quinta-feira, 17 de junho de 2010

Estados párias não escolhem aliados

Israel e a África do Sul do apartheid

24/6/2010, Bernard Porter, London Review of Books, vol. 32, n. 12, pp. 8-10

Resenha de POLAKOW-SURANSKY, Sasha. The Unspoken Alliance: Israel’s Secret Relationship with Apartheid South Africa, Pantheon, 324 pp, $27.95, maio-2010

Traduzido por Caia Fittipaldi

Esse livro chamou muita atenção quando apareceu nos EUA, em maio-2010, porque, à primeira vista, comprovava uma oferta, feita por Israel, para vender armas nucleares à África do Sul do apartheid. A oferta aconteceu já há certo tempo, mas ainda causa embaraços à Israel atual, sobretudo às vésperas do início de negociações de alto nível que visam à não-proliferação nuclear focadas no Oriente Médio (por razões óbvias, a discussão causa hoje menos embaraços à África do Sul).

Além disso, houve imediato desmentido por Shimon Peres; e se alguém conhece a inspiração dessa acusação é ele: o próprio Shimon Peres, ministro da Defesa àquela época e arquiteto do programa nuclear de Israel em Dimona, estaria necessariamente envolvido naquela negociação.

As acusações são ilações a partir de algumas declarações ambíguas feitas no decorrer de encontro entre os principais oficiais encarregados da Defesa dos dois países dia 31/3/1975. Sasha Polakow-Suransky, autor do livro, argumenta que a própria ambiguidade das declarações indicam que algo irregular acontecia ali. Aquela oferta parece ser a única explicação plausível para um memorando assinado pelo chefe do estado-maior do Exército da África do Sul, que leva exatamente a mesma data, e que festeja ‘entusiasticamente’ a possibilidade de a África do Sul comprar bombas atômicas. Esse ‘entusiasmo’ parece comprovar, no mínimo, que os sul-africanos estavam convencidos de que Israel lhes oferecera a bomba. No final, a ‘oferta’ deu em nada: P.W. Botha concluiu que o preço da bomba estava alto demais.

Mas há outras indicações de que, sim, mais tarde, houve cooperação relacionada aos arsenais nucleares entre Israel e África do Sul do apartheid: Israel forneceu trítio à África do Sul em 1977-78; há registro de uma ‘dupla fulguração’, no Atlântico Sul, em setembro de 1979, que pode ter sido sinal de explosão nuclear; nesse caso, bem pode ter havido um teste nuclear conduzido pelos israelenses em área próxima do litoral da África do Sul; houve visitas secretas, entre os dois países, de cientistas nucleares; e outras evidências. Por essa via, ou por outras, parece que, sim, a África do Sul teria comprado bombas atômicas. Quanto a isso, eu, pessoalmente, tenho muitas dúvidas, mas não sou especialista. Ao mesmo tempo, não me parece razoável aceitar, sem discutir, as negativas dos israelenses.

Sabe-se que, já há algum tempo, Israel aplica-se a desmontar – sobretudo nos anos 70s e 80s – qualquer notícia que circule de que tenha havido aliança mais ampla entre Israel e África do Sul: esse, afinal, é o quebra-cabeça mais interessante a que se dedica o livro de Polakow-Suransky, que oferece boa pesquisa, parece-me oferecer perspectiva equilibrada e é excelente leitura.

Essa aliança é intrigante, é claro, por causa do profundo desfiladeiro político que se esperaria que separasse necessariamente, em todos os casos, as duas nações: uma nascida da perseguição pelos nazistas e outra nascida de (em larga medida) simpatizantes do nazismo. À altura dos anos 1950s, os nacionalistas sul-africanos abandonaram seu antissemitismo explícito. Em 1951, os judeus passaram a ser admitidos no partido, definidos como “brancos” face à legislação do apartheid implantada imediatamente depois; e por mais que os judeus jamais se tenham sentido seguros nessa posição – o que explica os esforços insistentes, quase em pânico, do South African Jewish Board of Deputies, para se dissociarem da posição antiapartheid que Israel assumira nos primeiros anos de existência.

Seja como for, dever-se-ia supor que o racismo, de qualquer tipo, sempre tenha sido anátema para os judeus. Para muitos israelenses – provavelmente para a maioria – era; ‘a antítese do corpo e da alma da ética judia’, como disse um estudante na Cidade do Cabo, quando de uma visita a Jerusalém, do primeiro-ministro sul-africano (e simpatizante do nazismo), em abril de 1976, e que cimentou a relação política entre os dois países. “Judeu que aceite o apartheid deixa de ser judeu”. Isso dizia Shimon Peres, o que provavelmente explica sua sofreguidão, agora, ao negar os relatos que falam de acordo nuclear entre Israel e África do Sul do apartheid.

