quinta-feira, 3 de junho de 2010

O dia em que o mundo soube o que é viver encurralado em Gaza


O dia em que o mundo soube o que é viver encurralado em Gaza

3/6/2010, Ali Abunimah, Electronic Intifada, reproduzido em Al-Jazeera, Qatar

Traduzido por Caia Fittipaldi

Desde a invasão e o massacre de Israel em Gaza, quando morreram 1.400 palestinos, há 18 meses, na chamada “Operação Chumbo Derretido”, a sociedade civil em todo o mundo organiza-se, cada vez mais, em campanhas por justiça e solidariedade aos palestinos. A maioria dos governos, ao contrário, seguem a vida e os negócios normalmente, mantendo um silêncio cúmplice.

O ataque mortal de Israel contra a “Flotilha da Liberdade” que tentava chegar a Gaza pode, contudo, alterar essa ‘estabilidade’, e empurrar os governos a seguir a voz das ruas; pode acontecer, inclusive, que se vejam ações sem precedentes no sentido de confrontar a, até agora, absoluta impunidade em que vive a entidade sionista.

A propaganda israelense

Uma das imagens mais amargas da Operação Chumbo derretido mostrava os governantes de países da União Europeia que visitavam Israel, sorridentes, em Jerusalém, dando tapinhas nas costas de Ehud Olmert, então primeiro-ministro israelense, ao mesmo tempo em que bombas de fósforo branco apavoravam crianças palestinas a poucos metros dali.

Algumas vezes, alguns países ocidentais manifestaram alguma preocupação com o uso, por Israel, de “força desproporcional”, mas ainda justificavam o massacre de Gaza como ato de “autodefesa” – mesmo que, para por fim ao fogo dos rojões de fabricação caseira que alcançam território israelense, todos soubessem que bastaria Israel cumprir o que se comprometera a fazer, no acordo de cessar-fogo negociado em junho de 2008, e que Israel imediatamente rompeu, em novembro.

Quando se divulgou o Relatório Goldstone, feito por ordem da ONU, fartamente documentado, dos crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos por Israel, com provas de assassinato de civis desarmados, poucos governos lhe dedicaram mais do que algumas linhas, sempre com vistas à propaganda, sem que daí resultasse qualquer ação.

Ainda mais grave, depois da Operação Chumbo Derretido, países da União Europeia e os EUA enviaram navios a Israel para reforçar o bloqueio de Gaza – que é ato de punição coletiva contra toda a população e, assim, é flagrante violação do que obriga a 4ª Convenção de Genebra à qual se deve submeter a ocupação da Palestina por Israel.

Nenhum governo estrangeiro enviou navio-hospital, para ajudar a tratar ou para evacuar os milhares de feridos, alguns com mutilações gravíssimas, que sobrecarregavam os hospitais de Gaza.

Cenoura e porrete

O bloqueio jamais existiu – como Israel e seus apologistas vivem a repetir – para por fim ao contrabando de armas para Gaza.

O bloqueio de Gaza sempre teve objetivo político: causar o máximo de sofrimento possível à população civil, para levar os palestinos de Gaza a rejeitar e levantar-se contra o governo do Hamás eleito em janeiro de 2006.

O racionamento, até a falta absoluta, de comida, remédios, livros escolares, materiais de reconstrução, dentre centenas de outros itens, além da cassação do direito de entrar e sair de Gaza para qualquer finalidade, foi e continua a ser usado como arma para aterrorizar a população civil.

Ao mesmo tempo, nunca parou de chegar ajuda do ocidente para a Cisjordânia ocupada – embora também ali a população viva mal, apenas um pouco ‘menos mal’ do que em Gaza –, em política calculada de “porrete e cenoura”. Essa política foi planejada para empurrar o apoio popular de que goza o Hamás, para a direção do Fatah, apoiado pelo ocidente, jamais eleito e orientador da Autoridade Palestina, que incontáveis vezes manifestou entusiasmado desejo de colaborar com Israel, fizesse o que fizesse contra os palestinos.

