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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Pepe Escobar: “Golpada Americana”, versão “Teto da Dívida”

13/2/2014, [*] Pepe Escobar, Russia Today
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Presidente da Câmara dos EUA, Rep. John Boehner, 2º. à esquerda, sai do Capitólio com sua equipe de segurança 11/2/2014. (Foto: AFP / TJ Kirkpatrick)
Se, pelo menos, o Congresso dos EUA fosse tão divertido de assistir quanto A Trapaça, o filme (em Portugal, Golpada Americana). [1]

Para começar, o líder da maioria, o Republicano John Boehner não é Christian Bale. Para nem falar de Jeremy Renner. Mas trapaceiro, sim, isso ele é.

Praticamente ninguém fora dos EUA lembra que Boehner começou a urdir a trapaça que se converteria em sua marca registrada há nada menos de três anos. Foi extorsão espetacular que bem poderia ter sido planejada por alguma máfia. Boehner ameaçou forçar os EUA ao calote da própria dívida, se o governo Obama não se rendesse e fizesse alguns pesados cortes no orçamento. Tipo “Obedeça, ou sua casa será incendiada”.

Agora parece que a trapaça – como no filme – já não continuará a render (e não por que Boehner tenha sido “interceptado” pelo FBI). O Líder da Maioria, de fato, se autointerceptou; e reapareceu no Congresso dos EUA com nova proposta para o teto da dívida dos EUA.

A lei foi aprovada, basicamente graças aos votos dos Democratas (199 Republicanos votaram contra a proposta de Boehner). Apesar de terem sido alertados pelo próprio Boehner, de que “não vamos conseguir fazer história sozinhos”, os Republicanos enfureceram-se. E, como se podia prever, a imprensa-empresa norte-americana enlouqueceu de ira por conta da “rendição” (quando falavam de Boehner) e da “vitória” (quando falavam do presidente Obama), como se se tratasse da final da disputa de snowboard half pipe em Sochi (quando Shaun White, nascido nos EUA, perdeu para Iouri “iPod” Podladtchikov, nascido na Rússia).

Previsivelmente, a máfia – a gangue dos grupelhos de direita disfarçados em “organizações” como Fundo dos Conservadores do Senado [orig. Senate Conservatives Fund (SNC)], e patriotas do Tea Party e de Freedomworks – quer, e o que mais quereria?! – a cabeça de Boehner. O homem cometeu pecado imperdoável: liquidou o “governo mínimo” e não vai “impedir o gasto massivo e a dívida que estão destruindo nosso país”, segundo o SNC. 

Siga o dinheiro

É verdade que ele tem o carisma de restos de salada esquecidos na geladeira, mas Boehner é trapaceiro bem informado. Mudou seu plano de jogo por duas simples razões.

#1 (e mais importante): para tranquilizar o dinheiro grosso de Wall Street, que abomina agitação política.

#2 é mais turva. Boehner calculou que, por extensão tranquilizaria também o Partido Republicano, que obedece aos Patrões do Universo e seus especialíssimos interesses, mas foi sequestrado pelos fanáticos doidos estilo Tea Party. O problema, contudo, persiste; até líderes do partido como Paul Ryan e Cathy McMorris Rodgers – que redigiram a resposta (terminalmente tediosa) à fala de Obama sobre o Estado da Nação – apoiaram os insurgentes.

O Senador dos EUA Richard Burr (R-NC), vestindo o paletó, caminha ao plenário do Senado para votação sobre elevação do teto da dívida, no Capitólio dos EUA em 12/2/2014. (Reuters / Jonathan Ernst)
Numa linha, para resumir: a trapaça inicial de Boehner foi ruim para os negócios. Basta ouvir, para ter certeza, o que a diretora de investimentos e gerente de crédito da Moody’s Investors Service, Anne Van Praagh, disse sobre a nova proposta de Boehner:

Mais falta de consenso teria tido consequências potencialmente negativas para o mercado e para a economia.

E o dinheiro grosso, é claro, foi absolutamente atendido. Aqueles investidores que estão pesadamente “comprados” na dívida vinham observando atentamente os papéis do Tesouro dos EUA, que subiam desde fevereiro. Mensagem: O Congresso dos EUA não vai ser doido de não aumentar a tempo o limite de endividamento, e não deixará que esse monstro de $17 trilhões continue a crescer e crescer sem cobertura.

