sábado, 2 de outubro de 2010

A Hora Sem Fim

Mauro Carrara


Talvez você saiba o que é uma hora sem fim. Sabe?

Pode ser a hora de um voo turbulento que não chega.

Pode ser a hora de uma criança que não nasce.

Pode ser a hora de um telefone que não toca.

Há 40 anos, em 1970, há uma hora sem fim em São Paulo.

Faz calor, mas se treme.

Os ossos da mão parecem todos moídos da palmatória.

Os ouvidos zunem dos "telefones".

A pele nua meio búlgara formiga dos choques elétricos.

O castigo é tanto que até os carrascos se exaurem.

Nesse descanso da barbárie, o que se ouve é um distante alarido infantil.

Não se sabe se são sinais do delírio ou informações do mundo real.

Há também uma torneira que pinga, como que contando erradamente os segundos.

A hora na "cadeira do dragão" não passa nunca.

E não passa especialmente para quem guarda segredo.

Então, a moça dura e frágil de 22 anos decide sonhar.

Sonhar para ver se adianta o relógio.

Cogita da liberdade.

Cogita de justiça, não só para si.

Cogita de comunhão.

Cogita de protagonismo na aventura de um país que garanta direitos.

Vê comida saborosa e fumegante na mesa, luz na fazenda, gente caminhando para o trabalho.

Além, divisa a hidrelétrica se erguendo, a plataforma sugando petróleo.

E também mede o sorriso alvo do índio que se diploma na universidade.

Por um momento, porém, acredita derivar ao pesadelo.

Pois a caluniam e adulteram criminosamente sua história.

Distorcem maldosamente suas palavras, colocando-a até contra o bom Jesus.

Contorce-se sobre o assento e fere os pulsos cingidos pelo couro.

Mas aí abre-se-lhe na janela da mente uma avenida embandeirada.

E o povo, muito de bem, brada sua defesa, numa resistência de festa.

Depois disso, respira rosas e palmas e avista pirotecnias multicoloridas.

O mar é de bandeiras e, dentre todas, destaca-se o pendão da esperança.

Ouve dali uma estrofe que entoava quando criança:

Recebe o afeto que se encerra
Em nosso peito juvenil,
Querido símbolo da terra,
Da amada terra do Brasil!

Assim, de olhos fechados, meio que desperta, meio que não, sorri nos lábios feridos.

Há um eco de jaulas trancadas.

Um vago lamento doloroso em alguma cela fria.

E a torneira insiste em errar o tempo.

Essa hora infiel não tem fim.

Acaba nunca. É dor para sempre.

Mas o sonho, esse tem começo e meio.

Faz a hora correr.

E você faz parte dele, como celebridade.

Tenha carinho por tão rara joia do pensamento.