“A ideia é meter os palestinos sob rigorosa dieta, não matá-los de fome”, nas palavras do principal assessor do governo israelense Dov Weisglass, em frase inesquecível, em 2006. Por esse padrão, o bloqueio de Gaza – apoiado por vários governos árabes e pelo “Quarteto” (EUA, UE, secretário-geral da ONU e Rússia) – foi retumbante sucesso. Inúmeros estudos comprovam aumentos escandalosos na desnutrição infantil; e a vasta maioria da população de Gaza passou a depender quase completamente da ajuda humanitária da ONU, que traz comida. Centenas morrem por falta de atendimento médico adequado.

Superar o “fosso moral”

Ao mesmo tempo em que governos em todo o mundo cuidavam de manifestar cumplicidade a Israel, a população civil, em todo o mundo, pôs mãos à obra para superar o fosso moral e salvar, além da lei, também a moralidade humana.

Em um ano e meio, desde a Operação Chumbo Derretido, a campanha global, iniciada pelos palestinos, por Boicote, Desinvestimentos e Sanções (BDS) contra Israel, cresceu muito e já alcançou vitórias expressivas.

Da decisão de fundos de pensão noruegueses e vários bancos europeus que deixaram de investir em empresas israelenses, a iniciativas de desenvestimento em universidades, e artistas de fama internacional que se recusam a apresentar-se em Israel, aos comícios-relâmpago que ensinaram os consumidores, nos supermercados de todo o mundo, a não comprar produtos importados de Israel, o movimento cresceu sempre. Hoje, Israel define o movimento BDS como “crescente ameaça existencial”.

Até aqui, o efeito talvez seja mais psicológico que econômico, mas foi sensação semelhante a essa, de crescente isolamento, e o temor de ser visto no mundo como “Estado Pária”, que ajudou os cidadãos morais, de todo o mundo, a derrotar o regime de apartheid da África do Sul. O próprio governo daquele regime de apartheid sentiu-se em posição insustentável e teve de render-se à mudança pacífica, seguindo afinal o próprio povo que por tanto tempo haviam demonizado, desumanizado e oprimido.

Verdade é que o movimento por Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel ganha força em todo o mundo: ontem, ao ser libertado da prisão israelense para onde foi conduzido, depois de ser algemado a bordo do barco turco Mavi Marmara, sequestrado e levado para local ignorado, impedido de fazer contato com a embaixada de seu país, o escritor sueco Henning Mankell disse, ao ver-se livre: “Temos de aproveitar a experiência da África do Sul, onde se sabe que a campanha por Boicote, Desinvestimento e Sanções teve grande impacto.”

A Flotilha da Liberdade representou a parte melhor, mais ativa, mais corajosa desse espírito libertário da sociedade civil, da determinação de nunca abandonar seres humanos em situação de grande desespero e miséria, à crueldade, à indiferença, ao autointeresse de governantes e políticos.

A imediata resposta de cidadãos, em todo o mundo, à violência do ataque israelense contra a Flotilha da Liberdade parece indicar que os governos começam a ter de despertar de seu marasmo cúmplice e do medo paralisante que os impede de criticar Israel. Esse medo é a fonte da impunidade de Israel, por tanto tempo.

Onde o fosso moral aumenta

De fato, a reação dos cidadãos em todo o mundo demonstra que aumenta o fosso moral que separa, de um lado, EUA e Israel; e, de outro, o resto do mundo.

Enquanto o governo israelense se dedicava a distribuir justificativas que iam das ridículas (comandos super treinados israelenses, que portariam armas de paintball!) às mais patéticas (o ataque não foi ataque, mas abordagem para “inspeção”), os EUA, mais uma vez, apoiavam incondicionalmente a Israel sua aliada.

