domingo, 14 de abril de 2013

Venezuela sinaliza um futuro pós-neoliberal: Morreu Thatcher. Chávez vive!


12-14/4/2013, George Ciccariello-Maher, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu





“Mãe: Oh, meu filho, que morte perversa, danosa.
Rebelde: Oh, mãe, que morte fecunda, copiosa.
Mãe: Morte feita de tanto ódio.
Rebelde: Morte só de amor feita.”




George Ciccariello-
Maher

Duas mortes, e significados diametralmente opostos, evidentes nas respostas imediatas que provocaram. Uma foi recebida em luto, por milhões de homens e mulheres que encheram as ruas de Caracas, à espera de um minuto para a última despedida do comandante morto. A outra foi recebida em festa, nas ruas de Brixton e Glasgow, e por uma avalanche de postados cômicos nas redes sociais, sobre a iminente privatização do inferno. Mas enquanto as multidões reuniam-se espontaneamente para celebrar o fim físico da Dama de Ferro do neoliberalismo, Margaret Thatcher, os eleitores na Venezuela encaminham-se para as urnas para pregar mais pregos no caixão dela e enterrar o legado dela, elegendo um sucessor revolucionário para Hugo Chávez.

 

“Filhos de 1989”

 

A 4ª Guerra Mundial começou na Venezuela e foi guerra contra Thatcher e a gangue dela. Em fevereiro de 1989, Ronald Reagan acabava de passar o bastão para George H.W. Bush, e Thatcher manobrava para impor um seu “imposto comunitário” (orig. Poll Tax [2]), que seria recebido com tumultos épicos em Trafalgar Square no ano seguinte. Enquanto isso, na Venezuela, chegava ao poder um novo governo, com projeto aparentemente diferente. O socialdemocrata de centro Carlos Andrés Pérez fora eleito com plataforma antineoliberal, prometendo resistir ao pagamento da dívida externa, falando contra o FMI: “é uma bomba que só mata os mais pobres”.

 

Mas, chegado ao poder, mudou tudo. Pérez virou repentinamente a casaca, e instituiu o Consenso de Washington, neoliberal, ao pé da letra: pôs-se a privatizar e desregular; os pobres imediatamente perceberam que as coisas, dali em diante, pelo menos para eles, só poderiam piorar. Mas enquanto nos EUA e na Grã-Bretanha as populações iam dolorosamente engolindo a pílula amarga do neoliberalismo, sob a ilusão de que não haveria alternativa possível, os venezuelanos inesperadamente, puseram a saquear e pôr fogo no que encontrassem à mão, e começaram a tornar surpreendentemente possível o tal impossível.

 

Foi o chamado “Caracazo,” rebelião popular, de massa, nas ruas, que destruiu, em dias, o mito do excepcionalismo venezuelano e sua ilusória estabilidade. O Caracazo destruiu o sistema existente da democracia corrupta de dois partidos e abriu espaço para Hugo Chávez, ele próprio uma cristalização de demandas políticas jamais atendidas e aspirações nunca realizadas. Como se lia em graffiti nos muros, em Caracas: Somos os filhos de 1989, em revolução

 

Hoje, Chávez já se foi. E a guerra contra o neoliberalismo continua. Se, vivo, Chávez só muito raramente foi respeitado pela imprensa-empresa internacional – de fato, era personagem sobre o qual o “jornalismo” podia escrever, televisionar e dizer literalmente o que bem entendesse – por que esperar que fosse diferente, com Chávez morto? E lá estava: enquanto prosseguiam nas ruas as festas post-mortem contra Thatcher e o luto popular emocionado, por Chávez, o Guardian pressuposto muito progressista, fazia caminho inverso.

 

O obituário de Thatcher foi quase polido, não tivesse Rory Carroll, perfeito campeão “jornalístico” do absurdo, inventado um verniz de respeitabilidade para todos que gritassem um “já vai tarde” ao recém-falecido presidente Chávez. Carroll ainda sofre a vergonha de uma lição que Chávez lhe deu, pessoalmente. Por mais que volta e meia fale do assunto, nunca contou a história como realmente aconteceu. [3]

 

Esse bastião do liberalismo nos EUA, a revista The New Yorker não se saiu melhor. Um jornalista da empresa, Jon Lee Anderson, viu-se envolvido em um escândalo, quando, ao que se diz, estaria verificando fatos; mas a verdade é muito pior. A empresa The New Yorker chegou a corrigir dois dos principais erros de Anderson (Anderson publicou que a Venezuela seria campeã em número de assassinatos na América Latina; e, adiante, que Chávez teria chegado à presidência por golpe de Estado, não em eleições). Mas a empresa jamais corrigiu o principal vício de tudo que Anderson sempre escreveu: que os pobres, na Venezuela, seriam “vítimas de seu amor” por Chávez.