Mas... porque essa loucura, sim, só aumenta, e com o Congresso dos EUA já alcançando o pico negativo de menos de 10% de aprovação da população... nada, afinal, poderia ser dado por resolvido; até que Boehner mudou sua proposta.

Seja como for, não há garantia de que a trapaça original não volte à pauta. Afinal, o Partido Republicano é, hoje, considerado pelos progressistas, em todos os EUA, e, até, por conservadores civilizados e esclarecidos, como o Partido do “Não”.

Não a qualquer coisa que Obama queira ou diga – principalmente o Obamacare. Não à reforma da imigração. Não a uma estratégia nacional de segurança que faça algum (qualquer) sentido. Não a todas as minorias, para nem falar uma maioria absolutamente crucial: as mulheres (para muitos Republicanos, o estupro é “legítimo”). Esse essencialmente é o território dos machos impotentes e furiosos. Nem surpreende que estejam derrotados. Eles sabem que perderam. O problema é que só sabem responder com ódio e violência, seja qual for a questão.

Pois mesmo assim, com sorte, quantidades astronômicas de dinheiro e manipulação pesada nos veículos da imprensa-empresa, além de estoque infindável de mentiras sistemáticas, eles têm ainda chance de conservar a maioria do Senado nas eleições parlamentares de meio de mandato, em novembro. É fácil esquecer que, apesar da manha calibrada, o governo Obama já entrou em modo de pato manco.

O governo Obama tem meios para seduzir os Republicanos insurgentes; por exemplo, se mantiver o orçamento do Pentágono como item à parte do orçamento, não controlável pelo Congresso, só para permitir que o dinheiro para o Pentágono cresça e cresça até o ano fiscal de 2016, quando La Hillaryator (Hillary Clinton +Terminator) provavelmente estará trabalhando para a segunda vinda de Athena, dessa vez para capturar a Casa Branca.

Que ninguém se iluda: o show – e a trapaça – continuarão. E só acabam quando os Machos Brancos e Furiosos quiserem que acabem. Filme chato? Ora! Sempre se pode assistir à Trapaça-filme em DVD, ou à segunda temporada de House of Cards no canal NetFlix!

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Nota dos tradutores
[1] Orig. American Hustle, filme de 2013. No Brasil, A Trapaça. Em Portugal, Golpada Americana. Trailer a seguir (legendado):

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[*] Pepe Escobar 1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia TodayThe Real News Network Televison Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:

− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Conexões: Ameaça de calote dos EUA e desestabilização da Ucrânia


5/2/2014, Nikolai MALISHEVSKI, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

É muito provável que a implementação do plano de “mudança de regime” na Ucrânia aconteça dia 7/2. É dia de dois eventos significativos: início dos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi e término da moratória que o Congresso deu ao presidente Obama para equacionar a questão da dívida interna dos EUA.

John Kerry saúda os "novos dirigentes" da Ucrânia na Conferência de Munique
Na Conferência de Segurança de Munique a oposição ucraniana e os EUA concordaram em implementar um plano para forçar a capitulação de Viktor Yanukovich. Arseniy Yatsenyuk contou do seu projeto de ação, que foi desenvolvido com a participação direta de representantes do ocidente, depois de uma reunião com o secretário de Estado John Kerry dos EUA e funcionários da União Europeia. 

Ao mesmo tempo em que a ‘praça Europa’ vai-se enchendo de barracas, para mostrar que ali está e ali ficará, o Departamento de Estado já conhece a data em que a operação ‘mudança de regime’ estará concluída: 24 de março. 