Enquanto o governo Obama tentava salvar-se com uma declaração desfibrada do presidente ao Conselho de Segurança da ONU, os parceiros de Israel na mídia corporativa não se cansavam de repetir justificativas para as ações de Israel: que seriam legais e legítimas.

Altos membros do governo, como o vice-presidente Joe Biden, não se envergonharam de repetir, como eco, o que dizia o governo de Israel: que o ataque, além de legítimo, seria amplamente justificado por necessidade de segurança nacional.

Dessa vez, apesar das vergonhosas e previsíveis respostas dos suspeitos de sempre nos EUA, a condenação internacional fez-se ouvir alta e clara.

Em discurso no Parlamento turco, imediatamente depois do ataque, o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan denunciou Israel por prática de “terrorismo de Estado” e exigiu punição exemplar pela comunidade internacional.

Erdogan repetiu que “a Turquia jamais dará as costas a Gaza” e que continuaria a campanha pelo fim do bloqueio e para que Israel fosse julgada, ainda que tivesse de lutar sozinho.

Há sinais esperançosos, de que a Turquia não lutará sozinha.

Por todo o mundo, vários países convocaram embaixadores israelenses para dar explicações e alguns retiraram seus enviados de Telavive.

Franco Frattini, ministro de Relações Exteriores da Itália, e dos mais ativos defensores de Israel na Europa, disse que seu país “deplorava absolutamente a matança de civis” e exigiu que “Israel dê explicações à comunidade internacional” pelo ataque militar a barco civil e pelas mortes “absolutamente inaceitáveis, fossem quais fossem os objetivos da flotilha.”

Países menores manifestaram maior coragem e mais clareza. A Nicarágua rompeu imediatamente e completamente relações diplomáticas com Israel; explicou o rompimento como reação a “ataque ilegal a barco civil em águas internacionais”. Brian Cowen, primeiro-ministro da Irlanda, disse ao Parlamento em Dublin que seu governo exigira “formalmente” que Israel desse livre passagem ao barco Rachel Corrie, então ainda a caminho de Gaza; e alertou Israel para “as mais graves consequências”, se usasse violência para interceptar o barco.

O barco – que leva o nome do jovem ativista pacifista norte-americano assassinado pelo exército de Israel em Gaza, em 2003 – conduzia ativistas malaios e irlandeses, além de deputados e políticos, entre os quais Mairead Maguire, Prêmio Nobel da Paz (1976, por seu trabalho contra a violência sectária e pela paz na Irlanda do Norte).

Israel ultrapassou todos os limites

São ações ainda poucas e pequenas, mas indicam que Israel parece ter ido além do limite e que já não conta com cumplicidade absoluta no ocidente.

Esse processo é cumulativo – a cada nova violência, diminui a reserva de boa vontade e cumplicidade com que Israel sempre contou.

E mesmo que tantos governos ainda não tenham condições de partir da palavra à ação, a opinião pública saberá empurrá-los na direção de impor sanções a Israel.

Binyamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, talvez ainda se orgulhe do que fez e mandou fazer: atacar barcos civis, na calada da noite, abordagem e matança, e apesar da condenação de tantos.

De qualquer modo, apesar de seus esforços frenéticos para esconder e desmentir o que houve a bordo do Mavi Marmara na madrugada desse 31 de maio, o mundo viu Israel, mais uma vez, usar a mesma brutalidade indiscriminada já documentada no Relatório Goldstone. E por-se, em seguida, a tentar desmentir os fatos.

Desta vez, além do mais, as vítimas da brutalidade de Israel e os mortos não foram palestinos ou libaneses descartáveis. Foram cidadãos de 32 países e de todos os continentes. Foi o dia em que o mundo soube o que é viver encurralado por Israel em Gaza. Como o povo de Gaza, o mundo saberá resistir.

O artigo original, em inglês, pode ser lido em: The day the world became Gaza

Ali Abunimah is author of One Country, A Bold Proposal to End the Israeli-Palestinian Impasse and co-founder of The Electronic Intifada (http://www.electronicintifada.net).