28/12/2014, The Saker The Vineyard of the Saker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Dos “Comentários”, na mesma página(trad.) Grieved disse...
Saker, fiquei muito impressionado por você estar pensando em sistemas de organização social. Como capitalista que vive o pleno declínio e fracasso do capitalismo nos EUA, vivo buscando socorro no socialismo, em Marx e nessas teorias que nunca, em tempo algum, foram bem estudadas no ocidente, querendo aprender. Agora, aí está a chance! Obrigado!
Entreouvido no quiosque do Folgado, na Vila Vudu: Muuuuuuuuuita calma, amigo Grieved. Esse artigo é obra de autor erudito e inteligente, mas liberal anticomunista. Só os liberais eruditos e inteligentes, sempre metidos a “éticos”, são suficientemente arrogantes-desavergonhados para insistir em que seriam pró-liberdade e, simultaneamente, falar-escrever como fascistas anticomunistas furiosos.
Pretender que o socialismo seria “ótimo para vencer guerras” é ideia que nos deu saudades de Stálin! Com Stálin vivo e governante, esse papim furado podia ser aproveitado para vencer guerras onde e quando fosse preciso vencê-las para não morrer; e, em tempos de paz, era mandado cantar na Sibéria.
Depois, no fim, aquela linhazinha metida a inteligentíssima: “e se o socialismo for ferramenta contra o imperialismo?” Que sem-vergonhice!
Mas... Vamos esperar.
Quem sabe o Saker oferece espaço para defesa COMUNISTA do comunismo? Quem sabe?!
Afinal, Lênin aí está, imatável:
“Socialismo é a libertação completa dos trabalhadores, de toda a opressão, política e econômica”.
“Socialismo é uma ordem social, na qual não há pobreza entre as massas, nem exploração do homem pelo homem”.
É claaaaaaaro que socialismo vence guerras capitalistas. É claro. Sempre venceu e sempre vencerá.
Claro, também, que o imperialismo será derrotado [a] pelas contradições dele mesmo, de dentro para fora; e [b] por povos socialistas e comunistas em luta para não se deixarem matar pelo capital, capitalistas, pelos fascistas e pelos liberais.
The Saker |
De: Saker
Para: Caros amigos,
Estou postando hoje um primeiro artigo do que espero que venha a ser uma série de “Repensar a Política”. Meu projeto é o seguinte: nos disseram e nos dizem que o comunismo morreu. Não sei se morreu, mas talvez tenha morrido. Meu argumento é que o que chamamos de “social-democracia europeia” morreu em 2014, depois de longa e dolorosa agonia. Os EUA só são república ou democracia no nome; na realidade são oligarquia fascista. Chávez na Venezuela falou de “socialismo bolivariano”. Arundhati Roy na Índia parece pensar que a democracia morreu e que guerrilheiros maoístas podem talvez ter a resposta para muitas perguntas. Uma coisa é certa: Fukuyama errou e a história não se acabou [1] (a menos que algum doido idiota na Casa Branca lance ataque contra a Rússia, quando então, sim, a história acabará).
Nunca esquecerei o dia, em 1992 ou 1993, quando, durante uma conferência sobre Desarmamento na ONU, um embaixador paquistanês disse algo que lembrarei para sempre. Olhou para as delegações ocidentais e disse:
Vocês acham que o capitalismo de vocês derrotou o comunismo? Se acham, acham errado. O que aconteceu foi que as contradições internas do comunismo desmontaram o comunismo antes que as contradições internas do capitalismo desmontassem o capitalismo.
20 anos depois é praticamente inegável que o homem estava absolutamente correto. E não surpreende que a percepção venha de um muçulmano, antes de todos, porque o Islã hoje oferece claramente pelo menos duas alternativas às ideologias ocidentais: na Arábia Saudita, o pensamento mais profundamente reacionário, medieval; no Irã, pensamento moderno e muito progressista.
