segunda-feira, 21 de junho de 2010

“POPULISTA EXTREMISTA”

Laerte Braga

Arnold Toynbee entendeu, num determinado momento da guerra fria, que um confronto entre as duas grandes superpotências militares – EUA e URSS – seria inevitável. Para o historiador não havia sentido em todo aquele arsenal se não fosse a perspectiva real de guerra.

A partir daí, acreditou ele, que o mundo a renascer após o que chamou de “hecatombe nuclear”, teria um caráter puritano severo, regido por ditaduras tribais – os grupos sobreviventes.

Os EUA engoliram a URSS. O caráter puritano severo é uma realidade na hipocrisia do capitalismo e as ditaduras não são tribais. Escoram-se no poder militar dos EUA e no que chamam de “nova ordem política e econômica”. A globalização, que não passa de “globalitarização”, máxima precisa do geógrafo brasileiro Milton Santos.

Há dias uma afiliada da REDE GLOBO mostrou o padre Fábio Melo, sucesso de vendagem em CDs religiosos, parabenizando os tantos anos de atividades da tal afiliada. Garoto propaganda no melhor estilo Renovação Carismática. A tentativa da Igreja Católica de reverter o avanço das seitas e igrejas neopentecostais, aproveitando e usando os mesmos métodos de “bispos” padrão Edir Macedo.

O jornal oficial do Vaticano L’OSSERVATORE ROMANO rotulou o escritor português José Saramago de “populista extremista”. É a típica linguagem que latifundiários, por exemplo, usam quando se fala de reforma agrária. Ou banqueiros, quando se critica o sistema financeiro internacional.

Um grupo de jogadores da seleção do Brasil fez chegar há cerca de duas semanas ao técnico Dunga que não estava mais suportando a pressão de jogadores e integrantes da Comissão Técnica evangélicos, para que aceitassem “Jesus em seus corações” e vestissem a camisa de “eu amo Jesus”.

Ganhariam a salvação e naquele momento um por fora para veicular a crença. Do jeito que as empresas de material esportivo pagam a atletas para que usem produtos de suas marcas.

Uma das idiossincrasias vaticanas em relação a Saramago está numa afirmação contida no livro do escritor português O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO. Ele, Cristo, teria perdido e com Maria Madalena a sua virgindade.

Sionistas enxergavam em Saramago um anti-semita.

A forma candente da crítica feita pelo jornal oficial da Igreja Católica a Saramago não é comum. De um modo geral o Vaticano trata mortes de críticos do catolicismo com notas frias, sem maiores considerações, notas assépticas.

O furor da crítica só faz acentuar o caráter fascista do papado de Bento XVI. É diferente do de João Paulo II. O papa anterior usava luvas para não sujar as mãos de sangue na tortura inquisitória perpetrada, por exemplo, contra o brasileiro Leonardo Boff. Ratzinger deixa a mostra seu coração suástico.

Não existe na história da humanidade ditadura mais cruel, perversa e duradoura que a da Igreja Católica. A forma como são sufocados os que se opõem, por dentro, a essa barbárie religiosa, não difere da usada por ditadores clássicos se podemos definir Pinochet assim, ou qualquer outro. Trujillo assistia à missa todos os domingos.

Os militares golpistas que derrubaram o presidente de Honduras, Manuel Zelaya, o fizeram com as bênçãos do cardeal hondurenho e entraram no Palácio Presidencial carregando um imenso crucifixo. Como antes, em 2002, o cardeal venezuelano estava ao lado de Pedro Carmona e seu golpe macarrônico contra Chávez.

O avanço das seitas e igrejas neopentecostais em todo o mundo – se voltam agora para tentar chegar aos países islâmicos – tem a bênção dos senhores do mundo em Washington e Wall Street, embora boa parte das lideranças prefira ficar em Miami, caso do brasileiro Edir Macedo.

Os papados de João XXIII e de Paulo VI foram desmontados por seus sucessores (não estou levando em conta João Paulo I, vítima da burocracia fascista do Vaticano nas pressões “outra” Igreja, durou apenas um mês).

Na prática, a nova ordem econômica ou a globalização, como chamam, é a nova ordem religiosa. O neoliberalismo. Como cruzados são os que na estupidez da barbárie, da tortura, de todas as formas de violência possíveis tentam “evangelizar” povos “pagãos”, na esteira do novo deus, o Mercado.

O que tudo regula, se auto regula inclusive.

No Brasil ganhou uma nova adepta, a senadora Marina da Silva. Fez tratamento para engolir e digerir sapos sem maiores danos ao seu estômago. Consciência já era.

“Evangelizam” no Iraque, no Afeganistão, em Honduras, na Colômbia, no Paquistão, tentam estender suas garras a outros cantos.

A Igreja Católica é como a Europa hoje. Um negócio assim de pedestais de ouro, erguido em barões, viscondes, condes, marqueses, duques, príncipes, reis e rainhas.

Fellini dimensionou isso com fulminante precisão em ROMA DE FELLINI. Nos vários modelitos capazes de encantar sua eminência e no brilho fascista de Pio XII. O tamanho do gênio, a capacidade da percepção do próximo capítulo nessa grotesca história de Marcelo Rossi salvando almas e vendendo CDs.

Se há luz, necessariamente tem que haver sombra. Os técnicos não entenderam assim. A luz de uma vela carregada por Roberto Benigno enquanto subia uma escada do lado de fora de um celeiro era insuficiente para gerar sombra. O gênio de Fellini quis a sombra e a sombra gerou todos os debates sobre esse lado sombrio da luz.

“Vocês são apenas técnicos, gênio aqui sou eu”. “Quero mar de papel crépon”.

Saramago, ao contrário do que dizem os porta-vozes da Igreja não hostilizou a convicção católica. Esse é um problema individual de cada um. E tampouco negou erros e crimes supostamente praticados por governantes da antiga União Soviética.

Ao contrário. Aceitou as evidências, as narrativas e os fatos apresentados, apenas reafirmou sua convicção. Um católico não tem culpa por Bento XVI. O caráter perverso do papa não pode ser estendido ao fiel. Nem o banditismo de Edir Macedo àquele que crê piamente que o dízimo constrói casa na vida eterna.

E nem a obra de José Saramago pode ser vista apenas sob esse ângulo. Não era um escritor que fazia do anti-catolicismo a razão de ser de sua obra. É pretensão demais cingi-la a isso. Apenas detectou um dos cânceres. Entendeu o mundo como um todo capitalista a subjugar seres humanos e transformá-los em objeto de uma engrenagem bárbara, “neomedieval” como dizia, mas recheada de tecnologia.

Transcende à dimensão anã do catolicismo de Bento XVI. Projeta-se na compreensão que vivemos o dilema extremo do ser humano.

Ou somos objeto dessa nova ordem, ou nos rebelamos e construímos outra ordem possível e desejável.

Daqui a mil anos, se alguma coisa e alguém ainda existir, com certeza, Saramago será lembrado. Bento XVI vai constar apenas daqueles almanaques em que se lista quem foi papa, ou a ordem dos papas desde a fundação da Igreja.

“Populista extremista”. Não pesquisei, mas se alguém o fizer vai encontrar a raiz dessa expressão em algum momento de Hitler. Com certeza.