quinta-feira, 3 de junho de 2010

“Sentar, conversar, comer e partir”

A Loya Jirga, ontem, com Karzai:

4/6/2010, Syed Saleem Shahzad [editor-chefe, em Islamabad], Asia Times Online

Traduzido por Caia Fittipaldi

ISLAMABAD. Há nove anos, os EUA e aliados depositaram altas esperanças nos acordos de Bonn, série de acordos que recriaram o estado do Afeganistão, depois de os EUA terem invadido o país, no final de 2001.

Pintou-se então um quadro de um Afeganistão em paz, exceto pelos Talibãs, outra vez funcional como estado normal da comunidade internacional, reconstruído por massivas injeções de dinheiro e discursos de boa-vontade, e engajado em processo político o qual, ele só, como se esperava, eliminaria a guerrilha.

Nada disso aconteceu. Apesar disso, outra onda de esperanças idênticas cerca a Loya Jirga (Grande Conselho de líderes locais) que ocorre hoje e durará três dias, em tenda enorme, super refrigerada, na capital Cabul; e que, outra vez, a nada levará.

Os mais de 1.600 deputados, líderes religiosos e tribais e principais representantes da sociedade civil selecionados e reunidos pelo governo estão reunidos para debater as propostas apresentadas pelo presidente Hamid Karzai sobre a reintegração dos escalões inferiores dos Talibãs na sociedade afegã; oferece-lhes anistia, empregos e segurança. Karzai deseja aferir a tendência entre os cidadãos afegãos comuns; quer saber se os afegãos querem que o governo negocie diretamente com os líderes Talibã e, em caso afirmativo, com quais líderes.

A agenda inclui também uma decisão sobre quais líderes devem ter seus nomes excluídos da lista negra da ONU que congela os bens dos listados e os impede de viajar. Ao todo, há naquela lista 137 nomes de pessoas ligadas aos Talibãs e 258 ligadas à al-Qaeda.

Os delegados foram divididos em cerca de 30 comissões, para discutir as principais questões. As opiniões serão reunidas numa declaração final esperada para a 6ª-feira.

Os Talibãs já desqualificaram essa jirga, em declaração a eles atribuída, em que diziam que esse conselho visa a atender “interesses dos estrangeiros” e que seria “falso processo de reconciliação”.

Para confirmar sua avaliação, disparam tiros durante a cerimônia de abertura na 4ª-feira, e dois suicidas-bombas (homens vestidos em burcas) conseguiram atravessar o forte cordão de segurança de 12 mil guardas antes de se autodetonar.

O incidente aconteceu logo depois de Karzai dizer aos Talibãs, na fala de abertura do encontro, que “reconciliem-se comigo e não haverá necessidade de os estrangeiros permanecerem aqui”. Assim, imagina-se, estaria atendida a principal exigência dos altos comandantes dos Talibãs, de que não negociarão antes da completa retirada de todos os exércitos estrangeiros.

O líder da oposição Abdullah Abdullah, derrotado por Karzai nas eleições presidenciais do ano passado, anunciou dia 1º de junho, que não participaria da jirga – formalmente chamada “Jirga [conselho] Consultiva de Paz”.

Karzai tem longa experiência com loya jirgas – os grandes conselhos tradicionais dos pashtuns, que se fazem para escolher novo rei, adotar nova Constituição, discutir questões políticas nacionais importantes e sempre que ocorrem situações de emergência.

Dia 2/7/2002, numa loya jirga em Cabul, da qual participaram mais de 2.000 delegados, Karzai foi indicado presidente do Governo de Transição do Afeganistão, posição que manteve em duas eleições nacionais. Karzai convocou várias jirgas para resolver disputas nas áreas Pashtuns do Afeganistão e confrontos com o Paquistão.

Dessa vez, está disputando o seu futuro no país, na loya jirga dessa semana, que é desdobramento de reunião semelhante, mas menor, mês passado, nas ilhas Maldivas. Aquelas conversações foram organizadas por Homayoun Jarir, genro de Gulbuddin Hekmatyar, o veterano comandante do grupo Hezb-e Islami e figura chave da guerrilha comandada pelos Talibãs. Jarir apresentou-se como homem de ligação entre o governo do Afeganistão e Hekmatyar.

Contudo, segundo militantes que falaram a Asia Times Online, Hekmatyar não aprovou a ideia e escreveu a Jarir dizendo que ele fora longe demais (“agora, foi demais!”); e que não tinha qualquer direito de apresentar-se como seu representante.

Jarir é tadjique étnico do vale Pansher, poeta e mercador de safiras azuis. Lutou ao lado de Ahmad Shah Massoud (assassinado depois) da Aliança Norte nos anos 90s contra Hekmatyar, nos anos turbulentos da disputa entre grupos mujahideen que levou os Talibãs a tomarem o poder em 1996.

Segundo observadores, o único objetivo da atual jirga é construir apoio para convidar Hekmatyar a integrar-se ao processo político. Hekmatyar já foi duas vezes primeiro-ministro, no início dos anos 90s, mas foi defenestrado pelo Departamento de Estado dos EUA, que o classificou como “terrorista global e alvo preferencial” [alvo definido para “assassinato seletivo”].