Acho que é hora de repensar nossa política, nossas categorias políticas, nossas certezas sobre o que é pior e o que é melhor e todos os nossos pressupostos sobre a história recente. Muitos de nós vivemos no chamado “ocidente” e, se há evidência inegável é que nossa ordem social está morrendo, totalmente desacreditada e desprezada pelo resto do planeta, nossos políticos parecem simplesmente incapazes de articular qualquer coisa remotamente conectada, que seja, à verdade; e o mundo padece de carência grande, imensa, muito severa, de ideias novas.
Com essa série “Repensar a Política”, quero começar por uma tabula rasa sobre a qual possamos re-examinar tudo e tentar ver se, pelo menos, identificamos alguns fatos ou ideias que nos ajudem a pensar fora da ‘caixa’ de ferro que nos é imposta por nossas estúpidas sociedades. [2] O principal não é encontrar respostas certas, mas perguntar melhores perguntas.
Essa série começa hoje com Andreja Vrazalic, que faz algumas perguntas muito básicas e importantes sobre o que é o socialismo (a resposta sempre depende de a quem se pergunte). Estou muito feliz com essa primeira contribuição e agradeço profundamente a Vrazalic por estar lançando o que espero que venha a ser discussão longa e produtiva que envolverá muitas outras contribuições de autores muito diferentes e diferentes pontos de vista.
The Saker
A atração sedutora irresistível do socialismo
por Andreja Vrazalic
Andreja Vrazalic |
Já lá vai um quarto de século, desde que o socialismo foi declarado oficialmente morto. Morto sem choro, senão de uns poucos, como alguns iugoslavos nostálgicos, que podiam viajar ao exterior e eram jovens e portanto recordam o governo de Tito como coisa grandiosa. São pequena minoria – tão poucos, de fato, que um partido comunista transformou o próprio país em capitalista, com excelentes resultados e, recentemente, o mesmo país chegou ao trono de primeira economia do mundo.
O socialismo, ou o comunismo, é ideia hoje completamente desacreditada. Há partidos social-democratas, e falam um pouco mais sobre ‘o trabalhador’, mas é só. Mesmo hoje, em plena crise do mercado ‘livre’ (que é completamente outra história), praticamente já não há quem alimente a ideia de lutar pelo socialismo. Não é de estranhar – o socialismo prometia o paraíso na Terra e, muito frequentemente, a coisa virou inferno. Nem os fãs mais linha-dura de Tito, que tendem a não ver as execuções em massa e as desapropriações de que seu governo foi culpado, conseguem aprovar o genocídio no Cambodia ou o terror stalinista. Além do mais, o socialismo não estabeleceu a igualdade. Longe disso: havia profunda diferença entre um “camarada membro do Partido” e o cidadão comum. E nem tente misturar-se com o seu empregador – e só havia um, o Estado. Quanto ao rápido crescimento econômico, bem, aí também os resultados deixaram a desejar: a União Soviética desmontou-se, em colapso, depois de uma crise econômica.
Há boas razões para esse fracasso, e elas têm a ver com a impossibilidade de o Estado substituir a “mão invisível”, quer dizer, a impossibilidade de uma única autoridade aprovar todas as decisões que milhões de pessoas aprovam todos os dias. Um único ator no mercado implica nenhuma concorrência, etc., etc... Em resumo, o socialismo, como sistema que o mundo conheceu, não satisfez nenhuma das expectativas que gerou.
Nenhuma? É mesmo?!
Acho, francamente, que, por exemplo, os vietnamitas, não concordariam com a ideia de que o socialismo, como sistema que o mundo conheceu, não satisfez nenhuma das expectativas que gerou. Os vietnamitas derrotaram a principal superpotência do mundo, sob a bandeira vermelha dos comunistas. Os russos derrotaram uma das maiores máquinas de guerra que o mundo jamais viu, e passaram a ser a segunda principal superpotência do mundo, também sob a bandeira vermelha dos comunistas.
