Traduzido por Caia Fittipaldi
A decisão do Brasil, com a Turquia, os dois países membros não-permanentes do Conselho de Segurança da ONU (CSONU), de votarem contra o último esforço liderado pelos EUA para impor sanções mais duras contra o Irã dia 9/6 e que visa a fazer abortar o programa nuclear da República Islâmica, reflete mudança importante no panorama geopolítico global, marcada por um declínio do poder dos EUA, com volta à política de multipolaridade.
A recusa do Brasil – que votou contra a Resolução n. 1.929 do CSONU –, aparece imediatamente depois de um bem-sucedido acordo mediado por Brasil e Turquia, firmado dia 17/5, para viabilizar uma troca de urânio baixo enriquecido por combustível nuclear, para esvaziar as preocupações sobre ambições nucleares de Teerã e para evitar uma escalada nas tensões regionais.
O consistente movimento do Brasil, para inserir-se no centro de uma das questões mais difíceis dos negócios internacionais, combinado ao movimento de unir-se à Turquia em evidente desafio ao paradigma da diplomacia comandada pelos EUA, no que tenha a ver com as relações com o Irã, é emblemático da aspiração dos brasileiros de alcançar status de mais poder, inspirada por nova definição do que seja uma legítima nova força diplomática, econômica e militar.
O movimento do Brasil, de envolver-se na diplomacia do Oriente Médio deve, pois, ser analisado no contexto de ascensão continuada desse país no contexto internacional. Ao mesmo tempo, a defesa diplomática do Irã, pela diplomacia brasileira, também chama a atenção para a significação dos laços que passam a aproximar Teerã e a matriz energética sul-americana.
Ao mesmo tempo em que muitos analistas continuam a maravilhar-se ante a estatura do Brasil como potência emergente e como ator protagonista na diplomacia do Oriente Médio, há também os que se dedicam a acompanhar outra tendência, ainda não bem compreendida, que tem grandes implicações geopolíticas; que acontece bem próxima dos EUA, no hemisfério ocidental; e cujos temas e ideias dominaram as manchetes nos últimos anos.
O Irã assumiu sua própria missão ambiciosa, de expandir sua influência na América Latina e Caribe, região onde o Irã, tradicionalmente e até há bem pouco tempo, manteve presença diplomática, econômica ou militar pouco expressiva ou absolutamente inexpressiva. A interface hoje
Nos círculos da imprensa e das relações internacionais, dominam, até agora, denúncias de laços entre Teerã e militantes islâmicos que operariam na América Latina e envolveriam simpatizantes nas comunidades muçulmanas locais e na diáspora; esse parece ser o discurso dominante para analisar as vias que o Irã escolheu para aproximar-se da América do Sul e Caribe.
Não surpreende, pois, que muitos dos analistas midiáticos e também analistas acadêmicos que acompanham os negócios entre Oriente Médio e América Latina ainda insistam em analisar os movimentos do Irã sob o prisma da segurança. O Irã, dizem vários analistas, teria uma tradição de exportar seu islamismo revolucionário para o Oriente Médio ampliado, já desde os anos 1980s e 1990s; essa exportação viria acompanhada do apoio iraniano aos militantes islâmicos que se opõem à situação vigente na Região e até agora modelada pela política dos EUA. Esses analistas jamais esquecem o apoio que o Irã dá ao Hizbollah do Líbano, e que levou a ações contra alvos israelenses e judeus na Argentina nos anos 1990s; para esses analistas, essas ações devem ser tomadas como casos exemplares, a partir dos quais avaliar as intenções de Teerã no movimento em direção à América do Sul e Caribe.
O fato de o Irã ter buscado os oponentes que mais falam contra os EUA na Região, a saber Venezuela e Cuba, dentre outros, além de tradicionais aliados próximos dos EUA, também fez soar sinais de alarme. Segundo esse ponto de vista, a crescente presença do Irã nas Américas constituiria ameaça direta aos EUA e à segurança regional – tema sempre recorrente nos círculos do governo dos EUA.