A conferência das Maldivas – e a loya jirga de Cabul – acontecem em momento em que a guerrilha cercou Cabul – a partir das províncias de Logar, Ghazni, Parwan, Kapisa e Wardak. Os guerrilheiros Talibãs também controlam a maioria dos distritos nas províncias de Kandahar, Helmand e Farah, e têm controle parcial nas províncias de Paktika, Khost e Nangarhar.

A condição de deterioração da segurança nas províncias afegãs da fronteira com o Paquistão levou a acentuado aumento no influxo, para o Afeganistão, de guerrilheiros das regiões montanhosas do Hindu Kush, onde os Talibãs, a al-Qaeda e militantes paquistaneses mantêm importantes santuários. Segundo alguns relatos, quase 60% dos guerrilheiros nas áreas tribais paquistanesas já partiram para o Afeganistão; podem ser milhares.

A passagem foi facilitada pela inexistência (são raros) de efetivos postos de controle de fronteiras, sejam controlados pelo Exército Nacional Afegão, sejam controlados por soldados da OTAN. Os principais postos de passagem estão nas áreas de Birmal e Shawal. E há outras passagens das agências de Bajaur e Mohmand no Paquistão.

A pressão parte, em larga medida das forças de segurança do Paquistão nas áreas tribais, que têm enfrentado muitas dificuldades nos últimos meses; do outro lado da fronteira, teme-se que a pressão ainda aumente nos próximos meses de verão.

Para tentar conter esse fluxo trans-fronteiras, os EUA super pressionaram o chefe militar do Exército do Paquistão general Ashfaq Parvez Kiani, para que lançasse grande ofensiva militar no Waziristão Norte, sem sucesso. Kiani rejeitou as ofertas da secretária de Estado Hillary Clinton, do chefe da CIA Leon Panetta e do assessor para Segurança Nacional dos EUA James Jones.

Kiani foi convidado para vir a Cabul, mês passado, encontrar-se com o comandante militar norte-americano no Afeganistão general Stanley McChrystal, e Karzai. Mas Kiani, que muitas vezes acedeu aos desejos dos EUA, manteve-se firme, contra qualquer ação militar no Waziristão Norte, porque teme que qualquer ação paquistanesa no Waziristão Norte venha a ser devastadora para o Paquistão.

Prefere que todos os guerrilheiros paquistaneses, inclusive Mullah Fazlullah, simplesmente saiam do Paquistão. Mullah Fazlullah, apelidado “Rádio Mullah” é o líder do grupo Tehrik-Nifaz-i-Shariat-i-Mohammadi, pró-Talibã, que controla toda a guerrilha no vale [do rio] Swat. Há notícias, das autoridades afegãs, de que teria sido morto em assalto contra os Talibãs no distrito de Barge Matal, província do Nuristão, mês passado; mas essas notícias jamais foram confirmadas por fonte independente.

Mas Kiani, ao mesmo tempo, não tem qualquer objeção aos cada vez mais frequentes ataques dos aviões-robôs norte-americanos contra os guerrilheiros do Waziristão Norte – ataques que eliminam inimigos do governo paquistanês, ao mesmo tempo em que atraem contra eles a fúria direta dos Talibãs: contra EUA e OTAN (e Afeganistão).

Em ataque recente, houve notícias de que Mustafa Abu al-Yazid, também conhecido como Sheikh Sa'id al-Masri, teria sido morto na cidade de Boya próxima de Miranshah, no Waziristão Norte. Masri, que é egípcio, tem sido apresentado como um dos principais lugares-tenentes em ação, do próprio Osama bin Laden, encarregado da guerra que a al-Qaeda faz ao governo do Afeganistão. Além disso, sempre foi importante arrecadador de fundos nacionais e internacionais.

Washington terá de decidir, ano que vem, se permanece no Afeganistão ou se inicia a retirada. Há norte-americanos que correm hoje, de um lado para outro, tentando encontrar saída no labirinto do “Af-Pak” em que se meteram. E é aí que entra a loya jirga inventada agora por Karzai. Por isso também, a loya jirga está sendo apresentada como “rica em possibilidades”, exatamente o que se viu quando dos acordos de Bonn.

Ao longo dos sangrentos anos, de lá até hoje, com milhares de vidas e bilhões de dólares desperdiçados, pouco mudou. Os mais de mil líderes tribais que hoje gozam as delícias da hospitalidade de Karzai e de seu afamado arroz à Cabul, sabem de tudo isso melhor que ninguém, como sabem também do dito popular que ensina “Amadan, nashistan, guftan, tuaman e barkhastan". “Vir, sentar, conversar, comer e partir”.

O artigo original, em inglês, pode ser lido em: They came, sat, ate and left

*Syed Saleem Shahzad is Asia Times Online's Pakistan Bureau Chief. He can be reached at: saleem_shahzad2002@yahoo.com