parceiro, com a mesma cabeça imperial de Guerra Fria, sugeriu uma espécie de Finlandização da Ucrânia, mas − desnecessário dizer − não dos demais estados da fronteira leste. E sem esquecer que, na verdade, proposta assemelhada já fora feita, de fato, por Sergey Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia.

Sergey Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia
Claro, os tipos do tipo Kagan, Brzezinski e Kissinger continuam a elogiar o serviço excepcional que os EUA prestaram na “mudança de regime” em Kiev – que resultou num governo no qual neofascistas e ultra nacionalistas da vanguarda da Praça Maidan estão bem representados.

Uma vez que quem critique as más intenções dos EUA é rapidamente desqualificado como liberal idiota de esquerda contratado para exagerar o lado escuro da força antidemocrática dos EUA, pode ser útil ouvir o que diz alguém que, sobre o tema, pode ser declarado absolutamente confiável. Abraham Foxman, diretor nacional da Liga Antidifamação [orig. Anti-Defamation League] e renomado inquisidor-chefe contra o antissemitismo, já disse que:

(...) não há dúvidas de que a Ucrânia, como a Croácia, foi um dos lugares onde milícias locais tiveram papel central no assassinato de milhares de judeus durante a IIª Guerra Mundial.

E que o antissemitismo

que absolutamente não desapareceu na Ucrânia (...) gerou em meses recentes vários incidentes de antissemitismo e há na Ucrânia pelo menos dois partidos, Svoboda e Setor Direita (Pravy Sektor), que incluem entre seus quadros nacionalistas extremistas e antissemitas.

Mas, tendo dito isso, Foxman insiste que:  

Abraham Foxman
(...) é pura demagogia e esforço para racionalizar comportamento criminoso dos russos invocar o ogro do antissemitismo na luta na Ucrânia (...), porque se pode dizer que há mais antissemitismo manifesto no movimento planetário de Occupy Wall Street, do que na revolução em andamento na Ucrânia. A verdade é que Putin (...) joga a carta do antissemitismo como joga a carta de Moscou (...) querer proteger os russos étnicos contra alguma pretensa agressão de extremistas ucranianos. Pois mesmo assim, porém, ainda assim, para Foxman, é errado e repreensível sugerir que as políticas de Putin na Ucrânia tenham algo a ver com políticas nazistas durante a 2ª Guerra Mundial.

Mas, entretanto, contudo, porém, Foxman apressa-se a explicar que “não é absurdo evocar a mentira de Hitler” sobre o suplício dos alemães do Sudeten ser comparável a exatamente o que Putin está dizendo e fazendo na Crimeia, o qual (Putin) tem mesmo, sim, de ser condenado (...) com o mesmo empenho com que o mundo deve condenar o movimento dos alemães no Sudeten.

Essa argumentação sinuosa e torturada está em perfeita harmonia com o que dizem os linha-duras norte-americanos e israelenses, que obram para conter e fazer recuar uma grande potência ressurgente russa, como fazem contra a Síria e o Irã, na “área próxima”, na Europa e na Ásia.

Ouvindo Brzezinski e McCain, Washington está reunindo suas forças nos estados do Báltico, especialmente na Polônia, com vistas a ter material acumulado para obter novas sanções. Mas essa intervenção à moda antiga estará cortando gelo fino, a menos que seja totalmente organizada, militarmente e economicamente, com os membros peso-pesado da OTAN – o que parece improvável. Claro que os EUA têm drones e armas de destruição em massa. Mas a Rússia também tem.

Robert Kagan
Seja como for, para imperialistas não reconstruídos, e para o AIPAC sionista, o xis da questão não é a Europa “próxima” da Rússia, mas a re-emergência do Oriente Médio Expandido, atualmente na Síria e no Irã e, isso, num momento quando, segundo Kagan, o Golfo Pérsico empalidece, em importância econômica e estratégica, se comparado à região do Pacífico Asiático, onde está despertando a gigante China a qual, já agora, apenas semidespertada, é a segunda economia do mundo – equivalente a mais da metade da economia dos EUA – e quase inacreditável 3ª maior detentora de papéis da dívida pública dos EUA, de longe o maior detentor de papeis do Tesouro dos EUA.