Por essa razão, nos anos 1970s e início da década seguinte, muitos judeus recusaram-se a crer na possibilidade de quaisquer laços entre militares dos EUA e África do Sul; de fato, em 1985 o American Jewish Committee dizia que as denúncias não passavam de tática dos inimigos, para “deslegitimar” o estado israelense. (Já ouvimos esse argumento, não é mesmo?).

A verdade é que houve a colaboração, evidência que nem os americanos pró-Israel podem negar, dado que o próprio congresso desses norte-americanos pró-Israel publicou relatório detalhado sobre a colaboração, em 1987.

Então... os israelenses tiveram de defender aqueles acordos, mobilizando a bagagem moral, mais do seu lado do que do lado dos sul-africanos. A defesa mais óbvia usou argumentos de realpolitik. Os dois governos, de Israel e da África do Sul eram internacionalmente impopulares, e, com o tempo, tornavam-se cada vez mais impopulares. No caso da África do Sul, essa impopularidade lá estava, desde o início da fase supernacionalista, em 1948; quando, coincidentemente, o estado de Israel foi afinal criado, sob os melhores auspícios, no início, pelo menos na Europa e EUA.

Israel começou a cair em desgraça ao tempo da Guerra dos Seis Dias de 1967, que levou a extensa ampliação territorial por invasão e ocupação de terras palestinas. Foi de tal ordem o ataque, que os vizinhos árabes de Israel rapidamente deixaram de vê-la como “um farol socialista” e passaram a ver Israel como “agressora imperialista”.

Dali em diante, eventos nos dois países – Soweto, Yom Kippur, Líbano – além da ascensão de um tipo de discurso às vezes simplista mas sempre anti-imperialista no Segundo e no Terceiro Mundo e na esquerda ocidental [aqui, Polakow-Suransky destaca o trabalho dos ativistas negros nos EUA], minaram ainda mais o crédito de que os dois países ainda gozassem ante a comunidade internacional.

Resultado desse processo, os dois países perderam aliados e parceiros comerciais em grandes doses – nos anos 1970s, por algum tempo, Israel perdeu até o apoio dos EUA –, exceto a África do Sul, para Israel; e Israel, para a África do Sul. “Quando se trata de escolher amigos”, disse o presidente da Câmara de Comércio Israel-África do Sul em 1983, “não temos muitos amigos que possamos correr o risco de antagonizar”. Estados párias não escolhem aliados. Aí, afinal, parece estar a base fundamental do relacionamento entre Israel e África do Sul do apartheid.

Ambos os países, evidentemente, precisavam de amigos. Colonos sempre precisam de solidariedades – e havia colonos recém-chegados, tanto em Israel quanto na África do Sul. De modo geral, amigos dos colonos são os poderes regionais que os implantaram como colonos, é claro; dos quais os colonos dependem, muitas vezes muito mais do que sabem ou percebem. Essa dependência é particularmente importante nos casos em que, no local a colonizar, a população seja, em vasta maioria, constituída de ‘outros’. E ainda mais particularmente importante quando esses ‘outros’ tenham sido roubados e expulsos de suas terras, muitas vezes com crueldade. (Pode-se dizer que aí está um dos dois pecados originais dos quais nasceu o estado de Israel, nesse caso o pecado cometido por Israel; o outro, é claro, foi o pecado cometido por Hitler.)

Deixadas entregues aos seus próprios recursos, colônias desse tipo tornam-se sempre terrivelmente vulneráveis; exemplos históricos dessa vulnerabilidade, em que as colônias foram destruídas são, dentre outros, o Quênia, a Rodésia, a Argélia, sob governo de brancos. Esse o destino que pairava ameaçador no horizonte pós-1948 de África do Sul e Israel: o risco de que fossem engolidos pelas vastas maiorias de africanos e de árabes que os cercavam ou jogados – como em algumas imagens – no fundo dos respectivos mares. Todos aqueles para os quais fossem impensáveis tanto esse destino quanto a possibilidade de algum acordo com concessões ao ‘outro lado’ tiveram de procurar ajuda fora de onde estavam. Dado que nem Israel nem África do Sul beneficiavam-se da simpatia internacional – que mais rapidamente andou na direção dos africanos e árabes palestinos oprimidos –, foi dif ícil encontrar solidariedades, senão em estados que enfrentassem dilema semelhante.