Capitalismo vs Socialismo (na Rússia) |
É preciso lembrar que, quando olhamos para o socialismo, olhamos do ponto de vista da Europa ou da América do Norte ricas. Quando os sérvios olhamos para o socialismo, vemos Tito e as minas que enterrou e que continuam a explodir na nossa cara, sem parar, por 25 anos. O mesmo vale para os países da Europa Oriental, inclusive os russos (fronteiras comunistas, conhecem?). Temos de ser objetivos, ou o mais objetivos que seja possível.
Observador objetivo começa por definir claramente os termos e analisar um pouco as variáveis e alternativas. Os resultados podem ser interessantes.
O que é o socialismo?
Quando falo de socialismo, refiro-me ao sistema econômico e político que muita gente conhece como comunismo. Mas a Iugoslávia e a URSS só foram socialistas no nome. A coisa que hoje se conhece como socialismo não passa de social-democracia, uma ideologia do campo da democracia capitalista, que só guardou alguns mínimos traços de socialismo.
Na prática, o socialismo implica (...) economia controlada pelo Estado. Quanto a isso, pode ser comparado ao seu arqui-inimigo, o sistema ocidental, descrito como democrático e capitalista, ou de livre-mercado. Mas o fato de que, para começar, se faça essa comparação, já é golpe de propaganda tão excepcional, que é caso de comprar ingresso de primeira fila, para admirar.
Não se comparem maçãs e laranjas
Comparar socialismo com democracia e livre-mercado faz tanto sentido quanto comparar uma coisa real com uma coisa imaginada, quer dizer: não faz sentido algum. O bloco ocidental, quando impôs essa comparação, marcou um tento (de muitos!) de seus muitos golpes de propaganda. Inventou uma imagem fantasiada, polida, brilhante, sem sombras de si mesmo, espécie de definição com Photoshop, pode-se dizer. Inventou e impôs uma narrativa sobre uma luta por liberdade e democracia... como se a democracia ocidental e o livre mercado realmente respeitassem alguma liberdade e alguma democracia.
Como se pode(ria) falar de democracia ocidental se se sabe que, no principal país daquela democracia, um presidente pode ser eleito e governar mesmo que perca no número do votos populares na urna; mesmo que não existam referendos; e mesmo que dois partidos e só eles, e sempre os mesmos, se alternam no governo há, no mínimo, 150 anos??? E nas democracias clientes daquela ‘democracia excepcional’ a coisa é ainda pior: diz um velho dito popular que a democracia só é possível nos EUA, porque é o único país do mundo onde não há embaixada dos EUA. E isso sem falar da espionagem generalizada contra os próprios cidadãos – que faria Stálin morder-se de inveja.
Há quem creia que o Sistema Ocidental sair-se-ia melhor na comparação, no quesito livre mercado. O Estado não interfere demais no funcionamento do mercado, e as pessoas mais ou menos fazem livremente suas transações. Mas só no micronível. No macronível, a história da liberdade de mercado faz água por todos os lados. Talvez o Estado nem interfira tanto. Mas o Estado não é o único ator – há corporações-empresas de todos os tipos, as que se veem e as que nem se desconfia que existam. O Federal Reserve System é comandado por banqueiros privados; vez ou outra um bilionário norte-americano faz alguma coisa exatamente alinhada com os interesses nacionais dos EUA. E nem se fale da imprensa-empresa nos EUA – nós, sérvios, conhecemos aquela gente há muito tempo. É gente que mente tanto, que os propagandistas de Milosevic podem ser considerados gente séria, que não fala/escreve sem fatos...
Como se explica que os banqueiros, os magnatas, os jornalistas e comentaristas da imprensa-empresa e o próprio governo dos EUA digam todos, sempre, exatamente a mesma coisa, como se falassem por uma única cabeça? Como é possível o trânsito intenso do Big Businesspara o Big Governo, ida e volta, sem parar? E o que foi aquele Complexo Militar-Industrial de que Eisenhower falou?
