sexta-feira, 4 de junho de 2010

Entrevista com Iara Lee: "Era tanto sangue na minha frente"

Entrevista com Iara Lee: "Era tanto sangue na minha frente"

Duas noites sem dormir. As imagens dos colegas mortos e feridos provavelmente jamais sairão de sua mente. A voz transparece muito cansaço, indignação e revolta. A cineasta brasileira Iara Lee ainda custa a acreditar que os soldados israelenses promoveram um massacre no barco Mavi Marmaris, o quinto da flotilha Liberdade, organizada pela ONG turca Fundação para os Direitos Humanos, Liberdades e Ajuda Humanitária (IHH). "O que eles ganham matando ativistas da paz? O que eles ganham com isso?", questionou Iara, em entrevista por telefone ao Correio/Diario, de um hotel em Istambul (Turquia).

Quando a carnificina teve início, ela foi mandada para a parte de baixo da embarcação, com as outras mulheres. Ao procurar o cinegrafista, subiu ao convés e presenciou o terror. "Era tanto sangue na minha frente. Eu estava prestes a vomitar", contou. Durante a entrevista, Iara trabalhava na restauração de imagens do massacre feitas por seu cinegrafista, de nacionalidade sérvia. As cenas captadas pela câmera serão entregues à Organização das Nações Unidas, em Nova York, nos próximos dias. "São imagens dos feridos, dos mortos, das pessoas em pânico, as pessoas usando as máscaras contra gás lacrimogênio", disse a cineasta.

Aos 44 anos, a brasileira de ascendência coreana trabalhou na Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, e morou por 15 anos nos Estados Unidos. O ativismo começou a fervilhar com força em sua vida em 2003, depois que os Estados Unidos bombardearam o Iraque. Nos últimos anos, Iara adotou um estilo nômade. Morou no Líbano, na Tunísia, no Irã, na França e na Coreia. Em cerca de 20 minutos, ela deu detalhes do que ocorreu na madrugada da última segunda-feira e de como foi tratada pelo governo de Israel, na condição de prisioneira. Sócia da empresa Caipirinha Productions - baseada nos Estados Unidos -, Iara retornaria a Nova York na noite de hoje e, nos próximos dias, deve desembarcar no Brasil para consolidar projetos profissionais.

Do que a senhora se recorda daquela madrugada de segunda-feira?

A gente não dormiu aquela madrugada. A gente estava indo lá, em direção a Gaza. Ficamos muito surpresos porque eles atacaram no meio da noite, quando estávamos em águas internacionais. Porque isso é ilegal, né? A gente esperava uma confrontação com eles quando estivéssemos chegando lá, em Gaza, durante a manhã. Os caras vieram, mandaram metade dos navy (homens da Marinha) israelenses, mandaram aqueles zodiac, barcos de borracha. Eram 17 barcos de borracha. Rodearam nosso navio. Aí começaram a vir os helicópteros com os comandos, né, descendo e tal... Foi uma coisa surreal, de filme Apocalipse now mesmo, sabe? Não sei exatamente quando os comandos começaram a matar o pessoal ali na ponte, onde estava o controle do navio. É óbvio que, quando viram que havia quase umas 600 pessoas no nosso navio, devem ter falado: "Vamos ter que matar alguns para pegar o controle disso". Começaram lá já, matando o pessoal. Rapidamente pegaram o controle do navio.Tanto é que as mulheres ouviram pelo megafone uma voz que saiu falando: "Não tentem resistir porque os caras já pegaram o controle do navio, a gente não quer violência, fiquem calmas, bem quietinhas e todos os homens e mulheres não tentem reagir, o jogo acabou".

A senhora chegou a ver pessoas feridas?