É o que se lê em mensagem publicada no website oficial do Departamento de Estado dos EUA, dia 24 de janeiro:

Clique na imagem para visualizar o trecho traduzido logo abaixo


ALERTA DE VIAGENS PARA A UCRÂNIA
O Departamento de Estado dos EUA alerta os cidadãos norte-americanos para os riscos de viajar à Ucrânia, por causa da agitação política e dos violentos confrontos entre policiais e manifestantes. A violência relacionada aos protestos, sobretudo em Kiev, aumentou de forma aguda desde 19 de janeiro, e já resultou em vários mortos e centenas de feridos. Os manifestantes ocuparam a Praça da Independência e inúmeros prédios do governo em Kiev e em outras cidades na Ucrânia. Grupos de jovens, conhecidos como “titushky,” já atacaram jornalistas e manifestantes e cometeram atos indiscriminados de violência em Kiev e outras cidades.
Recomendamos que cidadãos norte-americanos evitem todos os protestos, manifestações e grandes comícios. Cidadãos norte-americanos hospedados em hotéis ou residentes em áreas próximas de onde ocorrem os protestos devem abandonar essas áreas ou permanecer dentro de casa, provavelmente por vários dias, no caso de ocorrerem confrontos.
Este alerta de viagem expira dia 24/3/2014.

É muito provável que a implementação do plano de “mudança de regime” na Ucrânia aconteça dia 7/2. É dia de dois eventos significativos:

(I) - início dos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi; e
(II) - término da moratória que o Congresso deu ao presidente Obama para equacionar a questão da dívida interna dos EUA. 

Hoje, como há seis meses, quando a situação na Síria deteriorou abruptamente e todos esperavam o início de ataque militar dos EUA contra aquele país, os patrões do dólar do Federal Reserve e o governo dos EUA mais uma vez enfrentam o mesmo dilema autodestrutivo: ou dão calote na dívida e declaram a falência dos EUA, ou aumentam o limite da dívida mais uma vez e aplicam medidas ainda mais duras de “austeridade”. Na arena internacional, esse dilema está diretamente ligado à necessidade de reavaliar o status e o papel da moeda norte-americana.

Os patrões do dólar não sabem resolver o problema que torna tão dolorosamente difícil a vida dos norte-americanos. Já há vários anos nada fazem além de adiar qualquer solução, o que têm conseguido, sempre, inventando cataclismos para distrair a atenção do mundo e desviar os olhos de todos para bem longe da dramática situação da moeda norte-americana. Agora, outra vez a reignição do mesmo problema ficará adiada até fevereiro. 

É situação muito similar à que se viu no outono passado, com os eventos dramáticos que atraíram todas as atenções do mundo para a Síria: foi quando terroristas islamistas instigados por aliados dos EUA infiltrados entre eles forjaram um “ataque químico”, em agosto de 2013. A atenção da mídia mundial está sendo desencaminhada também hoje.

Agora, o agente “para distrair” são agitações e pogroms nas ruas de Kiev e outras cidades ucranianas. (...)

Clique na imagem para visualizar melhor
Compare estas duas ilustrações, elas são idênticas. Na ilustração emoldurada em vermelho estão as instruções em árabe desenvolvidos por especialistas norte-americanos durante a primeira fase do «protesto popular» na Síria (2011). Emoldurado em amarelo estão as instruções em ucraniano para ativistas da Praça Maidan de Kiev

O problema do calote norte-americano apareceu como problema grave pela primeira vez em 2008, logo depois de Moscou anunciar que a Rússia passava a trabalhar para a integração econômica dos países da Eurásia. 

Daquela vez, os norte-americanos conseguiram burlar a atenção do mundo, desviando-a para o massacre na Ossetia Sul, iniciado ali pelos fantoches dos EUA na Georgia, no mesmo dia da abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim; e para o que a imprensa-empresa ocidental chamou de “início da crise econômica global”.

O calote da “superpotência global” e o colapso do sistema monetário e do dólar não acontecerá tampouco imediatamente depois de 7 de fevereiro, apesar da crise econômica e financeira mais aguda que o mundo conheceu desde a Grande Depressão e das proporções astronômicas da dívida agregada dos EUA. Os patrões do dólar norte-americano já iniciaram a produção de várias crises que podem dar algum fôlego extra ao dólar.