Em resumo, o não regenerado Império-EUA quer ativamente conter, ao mesmo tempo, a Rússia e a China usando seu bom e velho modus operandi, começando ao longo e para além da Europa “próxima” da Rússia e o Mar do Sul da China e Estreito de Taiwan que conecta o Mar do Sul da China ao Mar do Leste da China.

Por causa das sempre crescentes limitações de orçamento, Washington já há muito tempo reivindica que seus principais parceiros na OTAN compareçam e metam lá seus pés financeiros e militares. Esse arrocho fiscal aumentará exponencialmente com o pivoteamento para o Pacífico, que exige gastos sempre crescentes de “defesa”, que não tendem a ser partilhados com alguma aliança Ásia-Pacífico semelhante à OTAN.

Embora muito provavelmente haja cortes nas bases militares no mundo atlântico e no Oriente Médio, e com o realinhamento geográfico dos EUA, o dinheiro economizado de algumas bases será gasto, multiplicado várias vezes, no reforço e expansão de frota sem rivais de uma dúzia de forças tarefas construídas em torno de porta-aviões movidos a energia nuclear.

Afinal, os oceanos Pacífico e Índico somados equivalem, fácil, a mais que o dobro do Atlântico; embora, sempre segundo Kagan, a China ainda não seja “ameaça existencial”, já está “desenvolvendo um ou dois porta-aviões (...) mísseis balísticos navais mar-mar e terra-mar (...) além de submarinos”. E já hoje se veem por ali pontos de conflito comparáveis à Crimeia, Báltico, Síria e Irã: a disputa entre Japão e China pelo controle de ilhas e do espaço aéreo sobre o potencialmente rico em petróleo Mar do Sul da China; e o confronto sino-japonês em que se disputam as Ilhas Senkaku/Diaoyu no Mar do Leste da China.

Embora seja perfeitamente normal que Taiwan, Japão, as Filipinas e a Coreia do Sul vivam tensões, até relações conflituosas, com a China e a Coreia do Norte, é coisa radicalmente diferente, agora, os EUA porem-se a OTAN-izar todos os conflitos, em nome de seu próprio interesse imperial até os confins mais distantes de seu hoje contestado Mare Nostrum.

Ilhas Senkaku/Diaoyu no Mar do Leste da China (localização)
O pivoteamento na direção do Pacífico Asiático, é claro, distenderá ainda mais o império, em tempos de crescentes restrições orçamentárias, o que reflete as limitações econômicas sistêmicas e a crise social, que geram crescentes disfunção e dissenso políticos. É verdade que raros e impotentes são os que, na sociedade política e acadêmica, questionam a GLORIA PRO NATIONE: EUA, a maior nação, excepcional, necessária e do-bem, determinada a manter o mais forte e atualizado poder militar e ciber do mundo.

E aqui está o busílis. Os EUA são responsáveis por quase 40% de todos os gastos militares do planeta, comparados aos cerca de 10% da China e aos 5,5% da Rússia. A Indústria Aeroespacial da Defesa contribui com 3% do PIB e é o maior contribuinte positivo da balança comercial da nação. As três maiores indústrias fabricantes de armas dos EUA – Lockheed Martin, Northrop Grumman e Boeing – são também as três maiores do mundo, e empregam cerca de 400 mil pessoas e absolutamente mantêm cercados todos os mercados do mundo, presos aos seus “produtos”. Mais recentemente, empresas privadas contratadas da Defesa crescem por todos os cantos, numa nação-império cada dia mais odiada por meter coturnos convencionais em solos. Essas empresas privadas oferecem proporção sempre crescente de serviços de apoio contratados para servir ao pessoal militar em campo, muitos dos quais são armados e muitas vezes fornecidos em quantidade superior aos militares armados. Na Operação “Liberdade Duradoura” [orig. Operation Enduring Freedom] no Afeganistão, e na Operação “Liberdade para o Iraque” [orig. Operation Iraqi Freedom], o número de militares regulares e o número de mercenários empregados de empresas privadas foram praticamente iguais.