 

Afinal, no que tenha a ver com o comandante morto, tudo é permitido, no “jornalismo” atual.

 

Mas se Chávez sempre foi e continua a ser esquartejado pela imprensa-empresa, todos podemos nos consolar, porque a maioria dos venezuelanos simplesmente não toma conhecimento, nem acredita no que publicam os jornais e as televisões. Todas as pesquisas indicam que o candidato da direita, Henrique Capriles Radonski, será mais uma vez derrotado (hoje) pelo candidato indicado por Chávez, o ex-motorista de ônibus e líder sindicalista Nicolás Maduro. Os números das pesquisas refletem também as divisões internas, dentro da oposição a Chávez, que não se entendem, sequer, em termos de programa e estratégia.

 

As divisões dentro da oposição a Chávez

 

Na verdade, ante a derrota anunciada e praticamente certa, muito do que a oposição faz na Venezuela não passa de encenação para o público internacional. Por exemplo: recentemente, a coalizão de partidos que apoiam Capriles convocou recentemente uma conferência de imprensa para “denunciar” irregularidades no sistema eleitoral, que “um membro do PSUV [Partido Socialista Unido da Venezuela] teria a senha para inicializar e encerrar o sistema das urnas eletrônicas”. Mas, quando jornalistas o pressionaram para que desse detalhes da “denúncia”, Ramón Aveledo, secretário-executivo da coalizão de oposição reconheceu que a senha “não põe em risco o sistema eleitoral,  nada tem a ver com o software eleitoral, nem permite identificar os eleitores, nem a contagem de votos, nem a transmissão dos dados”.

 

O que se conclui do “evento”? Se o objetivo era desacreditar o sistema eleitoral, difícil imaginar fracasso mais patético. Mas a “denúncia” mostra que há divisões irreconciliáveis dentro da própria oposição. Não tem maioria, não vence eleições e, sem conseguir eleger-se pelos votos, a oposição na Venezuela vive tentando desacreditar as próprias eleições, em vez de buscar meios para eleger-se democraticamente.

 

Esse tipo de falta de perspectiva e possibilidades eleitorais levou à enlouquecida tentativa de golpe contra Chávez há exatos 11 anos, que não durou nem 47 horas, derrotada pelas mesmas massas que os golpistas, como sempre fizeram, subestimaram tão estupidamente. Com aquele golpe derrotado, a oposição só fez entregar ao governo Chávez a taça de plena legitimidade democrática. Muitos antichavistas se autocondenaram a passar anos tentando apagar o carimbo de “golpistas” que estamparam na própria testa. Até hoje, nada conseguiram. Depois que Chávez varreu a oposição da cena eleitoral, em 2006,  pela primeira vez, a maioria da oposição passou a aceitar os resultados eleitorais, rendidos à evidência de que a urna, não os golpistas, é a melhor garantia para a democracia na Venezuela.

 

Mas render-se à via eleitoral não resolve o problema de não ter votos, e enquanto tenta silenciar os absenteístas (a parte da oposição que prega a abstenção, para não votar em Capriles), os anti-Chavistas também trataram de caminhar alguns passos em direção ao centro, afastando-se da extrema direita, pelo menos em palavras, à procura de votos. Capriles e outros têm-se autoapresentado como socialdemocratas, sugerindo que não abolirão – apenas “aprimorarão” – os programas sociais, como as Missiones Bolivarianas. Não faz sentido e não convence ninguém, se se vê o que acontece no estado de Miranda, onde, quando governador, a primeira providência de Capriles foi assaltar as Missiones, a começar pelos centros de saúde e clínicas populares onde trabalham médicos cubanos, na Missión Barrio Adentro.

