Sobre a Flotilha da Paz*
5/6/2010, Uri Avnery, Gush Shalom [Bloco da Paz], Israel (O título original é "Kill a turk and rest")
Traduzido por Caia Fittipaldi
“O bloqueio não isola o Hamás. O bloqueio isola Israel.”
Publicado por Gush Shalom [Bloco da Paz], Israel, em Haaret’z, Telavive, 3/6/2010
“O ataque aos barcos não é vitória de Israel. É derrota.”
Gush Shalom
Em mar alto, em águas internacionais, a marinha israelense atacou o barco. Os comandos mascarados atacaram com fúria. Centenas de agredidos resistiram. Os soldados atiraram. Houve mortos, muitos feridos. O barco foi levado a outro porto, os passageiros desembarcaram. O mundo os viu andando pelo cais, homens e mulheres, velhos e jovens, todos esgotados, rasgados, um depois do outro, escoltados por soldados...
O navio era o “Exodus
Em Israel, no governo, estava Ernest Bevin, do Partido Labour, ministro britânico, arrogante e brutal, apaixonado pelo poder. Jamais deixaria que um bando de judeus mandasse
O que aconteceu todos sabem: o ataque degenerou, uma estupidez levou à outra, o mundo solidarizou-se com os passageiros dos barcos. Os britânicos, senhores da Palestina não cederam e pagaram o preço. Pesado preço.
Muitos creem que o caso do “Exodus” marcou o ponto de virada da luta para a criação do Estado de Israel. O Mandato britânico entrou em colapso sob o peso da condenação internacional e os britânicos tiveram de deixar a Palestina. Houve, é claro, muitas outras razões de peso para aquela decisão, mas o episódio do “Exodus” provou ser a palha que quebrou a espinha dorsal do camelo.
Essa semana, em Israel, não fui o único que lembrou esse episódio. De fato, foi quase impossível não lembrar, sobretudo os israelenses que já vivíamos na Palestina naquele tempo e vimos tudo.
Há diferenças importantes, é claro. Aqueles eram sobreviventes do Holocausto; hoje, são pacifistas de todo o mundo. Mas então, como hoje, o mundo viu soldados pesadamente armados atacar brutalmente passageiros desarmados – que resistiram com o que encontraram à mão, paus e porretes e com os punhos. Daquela vez, como hoje, aconteceu em mar alto – daquela vez, a
Analisado em retrospectiva, o comportamento do governo britânico em todo o caso parece inacreditavelmente estúpido. Mas Bevin não era bobo; os oficiais britânicos que comandaram a ação não eram idiotas. Afinal, acabavam de guerrear guerra mundial, do lado vencedor.
Se agiram como perfeitos idiotas do começo ao fim, foi por arrogância, insensibilidade e absoluto desprezo pela opinião pública mundial.
Ehud Barak é o Bevin israelense. Burro, não é; nem os generais israelenses são burros. Mas são hoje responsáveis por uma cadeia de decisões e atos alucinados, cujas implicações são difíceis de avaliar. O ex-ministro e atual comentarista Yossi Sarid descreveu o comitê dos sete ministros – “grupo dos sete” –, que decide sobre questões de segurança, como “os sete idiotas” – e devo protestar. Foi insulto aos idiotas.
Os preparativos para a flotilha exigiram mais de um ano. Centenas de mensagens de e-mail andaram pelo mundo. Eu mesmo recebi dúzias. Não era segredo. Tudo foi feito às claras.
Houve tempo de sobra para que instituições políticas e militares em Israel se preparassem para a chegada dos barcos. Os políticos poderiam ter sido consultados. Os soldados, treinados. Os diplomatas, informados. O pessoal da espionagem trabalhou.
De nada adiantou. Todas as decisões foram erradas, do primeiro ao último momento. E ainda não terminou.
A ideia de romper o bloqueio com uma flotilha de pacifistas beira a genialidade. Põe Israel num dilema – tendo de escolher entre várias alternativas, todas ruins. É a situação em que qualquer general sonha ver o general adversário.
As alternativas:
(a) Permitir que a Flotilha chegue a Gaza, sem obstáculos. O secretário do Gabinete apoiava essa ideia. Mas levaria ao fim do bloqueio, porque depois dessa flotilha viriam outras, cada vez maiores.
(b) Deter os navios em águas territoriais, vistoriar a carga, assegurar-se de que não havia nem armas nem “terroristas” e deixá-los prosseguir até o porto. Levantaria alguns protestos em todo o mundo, mas preservar-se-ia o bloqueio, pelo menos em princípio.
(c) Capturar os barcos em alto mar e levar todos até Ashdod. O risco, nesse caso, seria a batalha contra os ativistas a bordo, até Ashdod.
Como os governantes em Israel sempre fazem, quando têm de escolher entre várias alternativas ruins, o governo Netanyahu escolheu a pior.
Todos os que acompanharam os preparativos como noticiados pelos jornais previam que havia risco de resultar em mortos e feridos. Ninguém aborda barco turco à espera de ser recebido por garotinhas louras que ofereçam rosas. Todos sabem que os turcos não se rendem facilmente.