Dwight Eisenhower
Essa rápida citação da ponta do iceberg militar dos EUA aqui está só para recordar o aviso do presidente Dwight Eisenhower, em 1961, de que “um imenso establishment militar” crescendo junto com “uma grande indústria de armas” [virá a ter] influência indevida, a qual, desejada ou não desejada” agredirá a democracia. Naquele momento, Ike dificilmente teria antevisto os gargantuescos crescimento e peso político desse complexo militar-industrial ou o surgimento, dentro dele, de um exército mercenário empresarial privado.

A formidável oligarquia de fabricantes e vendedores de armas no coração do complexo industrial-militar alimenta um vasto exército de lobbyistas em Washington. Em anos recentes, o lobby das armas, sempre crescente, gastou incontáveis milhões de dólares em sucessivos ciclos eleitorais, o dinheiro igualmente distribuído entre Democratas e Republicanos. Esse polvo gigantesco é como uma “terceira Casa legislativa” e absolutamente não aprovará nenhum corte substancial nos gastos militares, muito menos quando seus movimentos são sincronizados com os de outros vastos lobbies, todos relacionados à Defesa, como o do petróleo, que não aprovará qualquer down-sizing na Marinha dos EUA, a qual, por falar dela, é de longe a principal a espionar, digo, a patrulhar, todas as rotas comerciais nos oceanos do planeta.

Há, claro, considerável força de trabalho, inclusive trabalhadores braçais, que ganham a vida diariamente no inchado setor “da defesa”. Mas são menos, hoje, numa economia cujos setores industrial/ manufatureiro já transferiram para o exterior muitas de suas fábricas. Esse distorcido ou excepcional orçamento federal, em economia de livre mercado, não só espalha desemprego e subempregos, como também dissemina muitas dúvidas entre a população, sobre os benefícios materiais e psicológicos do império.

Em 1967, quando Martin Luther King, Jr., rompeu seu silêncio sobre a guerra no Vietnã, falou diretamente da interpenetração da política doméstica e da política externa, naquele conflito.

Para ele, aquela guerra era intervenção imperialista no distante sudeste da Ásia, à custa da “Grande Sociedade” que o presidente Johnson, que escalou a guerra, prometera promover em casa. Depois de lamentar o terrível sacrifício de vidas dos dois lados em guerra, King previu que:

Martin Luther King, Jr discursando
(...) uma nação que continua ano após ano a gastar mais dinheiro na defesa militar que em programas sociais e promoção da sociedade, aproxima-se da morte espiritual.

Chegou a dizer que:  

(...) nada, exceto um trágico desejo de morte (...) impede a nação mais poderosa da terra (...) de reordenar nossas prioridades, de tal modo que a procura pela paz se imponha sobre a procura por guerras.

Quase 50 anos depois, o presidente Obama e sua equipe, além de quase todos os Democratas e Republicanos, senadores e deputados, políticos e especialistas de jornal e televisão, continuam a ser rematados e nunca questionados imperialistas. Supondo-se que lessem Gibbon, sequer dariam atenção à pista que oferece, de que: o declínio de Roma foi efeito natural e inevitável da grandeza sem moderação a qual, como volta do chicote sobre o lombo do chicoteador, corroeu a política, a sociedade e a cultura que a ostentavam.

Hoje, claro, sem bárbaros nos portões, não há necessidade de legiões de forças armadas, nem de coturnos, o que implica que o falimentar orçamento da “defesa” é consumido em aviões, navios, mísseis, drones, ciber-armas e armas de destruição em massa. Si vis pacem para bellum [se querem paz, prepara-te para a guerra], mas contra quem? E para ganhar o quê?

