28/1/2015, [*] Norman Pollack, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Classe Média mundo afora... |
Por que tentar agora uma discussão teórica do capitalismo, embora esquelética e fragmentada, quando tanta coisa acontece pelo mundo, a militarização da cultura dos EUA com reforço social para sua postura hegemonista – mais ameaçada do que nunca antes desde a IIª Guerra Mundial pelo crescimento de outras nações e respectivas economias políticas, no que se vai rapidamente tornando um sistema internacional multipolar? A pergunta quase se autorresponde.
Os EUA correm cada vez mais apertados, talvez já com medo, nada habituados a que alguém desafie seu domínio exclusivo unilateral sobre o tal sistema, apoiado em “amigos e aliados” servis e na FORÇA, real e de reserva, para implementar a suserania norte-americana.
Essa semana, foram Índia e Arábia Saudita: fazer a sintonia fina do Império, negociar e/ou renovar alianças militares, oferecer garantias de segurança-proteção, processo sem fim de pôr um dedo no buraco para fechar a represa, sendo o buraco, nesse caso, a aspiração das pessoas a uma vida livre de exploração, acordos comerciais enviesados e tortos, o cogumelo nuclear engordando sempre no céu e escurecendo todos os futuros.
Por que agora, outra vez? Talvez pela mais transparente das razões, o discurso Estado da União de Obama, com seu mais recente clichê de enganação: a chamada economia de classe média, para encobrir a diferença escandalosa entre ricos e pobres, para, assim, enrijecer a estrutura de classes nos EUA, com consequências mais antidemocráticas a cada dia.
Novos dados da distribuição de renda explicam o golpe, pelo menos em parte. Mas não explicam tudo, porque o poder cresce geometricamente quanto mais amplas sejam as fundações, e quanto mais seja dado por indiscutível e confirmado pelo povão (submisso, doutrinado, engambelado, acostumado).
Em nenhum lugar mais que nos EUA, com seus mentirosos clamores de democracia, de superação das classes, de guardião da paz do mundo e do estado de direito, o poder traz com ele mais falsa consciência, com a IDEOLOGIA que vem à tona na estabilização e aprofundamento do capitalismo.
Daí, a economia de classe média, que não passa de capitalismo de monopólio embrulhado em papel-de-seda para parecer política inclusiva de oportunidades feita conforme a receita: Todos somos capitalistas! Todos somos altruístas! Somos todos iguais – posto que todos somos norte-americanos.
O subterfúgio é velho como as montanhas – Tocqueville bebeu no mito, as modernas empresas de relações públicas/propaganda/publicidade vivem da coisa, desde então, e o Evangelho dos Ricos opera sem parar, executivos de empresas & bancos, glutões in extremis, varrendo a entrada.
Obama é talhado para nossos tempos, sujeito sem nenhum escrúpulo, agente avançado da plutocracia. Com seus predecessores a chicanería era óbvia; Clinton, o Democrata, mãos-nas-mãos com Bush, o Republicano, passo a passo na arena da desregulação, penetração no mercado do outro lado do mundo, e estímulo econômico de preparação para a guerra, solenemente pronunciado “segurança” e “defesa”.
Mas quem leva a taça é Obama, enterrando o processo de acumulação de riqueza nas platitudes do norte-americanismo, a mais modernosa economia de classe média.
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Herbert Marcuse em Razão e Revolução, [1] um dos trabalhos mais significativos da filosofia política do século XX, diz no Epílogo que a sobrevivência do capitalismo dependeria de ele absorver a própria negatividade, tarefa crítica para que fosse bem-sucedido, mas superior aos seus meios. Dito de modo mais simples, o capitalismo é suas contradições, não como alguma fórmula abstrata (para mim) de materialismo dialético, mas nos modos políticos e estruturais mais pão-com-manteiga, de comportamento sistêmico que leve à formação e à manutenção de um estado-classe no qual os trabalhadores em termos relativos, aproximam-se muito do exército industrial de reserva de Marx, via uma condição de subconsumo que o mantenha onde está, e o princípio da HIERARQUIA firmemente intacto no dia a dia.
Contradições que são como código, então, para normalizar a repressão. Mas... não! Pode-se chamar a coisa toda, mais simples, de “economia de classe média”.
Discuti recentemente nessas páginas aquele discurso, o golpe de Ben e Rebekah [convidados de Michelle Obama para assistirem ao discurso na Casa Branca] para personificar e miniaturizar o capitalismo avançado, Todos & Todas sentados à mesa do café da manhã preparando a lista de compras do dia, enquanto Johnny sai para a escola – um conto de Megacapitalismo digno, como escrevi, de Goebbels.
Ben e Rebekah Erler com os 2 filhos |
Mas voltemos à distribuição de renda, não com Kuznets, ou melhor, Gabriel Kolko de “Riqueza e Poder”, para contrabalançar o piegas social-democrata de Michael Harrington “A Outra América”.
Em vez disso, tomemos o artigo de Dionne Searcey e Robert Gebeloff no New York Times, “Nos EUA, a classe média só encolhe, com mais gente saindo dela, do que ascendendo para ela” (Jan. 26, 2015), como resposta informal à economia de classe média. Começam assim:
A classe média que o presidente Obama identificou em seu discurso do Estado da União semana passada, como o fundamento da economia norte-americana vem encolhendo já há quase meio século.
Nada mau para o The NYTimes, até aí.