Se olhamos com objetividade o Sistema Ocidental, não será preciso propor muitas perguntas, porque a surpresa é nenhuma. O Sistema Ocidental começou há muito tempo, em Roma. Em Roma havia eleições, assembleia, livre comércio, propriedade privada respeitada (que houvesse pessoas que eram itens da propriedade privada de outros é detalhe). Praticamente uma democracia capitalista. Mas hoje, dois mil anos depois, pode-se examinar objetivamente a República Romana e vê-se que é república oligárquica, na qual todas os cordões do poder e da riqueza são manipulados por poucas famílias representadas no Senado. Além do mais, Roma tinha uma receita interessante: dado que os senadores não podiam envolver-se diretamente em atividades comerciais, eles ‘operavam’ por interpostos terceiros, e o dinheiro dos senadores tornava-se praticamente invisível.
Roma tinha outra característica que se observa hoje também nos EUA: era um império.
O imperialismo
A riqueza, riqueza a sério, vejam vocês é, sim, uma coisa maravilhosa: nenhum problema material de sobrevivência, e as pessoas pensam o melhor de você – que você, porque é rico, é mais inteligente, mais capaz, etc. É possível que invejem você, mas, como já disse alguém, a inveja é uma das formas mais sinceras de adulação.
Em resumo, se você é rico você passa a ser creditado com atributos e poderes que vc talvez não tenha, e você, por que não, passa a servir-se daqueles créditos. Se lhe perguntam sobre seu primeiro milhão, você explica detalhadamente o quanto trabalhou para merecê-lo, escolheu cuidadosamente parceiros e empregados; e você tende a não incluir nas causas do milhão aquele negócio com o político local encarregado de construções. Vale o mesmo para grandes nações: divulgam muita poesia sobre os méritos do livre mercado, da mão invisível e da divisão do trabalho, e raramente incluem nas causas da riqueza que saquearam a Índia, que roubaram terras de populações nativas. Esquecer é humano – sobretudo os itens que o fazem aparecer com cara de assassino e bandido.
Dito em forma resumida, quando se fala de riqueza, é preciso ter em mente que (no plano das nações), a riqueza só pode ser obtida por duas vias: pelo trabalho ou pelo roubo. Além disso, é preciso ter em mente que essas duas vias são muito assemelhadas. Se os indivíduos conseguem enriquecer simultaneamente pelas duas vias, pelo trabalho e pelo crime, as nações também conseguem. De fato, nos dois planos, há um pré-requisito comum: para enriquecer é preciso poder.
Riqueza: pré-requisitos
Não entremos naquela maratona de discussões sobre se é melhor viver na Noruega ou nos EUA: é relativamente parecido. E ignoremos os casos extremos e nações micro ou muito pequenas, como Suíça ou Cingapura. Concentremo-nos no essencial. Temos de olhar para os continentes e os grandes países e perguntar-nos: onde a riqueza está concentrada?
Logo se vê que a maior riqueza acompanha a maior força. A URSS foi muito mais pobre que os EUA, mas muito mais rica que China, Índia ou África daqueles dias. Pode-se rastrear também essa história: considere-se a riqueza do Império Britânico ou de Roma: a riqueza aumentou por lá, quando começaram a adquirir colônias. Houve saque e roubo, claro, mas a indústria florescia – a Grã-Bretanha é o berço da Revolução Industrial, causa do padrão de vida sem igual de que disfrutamos hoje.
Como Adam Smith ensinou ardilosamente: pré-requisitos da riqueza são paz, impostos baixos e administração suportável da justiça.
E agora especificamente: quem pode garantir que a paz se mantenha, sem força e poder? Não falo de paz como ausência de guerras: santo Deus, não. A Grã-Bretanha vitoriana ou os modernos EUA vivem permanentemente engajados em guerras, campanhas, intervenções, preparações para novos golpes, etc., etc… Quando se diz paz, é paz em casa. E isso, sim, eles tiveram. E aí está o pré-requisito para que as pessoas relaxem, trabalhem, produzam e não se preocupem em tempo integral com sempre ter as malas prontas para fugir.