O comércio também foi fator de aproximação política. Quando a luta econômica se aguçou – no caso da África do Sul, por causa das sanções internacionais –, os dois países, Israel e África do Sul, passaram a depender comercialmente, cada vez mais, um do outro. Como logo se viu, os países tinham necessidades quase perfeitamente complementares. Israel tinha armas para vender, inclusive mísseis e, possivelmente, também ogivas nucleares; e precisava muito vendê-las, para manter viva uma economia continuamente devorada pelas muitas guerras. A África do Sul do apartheid tinha dinheiro para pagar pelo que comparasse, e minerais vitais para Israel (carvão, cromo e ‘torta de urânio’ – 500 toneladas da qual foram entregues a Israel para fazer suas bombas atômicas, em 1976.

Dado o isolamento em que viviam, os dois governos pouco se preocuparam com sanções internacionais: gerais contra a África do Sul, por exemplo, que Israel sempre desconsiderou; ou regras e leis para inspeção do uso do combustível nuclear (“torta de urânio” ou ‘bastonetes de urânio”), para assegurar que sempre fosse usado para finalidades pacíficas, no caso de Israel. À altura dos anos 1980s, consequentemente, cada país – por pequenos que fossem – haviam-se tornado, cada um, um dos dois ou três principais mercados para produtos do outro. E o comércio de armas e toda a constelação de produtos que constitui esse comércio dominava completamente o quadro. Comércio e defesa – quase a sobrevivência – andavam juntas, ali, entre Israel e África do Sul do apartheid. Nunca a Realpolitik foi mais real.

Dentre os israelenses que apoiavam esses arranjos com a África do Sul, essas considerações, é claro, eram cruciais. A maioria deles, provavelmente, não era racista. O livro de Polakow-Suransky relaciona nome de vários diplomatas israelenses que pareciam genuinamente horrorizados ante o apartheid, mas estavam convencidos de que os interesses nacionais de Israel seriam superiores. Um desses foi o embaixador Yitzhak Unna, cujo encontro inicial com sul-africanos que se recusaram a nadar na mesma piscina em que nadava um amigo iemenita do embaixador acabou em troca de socos. Unna chegou a atacar o apartheid em programa de televisão na África do Sul (e falando africâner, língua que o embaixador dera-se o trabalho de aprender. Aparentemente, pode-se insultar africâneres o quanto se queira, desde qu e se fale a língua deles). Mesmo assim, Unna continuou a afirmar que a aliança seria vital “tanto de um ponto de vista estratégico quanto de um ponto de vista comercial e, também, de um ponto de vista judeu”.

Polakow-Suransky também cita um sobrevivente do Holocausto, que Arthur Goldreich, militante anti-apartheid, consultava sobre cartazes da ‘suástica’ que distribuía na visita de Vorster em 1976. Para grande surpresa de Goldreich, ouviu do velho judeu: “Faremos acordos até com o diabo, para salvar os judeus da perseguição e garantir o futuro do Estado judeu.” “Era essa”, Goldreich comentou, “a atmosfera em que se vivia naquela época”.

Pode, contudo, ter havido mais do que isso, sobretudo depois que o relacionamento desenvolveu-se, e os dois lados descobriram que tinham mais em comum que um casamento de conveniência, ou mesmo de necessidade, para os dois lados.

Shimon Peres disse praticamente isso depois de um encontro secreto com líderes da África do Sul, em Pretoria, em novembro de 1974: “Essa cooperação não se baseia só em interesses comuns e na firme determinação de resistir igualmente aos nossos inimigos”, mas também, “no nosso ódio comum da injustiça” (sic), e pode vir a desenvolver-se como “uma próxima identidade de aspirações”, à medida que os dois países viessem a conhecer-se melhor. E quando vieram a conhecer-se melhor, vieram à tona algumas afinidades intrigantes.

Os dois países descobriram que tinham um inimigo histórico comum, no velho Império Britânico, por exemplo, embora nem Israel nem África do Sul tivessem sido capazes de chegar onde chegaram sem os britânicos. Os líderes nacionalistas sul-africanos, criados pelos dois livros bíblicos, tanto pelo Velho quanto pelo Novo Testamento, logo se descobriram ‘hipnotizados’ pela Terra Santa, quando a visitaram pela primeira vez. O primeiro-ministro D.F. Malan voltou de sua primeira viagem a Israel em 1953 falando de sua “admiração pela capacidade dos judeus de conservar sua identidade nacional apesar dos séculos de adversidades” – que claramente havia tocado uma fibra profunda em sua alma africânder atormentada. Paralelo histórico superficialmente óbvio foi logo encontrado entre a Grande Trilha dos Africânderes, fugindo dos britânicos pelo rio Vaal para encontrar sua própria república, e o Êxodo Bíblico. (É paralelo só muito superficialmente óbvio, porque os judeus fugiam da servidão; e os africânderes fugiam, em boa medida, para manter a propriedade de seus escravos negros.) Elementos religiosos nos dois países viam-nos como “o povo escolhido” de Deus. Se havia quem entendesse que, em vez de um, Deus teria escolhido dois povos, não faltou quem concluísse que, então, não haveria dúvidas de que Israel e África do Sul partilhavam outros traços.