No início da “crise” ucraniana, o presidente Obama voou até Haia, para a terceira reunião da Cúpula de Segurança Nuclear [orig. Nuclear Security Summit (NSS)] criada em 2010 para impedir o terrorismo nuclear em todo o planeta.

Barack Obama
A Cúpula de Segurança Nuclear foi invenção e projeto de Obama, apresentado em declaração oficial pelo secretário de Imprensa da Casa Branca na véspera do encontro de fundação, em abril de 2010, em Washington.

A declaração lembrava que:

(...)  mais de 2 mil toneladas de plutônio e urânio altamente enriquecido existem em dúzias de países e há 18 casos documentados de roubo ou perda de urânio ou plutônio altamente enriquecidos. Acima de tudo: “sabemos que a al-Qaeda, e possivelmente outros grupos terroristas ou criminosos, estão tentando obter armas atômicas – além de materiais e expertise necessários para fabricá-las. Os EUA não são o único país que pode vir a sofrer com o terrorismo nuclear, mas não pode impedi-lo todo, sozinho.

Assim sendo, a Cúpula de Segurança Nuclear é o meio “para chamar a atenção para essa ameaça global” e tomar as medidas preventivas urgentemente necessárias.

Concebida e estabelecida depois do 11/9, a Cúpula de Segurança Nuclear, pela última contagem, reúne 83 países dedicados a cooperar para decapitar o monstro, reduzindo a quantidade de material nuclear vulnerável e impor segurança mais cerrada sobre todos os materiais nucleares e fontes radioativas in loco, nos vários países.  Em Haia, havia multidões de jornalistas cobrindo o evento, uns 20 chefes de estado e de governo, e quase 5 mil delegados; todos esses foram atualizados sobre os avanços já realizados nessa árdua missão autoatribuída e juraram trabalhar cada vez mais. Mas aconteceu um percalço no último instante, uma dissonância.

Sergey Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia; e Yi Jinping, presidente da China, com outros 18 votantes, recusaram-se a assinar documento que ordenava que as nações membros admitissem inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para inspecionar as medidas implantadas para conter a ameaça de terrorismo nuclear.

Claro que, inevitavelmente, a questão Ucrânia−Crimeia nublou, quase conseguiu disfarçar completamente, o tão frustrado grande sucesso da Cúpula de Segurança Nuclear. O presidente Obama tinha a mente absoluta e completamente focada: numa reunião ad hoc do G-8 em Amsterdã; numa visita ao quartel-general da OTAN em Bruxelas; numa audiência com o Papa Francisco no Vaticano, em Roma; e numa reunião improvisada às pressas com o rei Abdullah da Arábia Saudita em Riad. Exceto na visita ao Santo Padre, da qual pode ter, talvez, tentado arrancar uma Indulgência, em todas as suas demais reuniões e visitas o presidente reafirmou e reproclamou que os EUA eram, são e planejam continuar a ser a que Hubert Védrine, um ex-Ministro francês de Relações Exteriores, chamou de única “hiperpotência” do mundo. O imbróglio Ucrânia−Crimeia só fez acrescentar à profissão de fé e afirmação garantida, uma maior urgência.

É irônico que a agendada Cúpula de Segurança Nuclear tenha sido o abridor de cortinas para a sequência de visitas presidenciais improvisadas à plena velocidade, no alvorecer do que Paul Bracken, outro experiente e “inserido” professor de geopolítica, assevera que seria A Segunda Era Nuclear [orig. The Second Nuclear Age] (2012) – dessa vez em mundo multipolar, não bipolar. A verdade é que Bracken meramente e magistralmente teorizou o que há muito tempo tornou-se ideia−guia e prática-guia em todo o establishment de política exterior & militares nos EUA. É isso, ou, então, como diria Monsieur Jourdain, de Molière, há muito tempo os membros desse establishment “já falavam em versos, sem nem saber”.