Destruir a concorrência
Riqueza é muito relativo: as pessoas vivem a discutir se é melhor viver na Noruega ou na Suécia, que nos EUA. Sinceramente, não faço ideia. Nem é importante para o que fazemos aqui: nem a Noruega nem a Suécia são concorrentes dos EUA. A África inteira, ou a América Latina, sim, podem ser. A riqueza dos EUA é muito relativa: os EUA têm mais que qualquer país ou continente X e, portanto, EUA são ricos, e X é pobre. Não há quantidade específica de bens ou dinheiro que os EUA tenham de ter para ser considerados “ricos” – basta que tenham mais que os demais. Se os EUA não têm mais que os outros, os EUA não são “ricos”. Se não são ricos, então, provavelmente não são tampouco a Fonte de Todo o Saber, a Terra Prometida e Governador e Mestre Indiscutíveis de Todo o Planeta. E se não forem, a coisa perde a graça.
Há dois meios pelos quais é possível manter aquele status: pelo avanço econômico; e minando e detonando a concorrência. Os dois meios andam juntos, de certo modo: quando se destrói/detona a concorrência, a economia do detonador/destruidor abre asas. Pode-se destruir a concorrência mediante protecionismo – chutando a concorrência para bem longe do nosso mercado – mas só as grandes potências podem fazer tal coisa, como os EUA ou a Alemanha do século 19. Segundo a teoria do livre mercado, o protecionismo é loucura; de fato, taxar consumidores domésticos leva à ineficiência econômica. Mas é preciso ter em mente que o mercado não é “realmente” livre, e que estados e empresas estrangeiras ocasionalmente se misturam; e que não raras vezes são uma e a mesma coisa. Não vêm ao país da gente, aqui, para melhorá-lo: vieram para fazer lucros – de um modo ou de outro. Mais frequentemente, de outro.
Chutá-los para longe de nosso mercado não é pecado, necessariamente, se se consideram os interesses dos consumidores. Fato é que, que vêm paranos prestar um serviço... por que tanto querem que querem vir e ficar por aqui?
Por que a Áustria-Hungria tanto tenta proibir que os sérvios mantenhamos tarifas de importação sobre produtos, se a exportação dos mesmos bens seria serviço tão inestimavelmente bom para a Sérvia? Por que tanto se fala de “conquistar o mercado”?
Se você fecha seus mercados, não os abre e mantém-nos fechados, sempre resta a velha boa alternativa de ocupar, ocupação.
As colônias
O colonialismo é simplesmente a coisa mais fantástica: você se muda para o país de outro povo, sob qualquer pretexto nebuloso de que lá só vivem selvagens ou coisa que o valha, e que você é obrigado a civilizá-los, fazê-los amar Deus e os ‘noticiários’ da Rede Globo-Brasil, e impedir que se matem uns os outros. E muitas vezes a ideia “cola”. De fato, vale tanto para o século 19, quando a imprensa-empresa não estava implantada exatamente no coração da África para noticiar as mentiras, como hoje, quando os EUA estão fazendo exatamente a mesma desgraça no Oriente Médio, sob o pretexto de que estariam democratizando a coisa lá.
É deveras maravilhoso que esses países ocidentais tanto se apliquem e esforcem-se por civilizar nativos, de modo tão desprendido, tão altruísta. Sim, auferiram algumas pequenas vantagens, ouro e outros minérios, madeira, terra, escravos, petróleo, etc., mas não mudam o cerne do argumento. O importante é civilizar selvagens. É o peso que pesa sobre as costas do Homem Branco, o “Fardo do Homem Branco”, como escreveu Rudyard Kipling.
O Homem Branco aplicou-se tão dedicadamente ao negócio de civilizar, que, por exemplo, no Congo, no momento em que o país conseguiu tornar-se independente, depois de vários séculos de ocupação belga, havia exatamente 15 nativos com diploma universitário.
Libertação. Ou: por que o socialismo não é negócio para ricos?