Mas eles também desapontam, usando uma banda elástica de renda, de US$ 35 mil a US$ 100 mil, para definir a classe média, onde se encaixavam, no final dos anos 1960s, metade dos lares norte-americanos. Ninguém (exceto, claro, os que foram expulsos da “classe”) percebeu a mudança em curso, porque muitos mais estavam “ascendendo a ladeira econômica para as faixas mais altas”.
Nesse ponto, Searcey-Gebeloff ficam mais sérios (digo isso, porque estatísticas pré-2000 mostram quadro diferente, quando os níveis de renda são mais precisos, incluindo a proporção nos 2/10 inferiores de renda):
Mas desde 2000, a faixa de classe média continuou a diminuir nos EUA. A razão principal da diminuição é que mais gente passou a escorregar para faixas inferiores. Ao mesmo tempo, poucos e cada vez mais poucos dos que estavam nesse grupo enquadram-se na imagem tradicional de casal casado com filhos em casa, espaço preenchido cada vez mais por idosos.
E os autores admitem:
Mesmo assim, independente da renda, muitos norte-americanos identificam-se como “classe média”.
O termo é de tal modo amorfo, que políticos muitas vezes citam esse grupo ao introduzir propostas para as quais buscam apoio amplo. (E, ideia minha: nem pensar que Obama estaria usando o discurso do Estado da União para fazer a mais reles propaganda!) Mesmo nessa faixa de renda, “muitos norte-americanos que fazem mais que US$ 100 mil se autoconsideram de classe média”, especialmente “quem viva em regiões caras”, como a Costa do Nordeste e a Costa do Pacífico. Quase dá pena dos que estão na ou acima da faixa dos US$ 100 mil – mais uma vez: a minha; os jornalistas observam: “Contudo, as linhas estão traçadas, é claro que milhões estão lutando para não perder itens que a maioria dos especialistas consideram essenciais para uma vida de classe média”.
Diminuição da Classe Média nos EUA (1967-2013) |
As mudanças demográficas na composição da “classe média” são instrutivas. “A classe média passou por uma transformação, ao mesmo tempo em que encolhia” – escrevem eles. – Idosos trabalhando depois de se aposentarem caem aí; casais com filhos pequenos caem abaixo dessa faixa como a vemos hoje. Significa que “em anos recentes, o componente de mais rápido crescimento da nova classe média têm sido lares chefiados por pessoas com mais de 65 anos”, com as aposentadorias garantindo alguma proteção, “agora que norte-americanos idosos cada vez mais trabalham até bem depois da idade tradicional de aposentadoria”. Por outro lado “casais com crianças – a categoria que mais encolheu – são a categoria que também diminui mais rapidamente de toda a classe média”. Mulheres casadas na força de trabalho vêm impedindo que esse grupo caia ainda mais. “A mais recente recessão pôs fim a qualquer avanço mesmo nessa categoria em geral bem-sucedida. Sua porcentagem na classe média caiu três pontos percentuais, e o grupo que vive com menos de US$ 35 mil dólares/ano aumentou”.
Mas vai tudo bem no Mundo Todo Feito de Pirulitos de Obama.
Adiante, o comentário que enviei ao The New York Times, sobre o artigo de Searcey-Gebeloff:
Enquanto alguém falar de “classe média”, seja estatisticamente (a faixa de US$ 35 mil-US$ 100 mil é absurda) ou como tópico de narrativa, continuaremos a ser enganados, induzidos a pensar que a distribuição de renda é mais democrática do que é, e que o poder está distribuído mais equitativamente do que na verdade está.
A tal “classe média” de Obama não passa de bordão de Relações Públicas, truque deliberado para não deixar ver a realidade. O presidente apela às almas boas para que vejam os EUA em termos não estruturais de não classe, ocultando assim a concentração de riqueza e varrendo para baixo do tapete tudo que só faz aumentar a DESIGUALDADE.
Ao usar esse quadro de referências que, claro, foi predominante por décadas, The NY Times contribui para a visão de que pobreza e riqueza possam ser analisadas e discutidas em termos não sistêmicos. Mas... E se a desigualdade estiver inscrita nas fundações da sociedade norte-americana?
E o quanto, para o bem ou para o mal, têm a ver com o fracasso econômico demográfico, o gasto militar massivo, a guerra, a intervenção e o militarismo em geral?
Os EUA como nação dependemos do militarismo. Os números seriam ainda piores se não estivessem aí esses gastos e essas políticas militaristas. E nem se fala do empurrão artificial que a economia recebeu.
O discurso “Estado da União” de Obama foi solene farsa, em plena discussão séria sobre “em que pé estamos?”. O imposto para empresas que ele propõe é inferior ao que temos vigente hoje. A “desregulação” de Obama só faz promover a consolidação financeira de vários modos da acumulação de capital. Ponha na mesma conta a inflação, e o que se tem, seja por decisão política ou por consenso bipartidário, é muita gente lutando para não morrer.
Nota dos Tradutores
[1] HERBERT MARCUSE [1898-1979] (1941) Razão e Revolução. Hegel e o surgimento da teoria social, Rio de Janeiro: Paz e Terra.
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[*] Norman Pollack é o autor de “The Populist Response to Industrial America” (Harvard) e “The Just Polity” (Illinois), Guggenheim Fellow e professor emérito de História na Michigan State University. Seu último livro, Eichmann on the Potomac, foi publicado por CounterPunch/AK Press, no outono de 2013.
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