 

Capriles se autoboicota, também, quando apoiadores seus ocupam e vandalizam, como fizeram recentemente, um prédio de apartamentos em construção, parte do projeto de moradias para os mais pobres, do projeto Misión Vivenda [Missão Moradia]. Os que há tanto tempo atacam como “invasores”, os venezuelanos sem-teto que ocuparam um prédio abandonado, ou um pedaço de terra improdutiva, agora atacam um projeto chavista de dar casa aos pobres. E enquanto Capriles sempre evitou criticar diretamente Chávez, e pôs-se a atacar Maduro por não seguir o exemplo de Chávez, alguns de seus seguidores exibiam as velhas garras de sempre: pintaram graffitis de “viva o câncer”.

 

Quanto a Capriles, cujo sobrenome, só ele, já o expõe como porta-voz da elite mais decadente (e milionária), não há o que faça que consiga apagar o próprio passado. No segundo turno das eleições de outubro de 2012, circulou na Venezuela um documento vazado, no qual se lia um “Plano de Governo” de um hipotético governo Capriles. Embora tenha sido denunciado como falso por alguns, o tal plano correspondia exatamente ao que muitos sabiam de Capriles: com ele, voltaria à mesma selvageria neoliberal que levou ao Caracazo. Não é fácil apagar o próprio passado.

 

As tropas de choque de Thatcher

 

Mas o quanto da mensagem da oposição tem raízes na realidade? Talvez seja excesso de generosidade acreditar no que Capriles diga. Não há dúvidas de que até Capriles percebe a contradição: se critica o sistema eleitoral como injusto, desestimula os seus correligionários, que desistem de votar. Mas não faz outra coisa além de dizer que votem. Assim, ajuda a derrotar o próprio projeto eleitoral.

 

Embora haja uma espécie de vingança histórica no fato de que essa eleição se realize no dia do aniversário da volta triunfante de Chávez, não podemos deixar que o triunfalismo nos impeça de ver os abutres que voam sobre a democracia socialista da Venezuela. A imprensa-empresa internacional está mobilizada para desacreditar o sistema eleitoral venezuelano, e setores da oposição já começaram a manobrar, sugerindo que algo poderá acontecer.

 

Na 2ª-feira à noite, circularam notícias de que um acampamento de militantes da extrema direita, da JAVU (Juventude Ativa da Venezuela Unida), que estão em greve de fome, teriam sido atacados por grupos de “camisas vermelhas”, em motocicletas, rapidamente “identificados” como “Chavistas”. Para muitos, a “armação” é evidente, dado que os chavistas nada teriam a ganhar com esse tipo de ação, às vésperas das eleições. E a polícia de Chacao, controlada pela oposição, não interveio

 

Pelo que já se sabe, havia chavistas de Chacaoenvolvidos no tumulto, mas foram atacados por militantes da JAVU. O que explica, automaticamente, o motivo pelo qual a polícia local nada fez para interromper o ataque: por que intervir, se o seu próprio lado está atacando? Assista vídeo a seguir:

 

Esse tipo de ataque exibe todas as características típicas de ações da JAVU, organização que, ao mesmo tempo em que fala em nome da não violência estratégica, como a Albert Einstein Institution, tem longo passado de ações violentas (associada a um grupo de exilados, com base em Miami, o grupo Orvex). A JAVU sempre esteve associada a ataques violentos, de provocação, em toda a Venezuela, desde ataque a chavistas em Mérida, até uma tentativa de incendiar o Conselho Legislativo do estado de Miranda. Em Mérida, encontrou-se um smartphone no qual estava gravado o manual das ações da JAVU para os dias seguintes: não reconhecer os resultados eleitorais e tomar as ruas custe o que custar”.

 

Na 4ª-feira apareceram notícias ainda mais preocupantes. Primeiro, o próprio Capriles recusou-se publicamente a assinar documento no qual prometia respeitar os resultados das eleições, insistindo que se mudasse a redação, para categoria mais flexível: aceitaria assinar, se o documento falasse de respeitar “o desejo popular”. Dado que Capriles já assinara documento semelhante antes das eleições de 2012, é caso para pensar por que teria mudado, agora, a própria estratégia. A recusa preocupa, porque foi imediatamente associada ao texto divulgado de um telefonema, no qual um dos guarda-costas pessoais de Capriles diz que o candidato da oposição não reconhecerá a derrota – fato que, ironicamente, mostra que nem o guarda-costas de Capriles sonha com vitória eleitoral.