O secretário de Defesa dos EUA Robert Gates manifestou preocupação pelo que chamou de “atividade subversiva” do Irã na Região, em depoimento que prestou ao Comitê das Forças Armadas do Senado norte-americano dia 27/1/2009. Antes de embarcar em viagem pelas capitais regionais, dia 28/2/2010, a secretária de Estado Hillary Clinton disse ao Subcomitê de Operações no Estrangeiro que o Irã estaria “no topo” de sua agenda para aquela viagem.
Relatório de abril de 2010, do Departamento de Defesa dos EUA, também declara que há membros do grupo “Quds [Jerusalém] Force”, unidade de elite, para operações especiais, do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica [ing. Islamic Revolutionary Guards Corps (IRGC)] iraniano, presentes na América Latina, especialmente na Venezuela.
O argumento de que a crescente presença do Irã no continente americano seria ameaça à segurança da Região não vê – ou opera como se não visse – o pragmatismo que guia todas as atividades do Irã na América e Caribe, para não falar da evidência de que Teerã está sendo recebida de braços abertos.
A sequência de encontros bilaterais de alto nível entre os presidentes de Irã, Venezuela, Brasil, Cuba, Nicarágua, Equador e Bolívia, dentre outros, nos últimos anos, com visitas recíprocas de líderes regionais a Teerã, que já produziram inúmeros acordos políticos, econômicos, de energia, culturais, militares e científicos, são caso a considerar.
Além disso, trocas diplomáticas e contatos comerciais sempre crescentes entre o Irã e parceiros na Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai, Peru e México, combinadas com a criação de novas embaixadas iranianas, ilustram o rápido desenvolvimento das relações da República Islâmica com a Região.
Dados distribuídos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2009 e analisados pelo periódico Latin Business Chronicle informam que o volume de comércio entre o Irã e a Região ampliada (US$2,9 bi) é hoje quase o triplo do que foi entre 2007 e 2008; o comércio entre Brasil e Irã alcançou $1,3 bi no mesmo período, aumento dramático de 88% em relação a 2007. O Brasil é a maior fonte de exportações para o Irã, na América Latina.
A Sociedade Crescente Vermelho, iraniana, enviou toneladas de produtos de ajuda humanitária e uma equipe de médicos e profissionais de saúde imediatamente depois do terremoto que devastou o Haiti dia 12/2010. E o Irã prometeu centenas de milhões de ajuda econômica, em empréstimos com juros reduzidos, a Nicarágua, Bolívia, Saint Vincent e a Granada.
Fazer avançar uma diplomacia de defesa
A estratégia do Irã na América Latina é movida por muitos fatores. Como país ainda sujeito a campanha comandada pelos EUA para isolá-lo na arena internacional, o Irã definiu como prioridade estratégica construir e cultivar ampla rede de relações bilaterais, no esforço para escapar das tentativas de paralisar o país.
O Irã também trabalhou diligentemente para ampliar sua capacidade diplomática, para resistir às ameaças de ataque vindas dos EUA e especialmente de Israel, contra seu programa nuclear. Nesse contexto, a estratégia do Irã, de expandir laços na América Latina e Caribe visa a duas metas principais: primeiro, permite que o Irã proteja-se e proteja setores críticos da sociedade iraniana – a economia, principalmente –, ante as agressões de um regime de sanções cada vez mais violentas; assim, aumenta a capacidade iraniana para resistir às pressões norte-americanas para que mude seus comportamentos; em segundo lugar, ao cultivar rede variada de relacionamentos, inclusive relações baseadas em negócios lucrativos e delicada diplomacia com governos que Washington condenou ao ostracismo, o Irã trabalha para assegurar que o maior número possível de países tenham real interesse em manter negócios continuados com o Irã.