A crise mais “promissora”, dessa vez, foi criada em torno da Ucrânia, para cujo litoral os EUA já se preparam para enviar navios de guerra, sob o pretexto dos Jogos Olímpicos de Sochi. Na fumaça criada em torno do que se passa na Ucrânia, desaparecem de vista fatos chaves que, se bem examinados, comprovariam os problemas pelos que passa a economia dos EUA. Na mesma fumaça, a imprensa-empresa encontra material para encher páginas e páginas, sem precisar falar do dólar norte-americano; e sem ter de falar, tampouco, por exemplo, da extensão da queda da renda familiar disponível [orig. real disposable income (RDI): a renda disponível para cada família, depois de pagos os impostos] dos norte-americanos desde 1974 (é o que se vê no gráfico seguinte):

Clique na imagem para aumentar até ficar perfeitamente legível

Esses eventos também afetam a Europa.

Mesmo políticos poloneses pró-EUA como o ex-presidente da Polônia A. Kwasniewski, representante do Parlamento Europeu na Ucrânia para o caso Tymoshenko, já dá sinais de alarme:

A situação na Ucrânia, diz Kwasniewski, pode ficar completamente incontrolável e ter consequências extremamente trágicas não só para os ucranianos, mas também para a União Europeia (...). O fato de gente inocente estar sendo morta na Ucrânia pode gerar uma onda de migração e de problemas econômicos. (...) Há risco real de uma grande tragédia. Acho que diplomatas europeus, de países vizinhos e da Polônia, devem mostrar-se sensíveis a esses assuntos. Isso pode resultar numa espiral de eventos que nós não conseguiremos conter para sempre.

Além da crise na Ucrânia, que está distraindo a opinião pública para que não dê atenção à futura batalha de vida ou morte que se travará no Congresso dos EUA, outras três “crises” estão em construção ou em andamento: na Tailândia, no Egito e na Síria. 

Nikolai Malishevski
Na véspera da abertura dos Jogos de Sochi, Damasco tem de apresentar um relatório sobre a liquidação de suas armas químicas. O plano adotado em novembro previa que todas as armas estariam fora da Síria no dia 5/2. Sabe-se que o processo está atrasado, na Síria. Mas, de fato, Damasco cumprir ou não cumprir o prometido (vale dizer, desarmar-se ante agressor potencial, ou recusar-se a desarmar-se) são situações que pouco alteram os planos de Washington, que sempre conseguirá obter algum outro pretexto para escalar suas ações contra a Síria – a última fronteira russa no Oriente Médio.

Não por acaso, na Conferência de Segurança de Munique, os EUA mais uma vez tentaram falar com a Síria em tom de ultimatum. E os islamistas radicais do Emirado do Cáucaso, que se uniram aos ‘rebeldes’ sírios contra o governo de Bashar al-Assad, já se preparam para entrar em ação também na Ucrânia, depois da recente convocação para que todos os militantes partam “em Jihad” ao mesmo tempo na Síria e no Norte do Cáucaso.




quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Começou a desamericanização do mundo - 2015: emergem soluções para um mundo multipolar

16/10/2013, Global Europe Anticipation Bulletin, GEAB, n. 78  
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu



Há momentos em que a história acelera. Sejam quais forem os resultados da negociação sobre o “fechamento” do governo dos EUA e sobre o teto da dívida pública dos EUA, o mês de outubro de 2013 é um desses momentos. O impasse no Congresso, prorrogado por tempo demais, abriu os olhos de muitos dos que ainda apoiam os EUA. Segue-se líder no qual se creia; não se segue líder ridicularizado.

“Construir um mundo des-americanizado” é palavra de ordem que, há poucos anos, seria risível. No máximo, teria soado como provocação ao estilo de Hugo Chávez. Mas, se se assiste em tempo real à bancarrota dos EUA, e se quem fala em “mundo des-americanizado” é o jornal oficial do Partido Comunista Chinês, [1] o impacto é de outra natureza. De fato, o que se vê é um processo que já está em andamento e bem adiantado; apenas que, antes, ninguém se atrevia a falar dele publicamente. O ‘trancamento’ do governo dos EUA teve a serventia de, pelo menos, liberar as manifestações. [2] E, para que ninguém se engane: a palavra de ordem para a construção de mundo des-americanizado não surgiu por acaso na mídia oficial chinesa; e, sim, é indício de que Pequim está endurecendo o tom.