Tudo isso pavimentou a estrada para uma modalidade mais dura e mais ideológica de sionismo nos anos 1970s, embora as origens intelectuais do sionismo sejam mais antigas, vindas pelo menos dos anos 1920s: um sionismo mais agressivo na exigência de territórios (para criar uma “Israel Maior”, dos dois lados do rio Jordão), hostil ao liberalismo, assertivamente sem princípios, declaradamente racista (contra os árabes), com tendência a ver o mundo como incorrigivelmente antissemita e, assim, enfatizando a importância da força militar mais do que qualquer judeu jamais fizera, em tempo algum. (Um dos motivos que parece ter gerado essa nova formação ideológica dentro do sionismo parece ter sido am intenção de esvaziar o velho estereótipo do judeu como intelectual sem força física ou como capitalista ou agiota obeso, cuja perseguição não indignaria muita gente – objetivo que, sim , foi com certeza alcançado.)

Polakow-Suransky atribui a Menachem Begin o feito de ter inserido essa ideologia de ‘neorrevisionismo’ na política hegemônica israelense, como uma camada acrescentada por cima da realpolitik, a partir do momento em que seu Partido Likud chegou ao poder – deslocando o velho partido Labour – em 1977. As colônias nos territórios ocupados são prova de que parte significativa dessa ideologia ainda sobrevive na Israel de hoje.

Ao que parece, Begin sempre favoreceu que Israel mantivesse laços estreitos com os africânderes – que ninguém jamais viu como intelectuais sem músculos ou frágeis. Verdade que, fiel aos seus pessoais intintos militares – mas também como resultado das carências dos dois países – os laços mais próximos estabeleceram-se sempre entre os respectivos departamentos de Defesa de Israel e África do Sul.

Polakow-Suransky observa que os generais, ministros da Guerra e compradores de armas dos dois lados tornaram-se realmente amigos bem íntimos. É o que se vê na correspondência que trocaram, “caracterizada por muito claros sinais de familiaridade e amizade”, em contraste com a correspondência muito mais formal trocada entre os diplomatas. E porque – como Polakow-Suransky argumenta – sempre era o establishment da Defesa que comandava a diplomacia israelense naquele período, ou, com mais frequência, a ignorava (o autor fala das duas equipes como separadas por “um muro”, presumivelmente bem literal, na embaixada em Pretoria, que nem o embaixador jamais ultrapassava), essas amizades parecem ter forjado as ‘aspirações’ particulares que, com o tempo, Israel e África do Sul partilhariam, dali em diante, cada vez mais.

Um dos meios pelos quais o establishment da Defesa fez o que fez foi encorajar todos os líderes, nos dois países, a ver os problemas de seus países e suas soluções em termos, sobretudo militares e estratégicos, não em termos diplomáticos ou morais. Hoje já nem é preciso elaborar muito esse ponto, no que tenha a ver com Israel, se se pensa no massacre promovido pelo exército de Israel em Gaza no final de 2008-09 e – noutra proporção, mas ainda com fúria desproporcional – no ataque ao comboio de barcos que tentou romper o bloqueio de Gaza dia 30 de maio p.p.

Outro daqueles meios foi construir visões paralelas sobre os respectivos principais oponentes, o Congresso Nacional Africano (ANC) e a Organização para Libertação da Palestina (OLP): os dois grupos passaram a ser descritos simplesmente como “comunistas” ou “terroristas”, provavelmente duas ‘frentes’ de uma mesma única conspiração comunista internacional; combater os dois grupos tornou-se “missão conjunta” para os dois países. (Ou essa manobra não passou de propaganda, para ressuscitar os velhos guerreiros da Guerra Fria, como Reagan e Thatcher?)

Como combater aquelas duas organizações passou a ser assunto para intensas consultas entre israelenses e sul-africanos, com conferências bilaterais anuais de inteligência e intercâmbio de agentes. Relatório assinado pelo chefe do Exército da África do Sul Constand Viljoen depois de visitar os postos de controle israelenses em 1977 mostra-o “maravilhado” com a “completude” do processo. “No caso de menor demora, os árabes que tentem atravessar esperam uma hora e meia. Em momentos de tráfego mais pesado, pode levar de quatro a cinco horas. Assim é que se faz controle de estradas!”