Muitos feridos e mortos. Quando eles começaram, houve os tiros. Mandaram as mulheres para baixo e, depois de um te mpo, fiquei pensando: "Meu Deus, o que será que aconteceu com meu câmera? Será que o cara morreu?". Na hora que subi, comecei a ver os mortos e feridos. Não achei meu cinegrafista. Estava super agoniada. Só consegui vê-lo quando começaram a algemar todo mundo. Quando você vê algo que não está acostumado, seu corpo reage. Eu estava prestes a vomitar. Era tanto sangue na minha frente, tanta carnificina. Nunca tinha visto isso na minha vida. Eu morava em Beirute, em 2006. Tive a trágica experiência de presenciar os bombardeios israelenses no Líbano. Eles sempre conseguem te surpreender. As bombas de fragmentação no Líbano, as bombas de fósforo branco em Gaza. E, aqui, esses snipers e comandos contra civis do nosso navio. Os israelenses sempre têm a capacidade surpreendente de ir além de tudo o que seja ruim. Mas chegará uma hora que eles terão de confrontar a lei internacional. Não é possível que eles vão continuar se comportando dessa maneira. Os isra elenses ignoram a lei internacional. Se o mundo inteiro não fizer pressão, eles continuarão abusando.

O que aconteceu depois que os israelenses mataram os ativistas?

Depois que tomaram o controle do navio, eles começaram a algemar cada pessoa e mandá-las para cima. De lá, das águas internacionais, eles fizeram como os piratas, entendeu? Levaram a gente de uma maneira forçada para o porto de Ashdod, em Israel. Lá, fizeram todo mundo descer, processaram todo mundo, pegaram as digitais e passaportes, confiscaram os aparelhos Blackberry, aparelhos celulares e tudo o mais. Fomos passando, de guichê em guichê, dando os dados pessoais. Botaram a gente no camburão e nos mandaram para a prisão. E aí, acabou, entendeu? Aí, já não tinha mais comunicação com o mundo exterior, com advogados ou com a embaixada.

Que tratamento a senhora recebeu na prisão, em Beersheva?

O mais difícil de tolerar foi a gente não ter acesso imediato à embaixada, a advogados, à comunicação com a família. Algumas pessoas falaram com a família pela primeira vez ontem, quando entraram no avião em Tel Aviv. Pagaram US$ 10 por minuto para falarem que estão vivas. Os caras lá na cadeia não deixaram a gente fazer nenhuma ligação. Ficavam falando para a gente que seríamos deportados porque estávamos lá ilegalmente. Eu respondi: "Desde quando quisemos vir para cá? Estamos aqui porque vocês nos sequestraram, estávamos indo para Gaza". É um absurdo.

Durante a operação israelense, que imagens mais a chocaram?

O que mais chocou foi essa violência, assim. De guerra, sabe? De guerra mundial. Nós éramos muitos, mas éramos civis. Não tinham snipers (franco-atiradores), como eles vieram, entendeu? Os caras vieram como snipers. É uma coisa muito desproporcional. Isso ficou muito chocante. Eu sei que eles são muito brutais. Pensei: "Bom, eles vão atirar no pé, vão botar um navy para bloquear nossa passagem, vão fazer uma sabotagem debaixo do nosso barco pra gente ficar atolado (sic)". Pensei em todas essas circunstâncias. Mas os caras realmente surpreenderam, porque eles foram lá para fazer uma carnificina. Não achei que eles fossem chegar a esse ponto de tanta violência, sabe? Achei que foi burrice da parte deles também. O que eles ganham matando uns ativistas da paz? Ficaram com uma reputação terrível. Como eles cortaram todos nossos satélites, acharam que fariam esse minimassacre aí e ninguém no mundo ia ver. Esse foi o grande erro deles. Tínhamos um satélite de backup e aí as imagens foram para o mundo inteiro. Os caras devem ter ficado injuriados, né? Eles pensaram que iam chegar lá de madrugada, matar o pessoal e ninguém no mundo inteiro teria uma evidência, entendeu?

Alguns ativistas acusam Israel de jogarmortos ao mar e de impedir socorro médico aos grave mente feridos. Isso procede?

A gente não viu, assim... Os corpos jogados. Mas há pessoas que sumiram totalmente. Não estão feridos, não estão mortos, não estão em nenhum lugar. Uma das coisas que a gente começa a cogitar é que, de repente, eles caíram no mar. É preciso uma investigação internacional imparcial. São desaparecidos, são feridos e são mortos. Muitos feridos não tiveram atenção imediata e morreram.

Além das imagens de satélite, há gravações de vídeo?