Paul Bracken
A eliminação ou radical redução negociada de armas atômicas não está, absolutamente, na agenda. Foi descartada como ideal quixotesco, num mundo de nove potências nucleares: EUA, Rússia, Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Coreia do Norte – e Israel. No governo de Obama, os EUA e a Rússia pós-soviética acertaram que não manteriam mais de 1.500 ogivas, número a que chegaram depois de várias reduções. Mas agora, com a re-emergência da Rússia como grande potência e do prodigioso renascimento com recrutamento forçado, da China, num mundo multipolar, os EUA parecem inclinados a cuidar de manter considerável superioridade nuclear sobre... as duas!

Embora, enquanto provavelmente Washington e Moscou já se veem às voltas com problemas da “modernização” de seus arsenais nucleares e capacidades “para disparar bombas”, a China, nesse campo, ainda engatinhe.

Falando grosso pelos EUA, enquanto é potência militar e econômica não superada, Obama conseguiu convencer seus parceiros no G-8, fórum das maiores economias do mundo, que fala muito, sempre sem entusiasmo algum, a suspender, para não dizer “expulsar”, a Rússia – para castigar Putin pela transgressão na Ucrânia−Crimeia. O mais provável, porém, é que tenham concordado em fazer esse gesto, quase só simbólico, para evitar assinar sanções ainda mais duras contra Moscou. Ao convir nessa falcatrua orquestrada pelos EUA, o G-7 remanescente só faz expor sua característica de club privé, criado para, arrogantemente, fazer dos BRICS, excluídos.

O declínio do Império Americano, como de todos os impérios, promete ser ao mesmo tempo gradual e relativo. Quanto às causas desse declínio, são inextrincavelmente externas/ domésticas e externas/ estrangeiras. Não há como separar o refratário déficit no orçamento e seu complemento, o dissenso social e político, do irreduzível orçamento militar indispensável para derrubar impérios rivais. Claro que na operação de emprestar a expressão inspirada e conceitualmente densa, de Chalmers Johnson, o “império de bases”, para dar nome a bem mais de 600 bases em provavelmente mais de 100 países, em vez de tombar, da noite para o dia, da onipotência na impotência, inclui-se o risco de tudo se tornar cada vez mais errático e intermitentemente violento, na “defesa” da já para sempre esvaziada “nação” excepcional.

Até aqui, ainda não se vê ainda nem sinal de que cogitem desistir da pretensão de permanecer primeira entre aspirantes a iguais nos mares, ares, ciberespaços e na cibervigilância. E o peso do músculo militar para essa super-auto-re-atribuição é garantido por uma pujante indústria da “defesa”, numa economia assolada por desemprego profundamente enraizado e uma sociedade saqueada por renda e desigualdade humilhantes, por pobreza crescente, pela anomia sociocultural incapacitante e por avassaladora, sistêmica corrupção política. Inobstante o que digam os Sabe-Nada imperiais, essas condições sempre solaparão o apoio doméstico a política externa de intervencionismo e militarismo não reconstruído. Também esterilizarão o poder soft dos EUA, porque corroem a aura da democrática, salvífica, City on the Hill. [4]

Assim como a União Soviética e o comunismo foram o arqui-inimigo polimórfico durante a Primeira Era Nuclear, o terrorismo e a “ameaça” islamista podem bem fazer o mesmo papel, na Segunda Era Nuclear. Talvez pareça que a ameaça e o uso de armas nucleares soem hoje menos úteis, embora em nada menos demoníacos, que antes. Sub specie aeternitatis [do ponto de vista da eternidade], o horror do ataque terrorista contra o World Trade Center em New York e contra a Maratona em Boston foram bagatela, comparado à fúria do bombardeio nuclear contra Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945. Claro que é recomendável que muitas nações cuidem de impedir o “terrorismo nuclear” servindo-se para isso da Cúpula de Segurança Nuclear.

Bomba Atômica
Mas, como não há sistemas seguros de acesso ao controle, a missão está condenada a morrer no ninho, se não houver, simultaneamente, movimento decidido para reduzir radicalmente, ou para liquidar, o apavorante arsenal de armas nucleares e de materiais para produzir armas nucleares. Afinal, quanto maior o estoque, maiores a oportunidade e a tentação para um terrorista, um criminoso ou um vazador, atravessar o Rubicão.

