25/1/2015, [*] Alexander Mercouris, Rússia Insider
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Vladimir Putin |
Houve
muitos dias importantes no conflito ucraniano, mas é possível que 23/1/2015
revele-se um dos mais importantes. Nesse dia, reuniu-se o Conselho de Segurança
da Federação Russa. É o principal corpo do qual emanam decisões nos campos de
política exterior, defesa e segurança. E as reuniões do CSR são presididas pelo
Presidente e Comandante-em-Chefe, Vladimir Putin.
Não há
transcrição do que foi dito. O que se sabe é que naquela reunião discutiram a
situação na Ucrânia.
A página
internet de Putin oferece excertos do discurso de abertura da reunião. Vale a pena reproduzir aqui vários
parágrafos:
Boa-tarde, colegas.
Estamos testemunhando deterioração dramática
da situação no sudeste da Ucrânia, na República Popular de Donetsk e na
República Popular de Lugansk. Quanto a isso, gostaria de repetir aqui a
informação de que, há uma semana, na 5ª-feira (15/1/2015), enviei carta ao
presidente da Ucrânia, com proposta, por escrito, para retirar armamento pesado
– artilharia e lança-foguetes – para distância da qual não possam atingir áreas
habitadas.
Gostaria de informar também que essa proposta
cobre quase completamente os pedidos de Kiev oficial. Vocês sabem que pode
haver uma área disputada ao longo da linha de separação entre as partes em
conflito. Sugerimos então que armas e equipamento pesado deveriam ser retirados
para a linha que as próprias autoridades de Kiev consideram justa e conforme os
acordos firmados em Minsk dia 19/9/2014.
Infelizmente, não recebemos resposta clara à
nossa proposta; de fato, vimos a ação contrária, a saber, que o governo de Kiev
distribuiu ordem oficial para lançamento de operações de combate de larga
escala ao longo de quase todo o perímetro de contato entre os lados opostos.
O resultado: dúzias de mortos e feridos, e
não só soldados dos dois lados, mas, e até mais tragicamente, muitas mortes
entre a população civil, incluindo crianças, idosos e mulheres. A artilharia,
lançadores de foguetes múltiplos e aeronaves atiram indiscriminadamente,
diretamente contra áreas densamente habitadas.
Tudo isso vem acompanhado de slogans de
propaganda sobre o quanto se busca a paz e procuram identificar os
responsáveis. A responsabilidade cabe a quem dá essas ordens criminosas. Quem
faz isso deveria saber que não há outro meio para resolver conflitos desse tipo
além de conversações de paz e meios políticos. Ouvimos frequentemente, mesmo
hoje, de Kiev oficial, que esses seriam os meios preferenciais para tratar
dessas questões, mas a realidade é bem outra. Tenho esperança de que esse senso
comum venha afinal a prevalecer.
Peço que façamos um minuto de silêncio em
homenagem às vítimas, inclusive os mortos num ponto de ônibus em Donetsk.
[Segue-se o minuto de silêncio].
A
imprensa-empresa ocidental focou-se na parte do discurso em que Putin fala de
“ordens criminosas” que levaram militares ucranianos aos bombardeios
indiscriminados e ataques contra áreas civis. Sem dúvida são palavras
importantes. Mas não são as mais importantes dessa fala do presidente russo.
As mais
importantes palavras de Putin são aquelas em que o presidente russo refere-se
aos líderes políticos em Kiev não como “o governo da Ucrânia”, ou “o governo
ucraniano” ou, mesmo “o lado ucraniano”, mas como “a Kiev oficial” ou “as autoridades
de Kiev”.
Petro Poroshenko, presidente da "Kiev oficial" |
É
vocabulário extraordinário, porque põe em dúvida, pela primeira vez, o que os
governantes em Kiev representam: toda a Ucrânia, ou apenas Kiev.
Putin
refere-se sempre a Poroshenko como “o presidente da Ucrânia”, o que começou a
fazer a partir de imediatamente depois da eleição de Poroshenko.
Os russos
sempre trataram Poroshenko de modo diferente, porque Poroshenko foi eleito.
Representavam-no como um moderado cercado por extremistas e, assim postas as
coisas, os russos tentaram negociar com Poroshenko. Que haja alguma verdade na
ideia de “Poroshenko, o moderado” é outro assunto. Mas Poroshenko é o
presidente com os quais os russos teriam de negociar, se é que algum dia
negociariam com algum governo da Ucrânia.
O fato de
Putin ainda se referir a Poroshenko como “presidente da Ucrânia” sugere que os
russos ainda não abandonaram completamente essa ideia. Mas o vocabulário já
sugere que estejam bem próximo de abandoná-la. Putin cuidadosamente não se
refere a Poroshenko pelo nome. Seus comentários são factuais e frios. É sinal
de que o relacionamento aproxima-se do ponto de colapso.