Sim. Estamos olhando esse material. Eu vou levar amanhã (hoje) à noite para Nova York. As cenas foram gravadas por meu cinegrafista, um jovem sérvio, muito corajoso. São imagens dos feridos, dos mortos, das pessoas em pânico, as pessoas usando as máscaras contra gás lacrimogênio. O pessoal da imprensa escondido, os helicópteros descendo, os barcos de borracha chegando, no meio da madrugada. São coisas assim. Vamos entregá-lo na ONU e tentar mostrar as evidências. Israel usou material que era apenasdo interesse dele. Meu cinegrafista escondeu os cartões de memória e conseguimos sair com o material. Estamos no meio da montagem, para restaurar a gravação. Os chips tiveram problemas técnicos. É uma boa quantidade de material, que dá para dar uma ilustrada do que aconteceu lá. Quando os snipers chegaram perto, meu cinegrafista viu que seria assassinado e parou a gravação.

Especialistas em terrorismo acusam a ONG IHH de manter laços com o Hamas e com a Al-Qaeda. Segundo Israel, havia militantes pró-Hamas infiltrados entre os pacifistas...

Dentro de nosso grupo, de centenas de pessoas, pode que ser tenha pessoas que se simpatizem com o Hamas. Como fiquei sabendo que teve espião israelense lá também, entendeu? Tem gente que era voluntário, enfermeiro, ativista, simpatizante de partidos políticos. O pessoal de Gaza votou para o Hamas. Não foi u ma coisa forçada, entendeu? Quando essas pessoas têm a democracia e votam para o partido do qual Israel e os EUA não gostam, eles chamam de terrorista. Agora, terrorista é o estado de Israel, se você for pensar, e os EUA, que estão lá matando no Iraque e no Afeganistão. É irônico você pensar que os israelenses podem chamar o Hamas de terrorista. Veja o que eles fazem contra inocentes num barco com carga humanitária...

Como ficou sabendo da presença de espiões de Israel dentro do barco MaviMarmaris?

A gente nunca sabe. Mas eu estava lendo o Jerusalem Post (jornal de Israel) e os caras estavam falando lá até das letras das músicas que estávamos cantandodentro do barco. Eles disseram que tinha gente cantando músicas de letras contra os israelenses. Como é que essas informações saem? Tem uns penetras lá, que obviamente são espiões.

O premiê Benjamin Netanyahu acusou o mundo de hipocrisia e descartou o fim doembargo a Gaza. Como vê isso?

(Risos) Eu tenho que ver para crer. É que nem quando o Egito fala que abriuas fronteiras, em Rafah. Aí sai uma notícia de que o Egito aceitaria aentrada de ajuda humanitária. Tem toda essa politicalha, essas manipulações.Os caras sempre tem os trâmites escondidos nos anúncios que eles fazem. Épreciso ler o que está entre as linhas.

A resposta da comunidade internacional tem lhe surpreendido?

Pois é... São tantos países representados. Era um negócio civil, de cargahumanitária. É claro que nosso intuito não era só ficar dando esmola para ospalestinos. Nosso intuito era de fazer a comunidade internacional ver queaquilo (embargo) era uma coisa não humana, uma coisa ilegal. Eles têm quedeixar entrar medicamento e comida. Ter acesso à água limpa. Reconstruir opaís destruído. É óbvio que estamos provocando Israel. A gente acha que essalei é injusta. Como é qu e você pode bloquear o pessoal de Gaza, não deixarcomida e aceitar? Não pode entrar nada pela terra, pelo oceano e pelo ar. Eos caras ficam lá, naquele campo de concentração a céu aberto? Como isso épossível? É uma punição coletiva. Porque os israelenses não gostam do Hamas,eles vão lá e punem a população inteira de Gaza. É um absurdo, contra a leiinternacional.

Quais são seus planos? O incidente com a flotilha vai mudar seus projetos?

Eu posso lhe garantir 100% que todos que estavam em nosso navio, depois quetiveram essa experiência brutal, ficaram mais dedicados à ideia de trazerjustiça para o mundo. Pessoas que estavam lá como voluntários avisaram quevão virar ativistas. É inaceitável essa brutalidade, entendeu? É uma coisameio bumerangue. Os israelenses fizeram uma coisa meio contra eles mesmo. Umacoisa psicótica, não racional. Na flotilha, tinha a comunidade europeiarepresentada, além do pessoal árab e, da Malásia e dos Estados Unidos.

Entrevista concedida ao Diário de Pernambuco e enviada por Urariano Mota