Segundo estimativas bem informadas, há hoje bem mais de 20 mil bombas atômicas nesse planeta; EUA e Rússia guardam mais de 90% desse total. Não menos formidáveis são os estoques globais de urânio e plutônio enriquecidos.

Em setembro de 2009, Obama disse ao Conselho de Segurança da ONU que “novas estratégias e novas abordagens” eram necessárias para enfrentar uma “proliferação” de “alcance e complexidades” sem precedentes, de tal modo que se “apenas uma arma atômica explodir numa cidade – seja New York ou Moscou, Tóquio ou Pequim, Londres ou Paris – poderia matar centenas de milhares de pessoas”. Na sequência, mais de um analista confessou que considera um ataque atômico doméstico, organizado e executado dentro dos EUA, com uma dessas impensáveis bombas sujas, uma ameaça maior e mais iminente, que algum prosaico ataque nuclear movido pelos russos. Tudo isso, enquanto a Cúpula de Segurança Nuclear escreve na água, e o Pentágono continua a “modernizar” o arsenal e as capacidades nucleares dos EUA – também com armas químicas, já, preparadas. Corta-se o orçamento para capacidades militares convencionais, não para as capacidades nucleares.

Fato é que, com tudo isso na cabeça, a super-reação dos EUA contra o movimento dos russos na Crimeia é muito preocupante. Desde o início, o governo Obama proclamou temerariamente e exageradamente supostos objetivos e métodos de Moscou – de Putin – ao mesmo tempo em que proclamava a absoluta inocência de Washington no imbróglio em curso.

Praticamente do dia para a noite, antes até da superexplorada acusação de que Moscou estaria reunindo tropas na fronteira da Ucrânia e, em geral, em toda a parte europeia da Rússia, “vizinhos próximos” da OTAN – leia-se Washington – puseram-se a deslocar equipamento militar avançado para os países do Báltico e Polônia.

Dia 4/4/2014, os ministros de Relações Exteriores dos 28 países membros da OTAN reuniram-se em Bruxelas, com o objetivo de reforçar o músculo militar e de cooperação, não só nos países já citados, mas também na Moldávia, Romênia, Armênia e Azerbaijão. Além disso, as patrulhas aéreas da OTAN serão escaladas, e baterias antimísseis serão instaladas na Polônia e na Romênia. Aparentemente, a reunião de emergência da OTAN também considerou exercícios militares conjuntos em vasta escala e o estabelecimento de bases militares da OTAN próximas às fronteiras da Rússia, as quais, segundo o Figaro, jornal conservador francês, seriam “demonstração de força que os próprios Aliados vedaram nos anos posteriores ao colapso da União Soviética”. Será que armas nucleares táticas e aviação com capacidade nuclear – ou drones com capacidade nuclear – serão deslocadas para essas bases?

E para qual finalidade? Preparando uma guerra convencional de trincheiras, guerra de blindados, ou guerra total do tipo Operação Barbarossa? Claro, em tempos pós- Hiroshima e Nagasaki, deve haver um plano de contingência, um Plano B para duelo nuclear, com os dois lados, no caso da “contenção” recíproca falhar, confiantes em suas capacidades para primeiro e segundo ataque. Não só Washington, mas também Moscou, sabem que em 1945 a razão decisiva para usar a arma absoluta foi claramente geopolítica, muito mais que apenas militar.

Com o peso dos imperialistas não regenerados na Casa Branca, no Pentágono, no Congresso, mais a “terceira Casa legislativa” e os think tanks, há risco de que essa “operação liberdade dos vizinhos próximos da Rússia europeia” pela OTAN-cerebrada pelos EUA fuja completamente de controle, dentre outros motivos porque os Sabe-Nada norte-americanos com certeza têm contrapartes russos.

