9/1/2015, [*] Tariq Ali, L. R. B., vol. 37, n. 2, 22/1/2015, p. 21
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A lei francesa admite que se suspendam as liberdades, sempre que haja ameaça de agitação ou violência. Em tempos recentes, essa lei foi invocada para impedir as aparições públicas do comediante Dieudonné (muito conhecido por fazer piadas antissemitas) e para impedir manifestações pró-palestinos. A França é o único país em que essa proibição é hoje vigente.
Stephane Charbonnier, Charb − Editor-Chefe do
Charlie Hebdo, um dos mortos no atentado
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Foi horrível. Foi condenado em quase todos os cantos do mundo e ainda mais indignadamente por muitos cartunistas. Os que planejaram a atrocidade escolheram cuidadosamente os alvos. Sabiam que o ato, como foi executado, criaria o máximo de horror. Estavam em busca de qualidade, não de quantidade. A resposta nem os surpreendeu nem os desagradou. Nunca deram importância alguma ao mundo dos que não creem. Diferentes dos inquisidores medievais da Sorbonne, eles não têm a autoridade legal e teológica para perseguir livrarias e gráficas, proibir livros, e torturar autores. Então, deram um passo adiante e passaram a ordenar execuções.
E quanto aos coturnos-em-solo para executar as ações? As circunstâncias que atraem homens e mulheres jovens para esses grupos são criações do mundo ocidental em que eles vivem – e que é, ele mesmo, resultado de longos anos de governo colonial nos países dos avós deles.
Sabemos que os irmãos parisienses Chérif e Saïd Kouachi cultivavam longas cabeleiras de ‘'hippies'’ à ocidental e viviam como fumadores de maconha e outras substâncias, até que (como os autores da bomba de 7 de julho nesse país) viram filmes sobre a guerra do Iraque e, em especial, sobre as torturas que estavam em andamento em Abu Ghraib e a matança de cidadãos iraquianos em Fallujah.
Então, procuraram algum conforto na mesquita. Ali foram radicalizados por radicais à espera para os quais a guerra ao terror feita pelo ocidente já se tornara oportunidade de ouro para recrutar e hegemonizar os jovens, tanto no mundo muçulmano como nos guetos na Europa e nos EUA. Enviados primeiro ao Iraque para matar norte-americanos e mais recentemente à Síria (com a conivência do governo francês) para derrubar o presidente Assad, aqueles jovens aprenderam a dar uso mortal a armas mortais. De volta ao país natal, logo estavam prontos para usar o que acabavam de aprender, contra os que eles acreditavam que os atormentassem nos tempos difíceis: para eles, eram os que os perseguiam. Charlie Hebdorepresentou, para eles, os perseguidores. Nenhum horror pode cegar-nos para esse fato.
Charlie Hebdo nunca fez segredo de que deliberadamente trabalhava para provocar a ira dos muçulmanos crentes, cada vez que ridicularizava o Profeta. Muitos muçulmanos irritavam-se, mas decidiram ignorar o insulto.
O jornal que reproduziu os desenhos do Profeta Maomé publicados no jornal holandêsJyllands-Posten em 2005 – que mostrava o profeta Maomé como imigrante paquistanês – reconheceu que jamais publicaria “caricatura” semelhante que mostrasse Moisés ou algum judeu em posição marcadamente ridícula (mas talvez, de fato, já o tenham feito: não há dúvidas de que publicaram várias colunas em que apoiavam o IIIº Reich), mas Charlie Hebdo vê-se como defensor eterno dos valores republicanos, sempre seculares, contra todas as religiões.
Charlie Hebdo já atacou vez ou outra o catolicismo, mas nunca atacou o judaísmo (apesar de os ataques de Israel contra os palestinos serem ataque aos tais valores republicanos, e apesar de o desejo de Israel, de ser declarado “estado judeu”, nada ter de republicano ou secular ou laico). Charlie Hebdo concentrou todo seu zelo republicano na tarefa de zombar do Islã.
O secularismo francês hoje parece defender qualquer religião, desde que nada tenha a ver com o Islã.
Houve e há incansáveis críticas contra o Islã na França, a mais recente das quais é o novo romance de Michel Houellebecq, Soumission (literalmente “submissão”, “rendição”; é o significado “literal” também da palavra Islam). No romance, prevê-se que, em 2020, a França será governada por presidente egresso de um grupo de nome “Fraternidade Muçulmana”.