De fato, se o mundo inteiro prende a respiração à espera do desfecho do “trancamento” do governo dos EUA, esse jogo patético da elite norte-americana, não é por compaixão, mas, sim, para evitar de ser arrastado para dentro do mesmo sumidouro, na queda da primeira potência mundial. Todos tentam livrar-se da influência dos EUA e distanciar-se dos EUA já desacreditados para sempre, depois dos eventos na Síria, as das gravações clandestinas, da vigilância sem qualquer controle, do “trancamento” do governo e, agora, do problema do teto do endividamento. O legendário poder dos EUA já não passa de grave incômodo para o mundo; e o mundo começa a compreender que é hora de se des-americanizar.

Essa perspectiva e a possibilidade de dizer o “indizível” [3] e de discutir o “indiscutível” estão finalmente abrindo caminho para uma série de soluções que, até agora, estiveram absolutamente reprimidas e cujos mais simples sinais, em alguns casos, permaneciam silenciados e proibidos. Essas soluções aceleram já a construção do mundo futuro e a abertura para um mundo multipolar organizado em torno de grandes blocos regionais.

Depois de fazer uma sinopse-revisão dos vários revezes que os EUA sofreram recentemente, nossa equipe de analistas propõe, nesta edição de GEAB, algumas análises das forças que vão modelando esse mundo em mutação. (...)

“Não. Não podemos”

Como os tempos mudam! O mundo já esqueceu as palavras “liberdade”, “esperança” e o afamado slogan “Yes we can” [Sim, podemos] que representou a sociedade norte-americana aos olhos de gerações passadas; hoje, só se ouve falar de “arapongas”, “grampos”, “escutas ilegais”, espionagem comercial, “trancamento” ou “fechamento” ou “teto da dívida”. Não é exatamente a mesma dinâmica e a imagem, antes positiva, tornou-se muitíssimo negativa.

Chama a atenção o quanto a atual situação dos EUA confirma o velho dito segundo o qual a desgraça nunca chega sozinha. Num período de seis semanas, que começou pela humilhação que a Rússia impôs aos EUA, no caso da Síria; depois o banco central dos EUA, a admitir que não é possível reduzir a injeção de mais dinheiro público na economia (o chamado “alívio financeiro quantitativo”, ing. quantitative easing) [4]; a dificuldade extrema, a incapacidade de o Congresso aprovar um Orçamento, que levou ao ‘trancamento’ do governo federal norte-americano, que perdurou por bem mais tempo que o razoável. [5] As negociações em torno do teto da dívida ainda emperradas, a dois dias da data limite [na data do artigo]; o G20 a ordenar aos EUA que ratifique a reforma proposta pelo FMI, ratificação bloqueada há já três anos; e pelo Banco Mundial e o FMI, para que ponham ordem nas finanças norte-americanas. [6] E agora, o tiro de alerta dos chineses, à frente da proa, para conter o desastre em marcha.

Sucessão de crises

Essa sucessão de crises é altamente preocupante para o país e indica aceleração sem precedentes, e choque à vista. Há algo de fatalidade nessas crises. Mas há também uma dose de “recuperação estratégica”. [7] O “trancamento” do governo explorado por Obama, para pressionar os Republicanos a favor do aumento do teto da dívida – esse, sim, um prazo muito mais importante para os EUA. É obviamente sucesso apenas parcial, mas ainda se pode esperar aumento pelo menos temporário no endividamento, o que adiará os problemas por algumas semanas; [8] mas ainda é possível que o Congresso opte pela via da tragédia, porque já não opera no domínio de decisões racionais e já nada se pode prever.

Custo de securitizar US$ 10 mi da dívida pública dos EUA, contra calote. Fonte: Markit. 
De fato, muitos observadores têm-se focado no movimento Tea Party o qual, como acionistas minoritários que podem controlar uma empresa mediante participação em empresa maior, conseguiu sequestrar o Partido Republicano e a sociedade norte-americana; mas também é possível interpretar o mesmo quadro, pela via oposta. Muitos norte-americanos já veem a realidade exposta ante seus olhos: os EUA estão falidos. Assim sendo, será mais razoável adiar o confronto com a realidade, sob o risco de ver os problemas crescerem? Ou o melhor é resolver os problemas já? Para a maioria da população, o calote da dívida dos EUA não é o pior dos males. [9] Além do mais, que outra solução haverá? Os Republicanos não querem precipitar a crise? É a situação ideal, porque podem culpar o Tea Party, que disse, com todas as letras, que “melhor nenhum acordo, que um mau acordo”. [10]

O que queremos dizer é que, dessa vez, ou numa próxima ocasião no futuro próximo, os Republicanos podem, sim, ser tentados a cortar o nó górdio.