Os nativos mal-agradecidos decidiram, às tantas, que bastava de tantos cuidados, e trataram de expulsar os colonizadores. Interessante observar que aqueles movimentos anticolonização tiveram sempre alguma forma de ideologia de esquerda. E de algum modo, bastante naturalmente, gravitaram na direção da União Soviética.
Não fazia perfeito sentido com a teoria socialista original, segundo a qual o comunismo deveria acontecer em sociedades como a inglesa ou a alemã, nas quais a burguesia e os trabalhadores da indústria eram maioria, e nas quais, no fim, os trabalhadores venceriam. Diferente disso, o comunismo venceu em países relativamente pobres. Fato é que, se o comunismo fosse totalnonsense, se não fizesse algum sentido, com certeza não seria adotado em lugar algum, exceto talvez no Camboja de Pol Pot. Se o comunismo fosse ideia genial, todos quereriam ser comunistas. É fato, sim, que há elementos do socialismo em todas as sociedades modernas, sob a forma de alguns direitos dos trabalhadores. Mas são elementos, não é a essência.
Os social-democratas apoiam essencialmente o capitalismo – não fosse assim, viveriam a tentar nacionalizar/estatizar fábricas, não a querer privatizar tudo. Por outro lado, temos Cuba, Venezuela, Bolívia onde mesmo hoje persistem as ideias socialistas, até avançam; e há até o Partido Comunista Chinês, que abraçou o capitalismo.
Assim se vê, praticamente como um padrão, que sociedades ricas não desejam o socialismo, e que sociedades pobres tendem a ele.
O que os pobres viram no socialismo, que os ricos nunca viram? Em termos de eficácia econômica, o socialismo não é sistema especialmente eficiente. No socialismo real, o estado comanda a economia e é sabidamente ineficiente (e não entremos na teoria comunista, segundo a qual o dinheiro desapareceria numa sociedade na qual todos fossem iguais, mas que nunca decolou, de fato).
O socialismo estabelece o controle sobre a economia a partir de um ponto único. Esse controle unificado é ineficiente e é injusto, e não gerará sociedade muito superior a uma sociedade “capitalista”. Mas a sociedade socialista pode dirigir suas energias mais facilmente e mais diretamente para um objetivo; e resistirá mais eficazmente contra influência externa. Se você é pobre, o socialismo pode ser a solução perfeita para você.
Nada assegura que a vida será muito melhor, mas os pobres já são mais pobres que os ricos, hoje, e nada muda se a sociedade é capitalista ou socialista. Mas, em mundo socialista, os pobres conseguirão lutar contra os ricos, porque todas as energias dos pobres estarão focadas em buscar mais e mais felicidades, e porque o soft power dos ricos sobre os pobres terá efeito diminuído.
Que outra explicação haveria para o fato de que os rivais na Guerra Fria fossem os EUA – sem dúvida o país mais rico do mundo desde 1919 – e uma Rússia/URSS, uma das potências europeias, sim, mas devastada por duas guerras mundiais e uma revolução, e que, mesmo assim, depauperada, soube pôr em órbita o primeiro homem que viu o espaço sideral in loco?
Como se explica que o pequenino Vietnã tenha derrotado o gigante EUA? Se o Vietnã não fosse socialista, jamais teria podido fazer o que teve de fazer para vencer aquela guerra. O capitalismo é notório pelos magnatas/oligarcas – os EUA subornariam meia dúzia deles por lá, e o Vietnã despencaria como fruto maduro.
No socialismo não há oligarcas. O poder político e econômico está conectado no plano do partido, não no plano individual. E o partido apresenta uma frente unida contra invasores – e a unidade é pré-requisito absoluto para vencer guerras.
Há guerras “quentes” e também as há “frias”, nas quais as potências estrangeiras querem alcançar o domínio econômico sobre determinado país, e convertê-lo em (neo)colônia. O país-alvo tem duas possibilidades: deixar-se conquistar e converter, para todos os fins e objetivos, em colônia; ou lutar pela própria independência.