Também
importante no vocabulário de Putin sobre o governo da Ucrânia é o modo como
fala das duas repúblicas rebeldes do leste da Ucrânia.
Pela
primeira vez Putin fala delas sem qualificativos, servindo-se dos nomes que as
próprias repúblicas assumiram: “República Popular de Donetsk” e “República
Popular de Lugansk”. É o mais próximo que Putin já chegou até agora, de tratar
as duas repúblicas como entidades políticas declaradas.
Tomado em
conjunto, todo o vocabulário de que Putin se serviu para falar do governo na
Ucrânia sugere que o presidente russo já não está assumindo que o governo da
Ucrânia tenha legitimidade como governo no Donbass.
Aos que
digam que isso seria superinterpretar as palavras de Putin, gostaria de lembrar
que Putin é advogado experiente, que sabe escolher atentamente as palavras e
que o que aqui se comenta é discurso publicado em sua página pessoal na
Internet.
Lukashenko e Putin |
Adiante, no
mesmo dia, Putin teve também uma conversa telefônica com Lukashenko, presidente
da Bielorrússia.
Lukashenko
é aliado e parceiro chave dos russos no conflito ucraniano. E nem sempre
concordou integralmente com a interpretação dos russos para o conflito.
Não se sabe
exatamente o que Putin e Lukashenko disseram, mas sabe-se que o assunto da
conversa foi a Ucrânia.
Tudo sugere
que Putin, depois da reunião com seu Conselho de Segurança, conversou com
Lukashenko para dizer-lhe das decisões tomadas, para manter Lukashenko como aliado
e bem informado.
Outro
aliado chave dos russos, Nazarbayev, Presidente do Cazaquistão, também deve ter
sido informado das decisões que os russos tenham tomado.
Simultaneamente,
no mesmo dia, no Fórum Econômico em Davos, Shuvalov, Vice-Primeiro Ministro da
Rússia, encarregado de supervisionar a economia, alertou os delegados de que a
Rússia não se submeterá a sanções e não mudará o próprio governo por causa
delas. Um dos principais banqueiros russos, Kostin, Presidente do VTB Bank,
também alertou os delegados em Davos contra qualquer tentativa para excluir
bancos russos do sistema SWIFT de compensações interbancárias.
Shuvalov
disse também, em sua intervenção em Davos, que a Rússia mantém-se em contato
continuado com a China e que conta com apoio tanto econômico como político dos
chineses. Não há qualquer dúvida de que os russos mantêm consultas com os
chineses antes de cada decisão que tomam e de que os chineses são informados de
tudo que se discutiu das decisões tomadas sobre a Ucrânia na reunião do
Conselho de Segurança da Federação Russa.
Financial
Times oferece bom sumário (só para assinantes) dos comentários
de Shuvalov e Kostin em Davos [adiante, em nota de rodapé [1]].
Enquanto
isso, examinando o noticiário russo sobre a Ucrânia num dia carregado de
notícias, o Ministério da Justiça russo anunciou que várias organizações
nacionalistas ucranianas, entre as quais o Setor Direita (Pravy Sektor), foram proibidas de operar em território russo.
Muitos se surpreenderam ao saber que ainda não haviam sido banidas da Rússia.
Na própria
Ucrânia, o comandante rebelde [e presidente da República Popular de Donetsk] Zakharchenko anunciou que o Memorando de Minsk já
não se aplica, e confirmou que a secessão das duas Repúblicas Populares, de
Donetsk e de Lugansk, já separadas da Ucrânia, é processo sem retorno e que os
rebeldes estão agora empenhados em libertar todo seu território, da Ucrânia.
Alexander V. Zakharchenko |
O Memorando
de Minsk não é o mesmo documento que o Protocolo de Minsk, que foi o acordo
original de cessar-fogo assinado dia 5/9/2014. O “Memorando” é um documento
técnico, de detalhamento, que foi assinado dias depois, dia 19/9/2014.
O Memorando
de Minsk visava a detalhar os termos do cessar-fogo acertado no Protocolo de
Minsk, dia 5/9/2014. Determinava a linha do cessar-fogo e fixava procedimentos
para a retirada, pelos dois lados, de armamento pesado, que deveria ser deixado
a uma distância de 15 km,
de cada lado, da linha de cessar-fogo.
Nem o
Protocolo de Minsk nem o Memorando de Minsk foram jamais implementados. As
conversas constitucionais que o Protocolo de Minsk determinava jamais
aconteceram. A Ucrânia cancelou unilateralmente a lei de status especial que
tinham as regiões rebeldes do Donbass, nos termos do Protocolo de Minsk; e
jamais definiu os termos ou reconheceu as eleições realizadas ali em novembro.
Nenhum dos dois lados retirou suas tropas para a linha fixada do cessar-fogo e
o armamento pesado jamais foi retirado.
