terça-feira, 15 de junho de 2010

BOOK REVIEW - Guerra infinita

Pepe Escobar resenha livro de Tom Engelhardt The American Way of War*

5/6/2010, Asia Times Online Tradução de Caia Fittipaldi


Although the masters make the rules

For the wise men and the fools

I got nothing, Ma, to live up to

Bob Dylan, It's Alright Ma (I'm Only Bleeding)


Tom Engelhardt é “um tesouro nacional” – como diz, com perfeição, o professor Juan Cole da Universidade de Michigan. É tesouro como homem, autor, craque editor de livros e mestre de cerimônias do excepcional website TomDispatch.com – projeto do Nation Institute. – Seu mais recente livro reúne 29 ensaios originalmente publicados online, de março 2004 ao início de 2010, apenas ligeiramente reformulados. Títulos de livro são títulos de livro. Mas, nesse caso, lá está, tudo resumido: os EUA que conhecemos, definidos e explicados pelo próprio ethos – a guerra.


“War”, megasucesso da era do Vietnã, da Motown de 1970, letra de Whitfield-Strong, na voz de Edwin Starr, dizia:

War ... huh ... yeah [Guerra...]

What is it good for? [Para que serve?]

Absolutely nothing. Say it again y'all. [Para absolutamente nada. Repitam todos!]


Mas se o assunto for o complexo industrial-militar dos EUA, a guerra é tudo, serve para absolutamente tudo. O livro de Tom nos leva nessa viagem. Embora seja paisagem conhecida de todos que acompanharam as guerras de George "Dábliu”, não é agradável vê-la ou revê-la; e nos empurra na direção de um buraco negro em nossa alma coletiva.


Muito adequadamente, a coleção de ensaios é homenagem a Chalmers Johnson e seu incansável, trabalho sempre em andamento, de análise do império global das bases dos EUA, em livros que vão e Blowback [ricochete] a Nemesis. Está tudo lá – a novilíngua do “guerra-é-paz” dos norte-americanos, tão prezada pelos guerreiros de poltrona, neoconservadores do Projeto para um Novo Século Americano.


Mas... terá sido sempre assim? Na verdade, não. Nem sempre foi assim. No começo, especialista em vasculhar páginas da mídia, Tom, nosso craque, nos leva pelas páginas do New York Times apenas alguns dias antes do 11/9. E – surpresa! – ainda não se via lá nenhum, nem um único, dos suspeitos de sempre!


"Saddam Hussein não estava nos jornais, naquela semana. Nem se falava de Kim Jong-il. Osama bin Laden mal começava a aparecer, em letra impressa – como “acusado de terrorismo”, apoiado por um estranhíssimo governo “de Talibãs” [“estudantes do islamismo”]. O “eixo do mal”, claro, ainda não existia, como tampouco existia a “guerra global ao terror”. O potencial inimigo da semana, empurrado para o centro do palco pelo ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld (ele mesmo na defensiva, atacado por ter pedido novas verbas de orçamento, e em discussão com os generais), era “a China”, também chamada de “crescente ameaça chinesa”.


O Irã... mal passava de um blip remoto, no radar dos noticiários; a Síria, era como se nem existisse. Tampouco se ouviam quaisquer dos nomes que passamos a considerar como segunda natureza ‘natural’, em todos os noticiários do pós-11/9. Nada de "Scooter" Libby[1], Valerie Plame[2]. Nem sinal, nos jornais, de Paul Wolfowitz[3], John Bolton ou Douglas Feith[4].


E, exatamente quando uma parte da oligarquia estava a um passo de eleger a China como URSS-2, em remix da Guerra Fria para o século 21, tropeçaram em inimigo muito mais fraco e muito mais conveniente: o “terror islâmico”.


Em si mesmo, nascido do livro dos recordes, pode-se muito bem dizer que “o terror islâmico” é pura ficção – invocada para legitimar uma guerra fabricada contra algumas nações muçulmanas – e que se converteu em máscara atrás da qual se ocultou a mesma velha agenda da Guerra Fria, unilateral e dominante.