As ordens que os soldados receberam – e a imprensa divulgou – incluíam as palavras fatais: “a qualquer custo”. Qualquer soldado sabe o que significam essas palavras terríveis. Não bastasse, na lista dos objetivos da missão, a atenção aos passageiros civis aparecia em terceiro lugar, depois da salvaguarda da segurança dos soldados e da necessidade de cumprir a missão.
Se Binyamin Netanyahu, Ehud Barak, o comandante geral do exército e o comandante da marinha não sabiam que a operação poderia levar a matar e ferir civis desarmados, então é necessário concluir – até os que ainda relutem – que são todos insuperavelmente incompetentes. Merecem ouvir as palavras imortais de Oliver Cromwell ao Parlamento: “Estão aí há tempo demais, considerado o serviço que têm prestado... Vão-se! Nos livrem de vocês.
Esse acontecimento aponta outra vez para um dos mais sérios aspectos da situação: Israel vive numa bolha, numa espécie de gueto mental, que nos isola do mundo e nos impede de ver outra realidade: a que o resto do mundo vê. Um psiquiatra veria aí sintoma de grave doença mental.
A propaganda do governo e do exército israelenses, para o público interno, conta história simples: os heroicos soldados de Israel, valentes e sensíveis, elite da elite, abordaram o navio com intenções de “parlamentar” e foram atacados por uma turba selvagem e violenta. Os porta-vozes oficiais nunca esqueceram de repetir a palavra “linchamento”.
No primeiro dia, praticamente toda a mídia israelense acreditou. Afinal, claro que os judeus sempre são as vítimas. Sempre. Aplica-se a soldados judeus, claro. Claro. Soldados judeus abordam barco estrangeiro em águas internacionais e, imediatamente, se metamorfoseiam em vítimas encurraladas, sem escolha, obrigados a defender-se de ataque violento incitado por antissemitas.
Impossível não lembrar da clássica piada de humor judeu, sobre a mãe judia na Rússia, que se despede do filho convocado para o exército do czar, em guerra contra a Turquia. “Não se desgaste”, aconselha a mãe. “Mate um turco, e descanse. Mate outro turco e descanse outra vez...”
“Mas, mamãe”, o filho interrompe, “E se o turco me matar?”
“Matar você”?, exclama a mãe. “E por que o mataria? O que você fez a ele?”
Soa como loucura, para qualquer pessoa normal. Soldados pesadamente armados de um comando de elite abordam um navio no mar, no meio da noite, por mar e por ar – e são as vítimas?
Mas há aí uma gota de verdade: são vítimas, sim, de comandantes arrogantes e incompetentes, de políticos irresponsáveis e da imprensa que os mesmos arrogantes, incompetentes e irresponsáveis alimentam. De fato, são vítimas também da população de Israel, dado que esses eleitores, não outros, elegeram aquele governo, inclusive a oposição, que não é diferente da situação.
O caso do “Exodus” repetiu-se, com troca de papéis. Agora, os israelenses são os britânicos.
Em algum lugar, algum novo Leon Uris prepara-se para escrever o próximo livro, “Exodus
Há mais de 200 anos,
Fazer da Turquia, inimiga, é pior que simples tolice. Há décadas, a Turquia tem sido a mais próxima aliada de Israel na Região, muito mais próxima do que a opinião pública supõe. A Turquia poderia, no futuro, fazer o papel de importante mediadora entre Israel e o mundo árabe-muçulmano, entre Israel e Síria e, sim, também entre Israel e o Iran. É possível que Israel, agora, tenha conseguido unir o povo turco contra Israel – e já há quem diga que esse seria o único tema em torno em torno do qual os turcos afinal se uniram.
Estamos vivendo o segundo capítulo da operação “Chumbo Derretido”. Daquela vez, Israel reuniu a opinião pública contra Israel e os israelenses, chocamos os raros amigos de Israel e facilitamos a luta para os inimigos de Israel. Agora, Israel repete o feito, com talvez ainda mais sucesso. Israel conseguirá virar, contra Israel, a opinião pública mundial.
Esse processo é lento. É como água, acumulando por trás da barragem. A água sobe devagar, em silêncio, mal se vê. E quando alcança nível crítico, a barragem cede e será o desastre, para Israel. Israel aproxima-se perigosamente desse ponto.
“Mate um turco e descanse...” recomenda a mãe, na piada. O governo de Israel nem descansa! Parece decidido a não parar, até ter convertido em inimigo, o último amigo que reste a Israel.
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Kill a Turk and Rest
*Interessante comparar esse artigo, de Uri Avnery, com “
O artigo do Guardian visa a defender a preservação de “um Estado sionista”, na Palestina. Uri Avnery visa a defender “Dois Estados para Dois Povos” – campanha do Bloco da Paz, israelense, na Palestina. O jornal O Estado de S.Paulo finge que defende algum “equilíbrio”, mas obra para tirar das manchetes qualquer denúncia contra o governo de Netaniahu e, também, a denúncia de “claro ato de pirataria de Israel”, que está presente no original britânico, é denunciado também por Avnery, mas foi apagado da tradução publicada no Estadão. O Estadão é o pior jornal e mais mentiroso do mundo.