Ao dizer
que o Memorando de Minsk já não se aplica, Zakharchenko está dizendo o óbvio, e
liberou os rebeldes para operações ofensivas, que já estão em andamento, com
relatos de avanços dos rebeldes em Mariupol e Debaltsevo.
Mas também
é possível que essas declarações, feitas dia 23/1/2015, deem em nada, ou em bem
pouco. E é possível que não tenham sido coordenadas, e que a política russa não
tenha mudado.
Mas
consideradas à primeira vista, sugerem, sim, que a Rússia esteja começando a “endurecer”,
e que os russos talvez tenham desistido da esperança de chegar a alguma solução
negociada para a guerra, pelo menos nesse momento, solução que só seria
pensável se houvesse pressão ocidental sobre Kiev, da qual não se vê nenhum
sinal.
Se tudo
isso estiver correto, os russos deram luz verde aos rebeldes para darem
andamento à ofensiva deles, enquanto os comentários de Shuvalov e Kostin
sugerem que todos se preparam para enfrentar mais dificuldades, caso o ocidente
insista em mais sanções.
Nota de rodapé
[1] Do Financial Times
Um dos principais banqueiros russos alertou na 6ª-feira (23/1/2015) [em
Davos] que excluir o país do sistema SWIFT de compensações
interbancárias equivaleria a “guerra” (...).
Andrey Kostin |
Falando num painel em Davos na 6ª-feira, Andrey Kostin, presidente
executivo do banco VTB, o segundo maior banco russo, Kostin disse que:
Sem SWIFT, não há relacionamento de banking. Significa que os países estão em guerra ou que,
definitivamente, estão numa guerra fria. Dia seguinte, os embaixadores da
Rússia e dos EUA teriam de voltar para casa –
acrescentou.
O comentário do Sr. Kostin mostra o quanto as sanções ocidentais estão criando
sentimentos de ira e de desafio dentro da elite política e empresarial russa.
Pelo que entendo, quanto mais
pressionarem a Rússia, menos a situação mudar – disse
ele, lembrando que os russos estão sendo
empurrados para reduzir cada vez mais a confiança nos sistemas ocidentais de
pagamentos como SWIFT.
Já criamos uma alternativa doméstica
para o sistema SWIFT... E agora
precisamos criar alternativas internacionais.
E lembrou os esforços em andamento entre Rússia e China, para criar
plataforma separada, só deles, fora de qualquer controle ocidental.
Igor Shuvalov |
Igor Shuvalov, Vice-Primeiro-Ministro russo, ecoou o mesmo tema.
Estamos desenvolvendo nosso vector
oriental – disse o Sr. Shuvalov, destacando que, embora os esforços para
construir laços com a China já estivessem em andamento bem antes da crise,
foram dramaticamente intensificados depois do início das sanções, quando a
Rússia procurava alternativas ao ocidente.
O Sr. Shuvalov disse que:
(...) os países chamados BRIC
(Brasil, Rússia, Índia e China) também já estavam prontos para ajudarem-se uns
os outros, numa crise financeira. Temos sido procurados por grandes investidores
chineses.
O “pivô para a Ásia” tornou-se parte-chave da política exterior de
Vladimir Putin, desde o estremecimento das relações com o ocidente, por causa
da Ucrânia. Ao mesmo tempo em que se anunciavam vários acordos amplos, como o
contrato de US$ 400 bi para fornecer gás russo à China pelos próximos 30 anos (...).
A situação atual parece menos grave [que a crise financeira de 2008-09], mas
estamos entrando numa situação de longa crise, que pode ser prolongada –
disse o Sr. Shuvalov.
Mas acrescentou que nenhuma pressa externa conseguirá “mudar o regime” na
Rússia.
Sobreviveremos a qualquer racionamento,
a qualquer tortura na Rússia – comeremos menos, consumiremos menos eletricidade – disse ele.
Alexei Kudrin, respeitado ex-ministro das finanças, previu que a Rússia
pode sofrer fuga de capitais de US$ 90bi esse ano, depois da fuga recorde de US$
151bi em 2014.
Certamente compreendemos perfeitamente
o preço que estamos pagando pelas sanções – disse
ele.
[*] Alexander Mercouris, ex político
grego, especialista em Direito Internacional e Relações Internacionais. Articulista mundialmente reconhecido com especial interesse em leis,
principalmente na legislação da Rússia e analista dos aspectos legais da espionagem
da NSA − National Security Agency e sobre os eventos na
Ucrânia, em termos de Direitos Humanos e a inconstitucionalidade do Golpe de
Estado ucraniano. Trabalhou por 12 anos nas Royal Courts of Justice,
em Londres, como advogado. Sua família tem se destacado na política grega por
várias gerações. Atua frequentemente como comentarista de TV e conferencista em
várias universidades pelo mundo. Reside em Londres.
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