Charlie Hebdo, não se deve esquecer, chegou às bancas, no dia em que foi atacado, com capa em que promovia o lançamento do livro de Houellebecq. Defender os direitos de Houellebecq de publicar, fosse qual fosse o romance, é uma coisa. Mas sacralizar uma revista satírica que toma por alvo regularmente os mais fracos dos mais fracos, justamente os mesmos que são vítimas da mais rampante islamofobia, é quase tão ensandecido quanto justificar os atos de terror contra a revista. Nessa loucura geral, um lado (louco) enlouquece cada vez mais o outro (louco) lado.
A lei francesa admite que se suspendam as liberdades, sempre que haja ameaça de agitação ou violência. Em tempos recentes, essa lei foi invocada para impedir as aparições públicas do comediante Dieudonné (muito conhecido por fazer piadas antissemitas) e para impedir manifestações pró-palestinos. A França é o único país em que essa proibição é hoje vigente.
Dieudonné e a "quenelle" |
Já diz muito que essas proibições não sejam vistas como problema por uma grande maioria de franceses. E não só os franceses: ninguém viu qualquer vigília, velas ou manifestações de massa em local algum da Europa, quando se soube que prisioneiros muçulmanos entregues aos EUA por muitos países da União Europeia (à frente deles, a Polônia e a Grã-Bretanha dos ‘trabalhistas’) haviam sido torturados pela CIA. Há muito mais em jogo hoje, que “sátiras”.
A arrogância, o tom de vaidade autocomplacente dos liberais seculares que falam de defender até a morte a liberdade, só encontra equivalente na fala infindável dos muçulmanos liberais, que não se cansam de repetir e repetir que o que houve nada teve a ver com o Islã. Há muitas diferentes versões do Islã (a ocupação do Iraque foi usada deliberadamente como gatilho para disparar as guerras entre sunitas e xiitas, que ajudaram no parto que trouxe ao mundo o Estado Islâmico). É absolutamente sem sentido alguém pretender que falaria em nome de algum único Islã “real”. A história do Islã, desde os primórdios, está repleta de lutas entre facções.
Correntes fundamentalistas dentro do Islã, tanto quanto invasões, assaltos de fora para dentro, foram responsáveis por diluir e fazer descarrilhar muitos avanços culturais e científicos no fim do período medieval. As mesmas discórdias e diferenças ainda existem.
Entrementes, Hollande e Sarkozy já anunciaram que estarão lado a lado na linha de frente de uma marcha de unidade nacional (Cameron também estará na avenida, na mesma ala).
Como me escreveu um amigo francês,
A ideia de que Charlie Hebdo tenha criado condições para essa “santa aliança” só pode ser ironia da história, do tipo que deixaria embasbacado, sem acreditar nos próprios olhos, até o mais cínico dos “libertaristas” anti-establishment pós-68.
[*] Tariq Ali (nasceu em Lahore, hoje Paquistão, em 21/10/1943) é escritor e ativista. Escreve periodicamente para o jornal The Guardian e para a New Left Review e London Review of Books. Estudou na Universidade do Punjab. Devido aos seus contatos com movimentos estudantis e temendo por sua segurança, seus pais o enviaram à Inglaterra. Estudou Ciências Políticas e Filosofia em Oxford. Foi o primeiro paquistanês a ser eleito presidente do Diretório Central dos Estudantes daquela universidade inglesa.
Sua notoriedade teve início durante a Guerra do Vietnã, quando manteve debates com personagens centrais, tais como Henry Kissinger. Tornou-se um crítico ferrenho das políticas externas dos Estados Unidos e Israel. Ali é um crítico das políticas econômicas neoliberais e esteve presente nas edições de 2003 e 2005 do Fórum Social Mundial, tendo sido um dos dezenove signatários do Manifesto de Porto Alegre.
Publicou mais de uma dezena de livros sobre História e Política Internacional, além de várias novelas ficcionais. Seu livro mais recente é Bush na Babilônia: a Recolonização do Iraque, publicado no Brasil pela Editora Record, além de Confronto de fundamentalismo, Redenção e Mulher de Pedra.
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