Quanto ao 11/9, parece haver algum exagero no uso que se dá ao testemunho de Khalid Shaikh Mohammed, cérebro da Al-Kaeda, e testemunho extraído pela CIA mediante tortura. – A verdade é que pouquíssimos, no início do ano 2000, tinham informação aproveitável, em quantidades suficientes para sequer tentar desmontar a versão oficial do 11/9, a qual, mais cheia de furos, impossível.


O grande mérito do livro de Tom é a análise que oferece da linguagem do império. De como os que controlam o poder e as armas, controlam também a Palavra. Na ausência de um Barthes, um Lacan, um Derrida – que saberiam diluir o grosso ‘cru’ da novilíngua dos norte-americanos, mas ao preço de milhares de páginas –, Tom trabalha contra o estado atual do jornalismo corporativo contemporâneo. Para entender, basta ver como se calcula o valor da vida e da morte, em termos de espaço nos jornais norte-americanos:


“Em termos crus, é alguma coisa como: uma criança branca e loura sequestrada e assassinada na California = [é igual a] 300 egípcios afogados em acidente ferroviário; 3.000 mortos em enchentes de monções em Bangladesh; 300 mil congoleses assassinados numa guerra civil sangrenta.”


A linguagem do império é operação ininterrupta de dessensibilização – com seu cortejo de “forças anti-iraquianas”, “dead-enders”[5], “bitter enders”[6], “remanescentes do Partido Ba’ath”, “terroristas”, “insurgentes” (“guerrillas”, a palavra, nem pensar), “bombeamento por ar” [em vez de “bombardeio”], “operações encobertas” (“clandestinas”, a palavra, nem pensar!) e “dano colateral”. O Outro nunca sofre. O sofrimento jamais aparece associado ao invisível Outro.


E os jornalistas norte-americanos são sempre “embedded” [incorporados] nos batalhões de soldados norte-americanos. Mesmo que muitos ganhem muito dinheiro depois dessa ‘incorporação’ e até conquistem Hollywood, como no caso de The Hurt Locker, premiado com vários Oscars.


Não surpreende que Tom encontre material riquíssimo para compilar no que define como “Dicionário da Fala do Império Americano”.


Guerra e terror. Guerra ao terror. Unidos para sempre e nem a morte os separa.


Tom chama a atenção para o quanto o continuum George W Bush-Barack Obama – que vem imediatamente na sequência do continuum Bush pai-Bill Clinton – está impregnado pela obsessão do terror. “A obsessão do terror é legado de Bush que nenhum presidente conseguirá reverter tão cedo, supondo-se que algum presidente consiga reverter algum dia.” Não surpreende. Como sabem todos os alunos que estudam História dos EUA, a “indispensável nação” que os neoconservadores tanto reverenciam foi construída sobre vasto território e riquezas de subssolo “libertados” – pelo terror, por atos de terrismo e por terroristas – das garras dos norte-americanos nativos.


Porque enfrenta a linguagem do império, Tom tem de fazer algumas paradas técnicas no percurso, para examinar a hagiografia dos guerreiros-servidores do Império. Como o general Stanley McChrystal, ex-protegé de Rumsfeld, encarregado do Comando das Operações Conjuntas Especiais – o esquadrão executivo de morte e tortura que opera no Iraque – e que sempre sonhou sonhos molhados em que aparece o ‘AfPak’, quer dizer, uma guerra só, estendida, para toda a Ásia Sul/Central.


McChrystal simboliza um elo imperial crucial – “ao mesmo tempo figura-legado que encarna os piores dias da era Bush-Cheney-Rumsfeld e o filho primogênito da era Obama: o crescente desespero e a histeria cada dia mais violenta sobre as “guerras herdadas”.


Um exército de estenógrafos imperiais saudou o “intelectual-guerreiro” McChrystal como uma espécie de cavaleiro de Jedi; tanto quando o homem que o escolheu, comandante do CentCom general David Petraeus, foi divinizado à moda do Anel wagneriano (com teleguiados). Sobre o general Petraeus, Tom é sucinto: “O maior talento de David Petraeus é (...) fazer avançar a carreira de David Petraeus.” Quanto a McChrystal, está mais para cruza do Kurtz de Joseph Conrad em No Coração das Trevas e Capitão Willard no Apocalypse Now de Coppola.