É escolher entre dois males: colônias são exploradas e castigadas se tentam reconquistar a própria liberdade; e a liberdade é cara, de fato não é nem livre nem barata, porque sempre existirá hierarquia. Será menos rígida: a diferença entre um vietnamita comunista e os vietnamitas comuns não é dura e imutável como rocha. A diferença entre um francês e um vietnamita, sim, é.
Em resumo se pode dizer que o socialismo é sistema perfeito para vencer guerras. Nem todas, mas muitas. Perguntem aos espartanos.
Dois lados da mesma moeda: os crimes
O socialismo, ou comunismo, tem sido acusado de ser inerentemente criminoso, e já foi até dito “um fascismo”. Os crimes dos comunistas aí estão, não há como duvidar deles.
(...)
As vítimas do ocidente são de certo modo sempre esquecidas. Da “Solução Final” ao problema dos nativos, passando pelo Congo Belga, mil e um massacres sangrentos de populações nativas dos quais nunca ouvimos falar, Hiroshima e Dresden, até vitórias recentes da democracia, não se pode dizer que o Sistema Ocidental tenha alma limpa imaculada. Não. É preciso começar a contar as vítimas desse sistema.
Não faz sentido acusar o socialismo ou o comunismo de terem alguma específica natureza criminosa. Comparar a Tchecoslováquia comunista e o Cambodia comunista; a Argentina fascista e a Croácia fascista; a Dinamarca democrática e a Bélgica ou os EUA democráticos mostra claramente que todos os sistemas têm sua cota de criminosos e não criminosos (de menos-criminosos, melhor dizendo).
À guisa de fim
Compreendo que algumas pessoas busquem sociedade mais justa, sociedade na qual todos possam viver em paz e prosperidade. Alguns viram o socialismo como essa sociedade desejada. Estavam errados.
Contudo, como nos ensinam os exemplos de Esparta e do Antigo Egito, o socialismo não é inerentemente novo. É um sistema em que o Estado controla os recursos. Esse sistema sempre existiu desde que o mundo é mundo, e a derrota recente não significa que vá sumir para sempre. Pelo contrário, a história nos conta que as coisas tendem a ir e vir como ondas, e que atual vitória do sistema chamado capitalismo liberal – que não é vitória – não será permanente. O socialismo voltará à moda em algum momento, talvez sob outro nome, mas com a mesma essência.
É importante para nós sabermos o que é o socialismo, o que pode e o que não pode fazer. Por favor, não me falem da mais justa distribuição de bens, que o socialismo trará. Não trará. Socialismo nada tem a ver com isso. A natureza humana é tal, que as pessoas gravitam para ordens hierárquicas, e os de cima sempre se darão mais bem que os de baixo. Seja qual for o sistema. Mas é um pouco pior se os de cima têm pele de cor diferente, ou se são só estrangeiros. A diferença é então maior, a exploração, mais cruel.
Se alguém quiser falar comigo sobre o socialismo como ferramenta contra o imperialismo, OK. Fale. Estou ouvindo.
Notas dos tradutores
[1] “E O MUNDO NÃO SE ACABOU”, samba-choro de Assis Valente, acompanhamento do Conjunto Regional, gravado dia 9/3/1938. Carmen Miranda cantou imortalmente (a seguir),
e também, imortalíssima, a Paulinha Toller (a seguir):
[2] Impossível não lembrar passagem da introdução de O discurso do método, de Descartes (1637):
Meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a minha.
Essa disposição metodológica talvez se justifique em Descartes, que tinha de driblar a Inquisição. Mas virou muleta liberal e, desde o século XVII, sempre aparece como uma espécie de alvará preventivo para, na sequência, expor o pensamento liberal mais tosco, que “apaga” os próprios vícios ideológicos e os reapresenta como “normalidade”, como “verdade geral para todos”, ou como “conclusão lógica”. Vê-se usado como ferramenta de imbecilização dos leitores/espectadores, todos os dias, por exemplo, por Dona Miriam Leitão, ou pelo Sr. William Waack.
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