Outra lição que os sul-africanos do apartheid aprenderam dos israelenses foram as vantagens de manter política “opaca” em relação às armas nucleares: os outros países que pensem que você tem, mesmo que você não tenha, ou mesmo que tenha, porque não há outro meio para equiparar-se às grandes potências. Essa política pode ser a explicação para aquelas ambiguidades encontradas em 1975.

Parece que os israelenses mais ensinaram que aprenderam dos sul-africanos do apartheid. Alguns sul-africanos tentaram dar lições de apartheid – e sobre os bantustões, em especial – aos novos amigos israelenses, como prescrição de como enfrentar o “problema” palestino. Mas a ideia jamais prosperou, não, pelo menos, formalmente.

Israel tem sido referida recentemente como “estado de apartheid”. A referência mais controversa é de Jimmy Carter, que deu ao seu livro de 2006 o título de Palestina: Paz, não Apartheid. O título parece ter dado respeitabilidade ao que, antes, era visto como discurso acusatório de esquerda. Mas os sintomas que mais se podem ver, de apartheid, parecem nascer mais da própria situação em que Israel se pôs, do que dos contatos com os sul-africanos.

Ao final do livro, Polakow-Suransky discute se seria apropriado usar o “palavrão” “apartheid” em conexão com Israel. Não é discussão estritamente relevante à pesquisa e à discussão que orienta seu livro, mas é capítulo que se espera em livro que reúna as palavras “Israel” e “apartheid” no título.

A conclusão, em poucas palavras, é que, embora haja semelhanças – as estradas exclusivas para judeus na Cisjordânia e a “exigência de identificação, em tudo semelhante ao que determinavam as leis ‘de passe’ para brancos ” – a analogia é imperfeita, porque Israel jamais proibiu por lei a miscigenação e não impõe o mesmo grau de servidão institucional aos árabes, que os sul-africanos brancos impunham aos negros.

Nas palavras do autor “os trabalhadores que limpam esgotos em Telavive e varrem a sujeira dos kibutzim são, quase sempre, mão-de-obra convidada da Ásia ou da África, e raramente são palestinos”. Aí estaria diferença fundamental entre duas formas de colonialismo por ocupação por colônias e colonos implantados em novos territórios.

Os sul-africanos brancos queriam para eles terra e trabalho. Os israelenses, pode-se dizer, contentam-se só com a terra.

O arranjo entre os dois países foi quase inteiramente arranjo militar, baseado no pressuposto de que o melhor modo de defender seus interesses seria usar meios militares duros. No caso da África do Sul, essa ideia comprovou-se uma quimera; para grande surpresa, diga-se de passagem, dos israelenses de mentalidade bélico-militar, os quais, às vésperas do colapso do apartheid, ainda construíam estratégicas a partir da certeza de que duraria, no mínimo, por outros 20 anos.

Assim aconteceu que Israel perdeu seu pária-parceiro, inevitavelmente; para piorar, pesa-lhe hoje sobre as costas um novo estigma, de ter cooperado com regime racista desprezível aos olhos do mundo – a ponto, mesmo, de tê-lo ajudado a comprar armas atômicas. Como se não faltassem estigmas sobre os sionistas, merecidos ou não.

Fato é que, depois da África do Sul do apartheid, Israel não encontrou parceiro-pária substituto; não, com certeza, entre as nações africanas emergentes, cuja experiência histórica (muitos árabes foram mercadores de escravos) pode-las-ia, talvez, inclinar em direção a Israel. É preço alto demais que Israel paga, em troca de algumas poucas décadas de suposta segurança, especialmente para país que nasceu sob ideais pressupostos liberais.

Ainda não se sabe se a associação com a África do Sul do apartheid valeu a pena, ou não. O que se vê é que Israel continua a investir na política militar de agressão à “moda-macho”, até contra ativistas pacifistas com objetivos humanitários, expondo-se à reprovação e à indignação do mundo. Seja como for, essa foi uma das políticas da África do Sul do apartheid, que também sonhava com esse recurso, à violência, para garantir a própria segurança. Segundo a análise de Polakow-Suransky, sob princípios liberais, o futuro das políticas de violência de Israel não parece ser melhor que o do apartheid na África do Sul.

A resenha original, em inglês, pode ser lida em: Pariahs Can’t Be Choosers