Esse aspecto da estratégia iraniana permite que o país conte com o apoio de países que, antes, não tinham qualquer interesse direto na questão das sanções contra o Irã. Essencialmente, a abordagem que o Irã está construindo em relação à América Latina e Caribe é política de diversificação diplomática.
A pesada presença dos exércitos norte-americanos no Oriente Médio ampliado também influenciou profundamente o cálculo estratégico de Teerã, no que tenha a ver com a estratégia para a América Latina e Caribe. A existência de uma aliança liderada pelos EUA, que reúne uma Israel nuclear e regimes árabes pró-EUA, deixara o Irã praticamente isolado e potencialmente vulnerável a ataques.
As fronteiras leste e oeste do Irã, por exemplo, são sitiadas por dezenas de milhares de soldados norte-americanos no Afeganistão e Iraque, respectivamente; e a presença dos EUA não para de aumentar também no vizinho Paquistão.
A paisagem regional também é toda marcada por bases militares dos EUA e há robusto deslocamento de forças navais no Golfo. A garantia de segurança que os EUA oferecem a países vizinhos do Irã são também motivo de alta ansiedade
Com isso em mente, as entradas do Irã na América Latina e no Caribe são meio para implementar uma diplomacia de defesa, meio pelo qual, de fato, a República Islâmica pode resistir aos EUA. Assim sendo, vê-se que é o Irã quem mostra capacidade e competência no manejo do ‘soft power’, em região que Washington sempre viu como sua esfera exclusiva de influência.
A volta da revolução
A entrada do Irã na América Latina e Caribe jamais se teria materializado sem o encorajamento ativo de parceiros regionais interessados. Mas como, afinal, a República Islâmica conseguiu angariar tantas doses de boa-vontade empenhada, do Caribe ao Cone Sur?
Não se consegue entender o sucesso da diplomacia iraniana se não se considera a mudança tectônica à esquerda pela qual passou um eclético ‘mix’ de tendências populistas esquerdistas de várias linhagens que assumiram o poder em todo o hemisfério a partir do final dos anos 1990s. Essas tendências, unidas em torno de um mesmo ceticismo quanto aos objetivos da política externa dos EUA, e aspirando a seguir vias independentes que mais rapidamente levassem seus países para bem longe das ortodoxias econômicas neoliberais pregadas por Washington – o nascimento de uma nova política revolucionária determinada a não se submeter às estratégias dos EUA para a Região – ofereceram ao Irã a audiência receptiva de que carecia para fazer avançar suas iniciativas, e vasta cesta de amigos.
Uma nova modalidade de política revolucionária na América Latina, à qual não falta o discurso anti-imperialista dirigido contra os EUA, combinou-se perfeitamente à política externa iraniana. Apesar dos traços islâmicos xiitas do regime, Teerã adotou abordagem realista na diplomacia para as Américas, na qual enfatizou o anti-imperialismo, as lutas populares por justiça social e a preservação da independência e da soberania nacionais mediante a solidariedade Sul-Sul.
Irã também usou com eficácia instituições como o Movimento dos Não-alinhados, para procedimentos de aproximação com países-membros na América Latina. Há notável superposição de discursos assemelhados vindos de Teerã e de capitais regionais como Brasília, Caracas,
Irã tem usado suas competências como fonte de resistência no Oriente Médio, ao lado de Síria, do Hizbollah, do Hamás em Gaza (e ocasionalmente de Turquia e Qatar) numa frente de resistência contra aliados dos EUA, contra Israel e contra o bloco de regimes árabes pró-EUA liderado pela Arábia Saudita e Egito. O Irã está confortável nessa posição.
A superextensão das forças e dos recursos diplomáticos dos EUA para o Oriente Médio expandido e para o Leste da Ásia, e o destaque absoluto da luta contra o terrorismo em anos recentes também relegaram a América Latina a espaços marginais em termos de política externa dos EUA e das prioridades de segurança
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Iran's new revolutionary politics