Quanto aos que creram em Obama, deve-se esperar que naufraguem num vale de lágrimas. Como se a destruição da Constituição dos EUA pela guerra ao terror de Bush/Cheney não bastasse, o governo Obama ainda expandiu a ultravaga definição de “terrorista” de modo a incluir “extremistas domésticos” – cidadão norte-americano que não concorde com as políticas pró-hegemonia mundial dos governos dos EUA. Referindo-se à política de Obama para o ‘AfPak’, Tom chama a atenção para o sucesso do Pentágono na operação para “enquadrar um presidente que já se deixou prender num conflito que ele mesmo chamou de “a guerra Certa” e de “guerra necessária”. Com o que se demonstra que “o presidente Obama acabou, em essência, onde o general McChrystal começou."


Seriam trivialidades digans de Monty Python, não fosse a tragédia – para os norte-americanos e para os não norte-americanos que cresceram amando o melhor que os EUA tinham a oferecer. Gore Vidal avisou, durante décadas, de que o complexo industrial-militar havia sequestrado a república norte-americana. Não só o complexo – também o lobby da indústria farmacêutica, o lobby das empresas de seguros, Wall Street e o Grande Petróleo, o “Big Oil”. A destruição em curso hoje, provocada pela British Petroleum de sistemas ecológicos de valor inestimável no Golfo do México é mal-gêmeo da debacle financeira provocada em 2008 por Wall Street e que também prossegue, ainda sem remédio. “Make no mistake” [Não se enganem] – conforme expressão que jamais falta nos discursos de Obama; esses poderes corporativos oligárquicos jamais serão afastados da república, pelo voto dos cidadãos; e nunca, em tempo algum, serão poderes realmente transparentes e auditáveis.


O livro de Tom – que deve ser lido ao mesmo tempo que Full Spectrum Dominance, de F. William Engdahl – tem valor inestimável, por mostrar o modo como o império caminha e vai narrando a caminhado, enquanto caminha. A conclusão é que “é tempo de Pentágono. O Pentágono financia o relógio e esse tic-tac rumo à eternidade. Não há saída. Sim. O caminho do novo sonho americano – da dominação de pleno espectro – segue adiante, até o fim dos tempos.


O leitor pode, se quiser, extrair daí conclusão muito mais sombria. Pouco sabe a maioria dos que vivem numa sociedade perversa, baseada na guerra, sob economia baseada na guerra – e sem nem se dar conta disso –, que a república norte-americana, para todas as finalidades práticas, está morta. Morta e fria.


Notas de tradução:


* ENGELHARDT, Tom, 2010. The American Way of War: How Bush's wars became Obama's [O modo norte-americano de fazer a guerra: de como as guerras de Bush tornaram-se as guerras de Obama]. Haymarket Books (nas livrarias dia 1/6/2010). ISBN-10 1608460711. US$16,95, 269 p.

[1] Ver “Who is Scooter Libby?”

[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Valerie_Plame

[3] http://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Wolfowitz

[4] http://en.wikipedia.org/wiki/Douglas_J._Feith .

Todos esses nomes, são altos funcionários do governo Bush.

[5] Expressão inventada por Donald Rumsfeld, no final de 2003, para designar os últimos defensores de Sadam que se opunham à ocupação pelos EUA. Rumsfeld falou sobre esses “dead enders” [literalmente, em tradução expletiva: “os que lutam num beco sem saída, sem ter para onde escapar”]. Para ver mais, há transcrição de longa entrevista, sobre “dead enders”, em http://www.defense.gov/Transcripts/Transcript.aspx?TranscriptID=3071

[6] Outra expressão também frequente nas entrevistas e falas de Donald Rumsfeld. Ver, por exemplo:

http://www.defense.gov/transcripts/transcript.aspx?transcriptid=1210 .

Os “bitter-enders” – outra palavra de difícil tradução para o português – são os que lutam até ‘o amargo fim’; no caso da invasão do Iraque, designava os últimos que ainda resistiam.


O artigo original, em inglês, pode ser lido em: The American Way of War