Nesse jogo de corre-corre à beira do penhasco nuclear, os EUA não se podem apresentar como reserva moral e legal, porque foi o presidente Truman e seu círculo de conselheiros que iniciaram a maldição da guerra atômica e, nem com o tempo, jamais se viu gesto, nem oficial, nem popular de arrependimento por esse excesso militar imperdoável. E, isso, apesar de o general Eisenhower já ter dito que:

(...) desencadear o inferno atômico contra população predominantemente civil é simplesmente o seguinte: ato de supremo terrorismo (negritos meus) (...) e de barbárie cruel e impiedosamente calculado pelos planejadores norte-americanos, para demonstrar o poder demoníaco de seu próprio país, ao resto do mundo – e à União Soviética em particular.

Haveria filiação entre esse clamor da alma e o alerta sobre a toxicidade do “complexo industrial-militar” do discurso de despedida do presidente Eisenhower?

É tempo de se fazer um debate nacional – e um referendo a ser iniciado pelos cidadãos norte-americanos – sobre se, sim ou não, os EUA devem empreender imediatamente o autodesarmamento nuclear unilateral. Pode ser exercício salutar e exemplar, em democracia participativa.



Notas dos tradutores:

[1] Sobre o filme para televisão, com esse título, ver: By Dawn's Early Light

[2] Esse “impasse” já não existe: a Crimeia já se reincorporou à Federação Russa e a “Ucrânia é ficção”, como se aprende do Saker. O ensaio pode ter sido escrito antes desses desdobramentos e, seja como for, nada perde por essa imprecisão.

[3] Orig. “new-caught, sullen peoples, half-devil and half-child”; é verso do poema The White Man's Burden; em português O Fardo do Homem Branco, de Rudyard Kipling (1899).

[4] É expressão que aparece na Bíblia, no Sermão da Montanha; retomada no discurso dos colonizadores puritanos nos EUA e, daí, incorporada ao discurso político nos EUA, para designar os EUA: cidade no alto da colina, a mais visível, a que se vê de longe, a mais brilhante, etc.. Há aí também um deslizamento semântico com “The Hill”, expressão que designa a colina do Capitólio, em Washington.
___________________


[*] Arno Joseph Mayer (nascido em 1926) é um historiador americano de origem luxemburguesa, especialista na Europa, em diplomacia internacional e na Shoah. É professor de História na Universidade de Princeton. Mayer, de família judia,  fugiu para os Estados Unidos durante a invasão nazista de Luxemburgo em maio 1940 e se tornou um cidadão naturalizado dos Estados Unidos em 1944; naquele mesmo ano, foi convocado para o Exército dos Estados Unidos onde serviu como oficial de inteligência. Tornou-se um oficial de moral para os prisioneiros alemães de alto escalão da guerra. Recebeu sua educação no City College de New York e da Universidade de Yale . Foi professor na Universidade de Wesleyan (1952-1953), da Universidade Brandeis (1954-1958) e da Universidade de Harvard (1958-1961). Leciona na Universidade de Princeton desde 1961 até hoje. É autor dos ensaios: The Furies: Violence and Terror in the French and Russian Revolutions e Plowshares Into Swords: From Zionism to Israel (Verso).

5 comentários:

  1. Houve um erro de tradução em "Assim faz porque em todos os domínios, exceto o militar, o império está não só muito excessivamente estendido e disperso, mas, também, porque, ao longo dos últimos poucos anos, governos/“regimes” de tendência à esquerda emergiram em cinco nações norte-americanas". Conferi no original e constatei que o correto é "regimes” de tendência à esquerda emergiram em cinco nações latino-americanas".

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    1. Caro Ricardo
      Preferimos colocar governos/regimes, pois em português essas palavras tem o mesmo significado que "regime" em inglês. No Brasil p. ex. o governo é (ou seria) de esquerda, mas o regime é (ou seria) de centro-direita. De qualquer maneira fica como está no blog.
      Grato
      Castor

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  2. Castor, o erro que eu detectei na tradução foi em "cinco nações norte-americanas" (que não são cinco). O original em inglês se refere a "cinco nações LATINO-AMERICANAS". É isso o que consta o original em inglês.

    Abraço.

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