 

Não há dúvidas de que tudo sugere fortemente que um governo Maduro terá de enfrentar tentativa pós-eleitoral de golpe. Outro telefonema também vazado sugere que há esquadrões da morte, vindos de El Salvador, que planejam ataques durante a eleição, e que parecem ter laços diretos com o próprio Capriles. Foram presas 17 pessoas, acusadas de tentar sabotar redes elétricas, para provocar blecautes. Se se considera que até o governo Obama já disse que suspeita de que as eleições na Venezuela não sejam “limpas e transparentes”, todos esses são sinais preocupantes, para dizer o mínimo.

 

Uma aurora pós-neoliberal

 

Frantz Fanon disse certa vez, em frase que ficou famosa, que “Para o colonizado, a vida só pode brotar do cadáver apodrecido do colonizador”. Festejar a morte necessária do inimigo leva consigo, embora pela via negativa, um programa político positivo, e os britânicos que festejam nas ruas espontaneamente a morte de Thatcher festejavam, de fato, a morte do neoliberalismo.

 

Mas infelizmente para os que se reuniram em Brixton, o neoliberalismo e seu parceiro ideológico, a “austeridade”, estão hoje na ofensiva na Grã-Bretanha e em grande parte do núcleo do planeta global. A morte de Thatcher de modo algum indica a destruição, sequer o declínio, de seu legado ideológico. Nesse sentido, a celebração dos britânicos é tão catártica quanto prematura.

 

Só lá, do outro lado do globo, é que começam a ser dados os grandes passos para destruir o legado de Thatcher. Onde se constrói uma intransigência firme que é, de fato, uma alternativa ao neoliberalismo.

 

Como escrevi em “Nós criamos Chávez” [We Created Chávez], muito mais interessantes que Chávez, o homem, são as décadas de luta revolucionária que o precederam, cristalizada em torno de Chávez como símbolo de um mecanismo para empurrar adiante a luta contra o neoliberalismo. Vivo, Chávez sempre foi mais que a soma de seus atos, era como um barco no qual embarcaram os setores populares da Venezuela, depositando ali suas aspirações pós-neoliberais. Mas o formato do barco logo foi determinado pelo conteúdo, e Chávez converteu-se em vela socialista impulsionada por forças que já não controlava. Parafraseando o que C.L.R. James escreveu de Toussaint L’Ouverture, Chávez não fez a revolução: a revolução fez Chávez.

 

Do cadáver apodrecido de Thatcher, florescerá o mundo pós-liberal. A Revolução Bolivariana perdeu algo poderosamente importante, com a morte de Hugo Chávez, mas talvez seja melhor que tenha partido fisicamente, na grande onda do movimento histórico que incorporou, e ao qual continua a emprestar a força de sua imagem, para ajudar a luta a avançar. Com certeza, essa é morte que se deve preferir.

 


Notas dos tradutores

[1]  Aimé Césaire (1913-2008). “Talvez eu morra”, dedicado à mãe de Raj Kumar, indiano, dalit, morto e não socorrido pela polícia, em 2008, na Índia. Ver Lyric And Dramatic Poetry.

[2]  “O Poll Tax (imposto comunitário) foi imposto regressivo (a alíquota diminuía conforme aumentava a renda do cidadão), criado pelo governo de Margaret Thatcher em 1989 na Escócia, e em 1990 no restante do Reino Unido, para custear os governos locais (“councils”, semelhantes a prefeituras) por meio de uma taxa única a ser cobrada por habitante. Ele substituiria o sistema anterior, no qual o imposto era calculado de acordo com o valor dos imóveis, de forma semelhante ao IPTU brasileiro. A população britânica resistiu fortemente à implantação desse imposto, se recusando a fornecer os dados necessários ao governo, se recusando a pagar, e dificultando a punição dos inadimplentes. A impossibilidade de implantar este imposto, e a derrota do governo frente à população, foi a principal razão da queda de Margaret Thatcher como Primeira-Ministra”.

[3]  Assiste-se ao episódio, que foi ao ar no programa “Alô, Presidente” (n. 291, 26/8/2007, em 23’10), a seguir:


É em tudo semelhante a outro, em que Chávez espinafra um “jornalista” da Rede Globo, em 2010, e que se vê a seguir:




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