Do mesmo modo, parece haver aí alguma recuperação estratégica, quando o Fed voltou atrás, depois de reduzir o “alívio quantitativo” [orig. quantitative easing]. Por que o Fed deixou que todos acreditassem que não haveria o terceiro “alívio quantitativo”... apenas pouco antes de começar... o terceiro “alívio quantitativo”, que, afinal, começou?

Não há notícia de ação semelhante, pela qual os investidores são deixados no escuro, depois são desencaminhados e, na sequência, são completamente colhidos de surpresa, com 100% deles convencidos pelas “orientações” que lhe dava o governo, até descobrirem que não, que aconteceria o contrário! É possível não haver qualquer conexão entre uma vasta negociata e essas idas-e-vindas até o anúncio oficial final, pelo Fed, [11] e que renderia bilhões de dólares aos envolvidos?

Todas essas pistas e evidências confirmam nossa hipótese de instituições financeiras norte-americanas desesperadas, que têm de ser resgatadas discretamente mediante essas operações, para que a credibilidade do Fed não seja mortalmente ferida. Mais uma vez, são soluções de curto prazo que só pioram a situação geral, mas empurram um pouco para adiante o prazo fatal.

Não somos os únicos a tocar o sino de alarme e de máxima atenção contra esses bancos norte-americanos: o Banco da Inglaterra também já espera a quebra de grandes bancos que, para os ingleses, já perderam o status de “grandes demais para falir”. [12] De fato, estamos repetindo um alerta que já publicamos.

Como no caso de luta de boxe, todos esses golpes contra o mesmo boxeador acumulam-se, e o país já está grogue; mais um golpe, e estará na lona. Acontecerá, se os EUA derem “calote” na dívida externa em outubro [já se sabe que, dessa vez, não deram (NTs)], ou adiante, no prazo limite posterior que já tenha sido adiado e não pode ser adiado eternamente.

O “trancamento”: risadas (mas forçadas) em todo o mundo

Quando escrevemos, em GEAB n. 77, sobre a votação do orçamento: “não há dúvida de que algum acordo surgirá, no último momento ou, mais provavelmente, algumas horas ou dias depois de esgotado o prazo”, é inevitável que se perceba que continuamos a não dar grande importância às diferenças políticas em Washington, sobretudo depois que os “vários dias” em que se pensava no início já viraram semanas de “trancamento”. O diário francês Le Monde, oferecia a seguinte manchete em sua página na Internet: “Washington: triste espetáculo”. [13] Mas, afinal, esse “trancamento” não teve impacto fortíssimo sobre os mercados financeiros, [14] o que indica que muitos Republicanos parecem supor que todos se estão adaptando bem a uma paralisia no governo federal e aos cortes de gasto público que se seguirão.

Mas essa não é a opinião de países que detêm grande volume de bônus do Tesouro dos EUA, que se sentem como reféns sequestrados pelos EUA. [15] Esses se mostram boquiabertos ante a indefensável leviandade dos EUA e pela atitude irresponsável de quem, até recentemente, era “o patrão”. Se os EUA derem calote em suas dívidas, as ondas de choque sem dúvida serão terríveis. Mas não será o fim do mundo, porque o calote pode assumir a forma de simples atrasos de alguns dias nos pagamentos; além disso, e sobretudo, diferentes partes do mundo serão afetados de modos diferentes, conforme a extensão da separação em relação à economia dos EUA. Não há qualquer dúvida de que o país que mais sofrerá com o calote das dívidas norte-americanas (e, de fato, também se se adotar qualquer outra solução) serão os próprios EUA. Afinal de contas, os EUA são proprietários de 2/3 do total de papéis de sua própria dívida pública.

Detentores da dívida pública dos EUA - Fonte: npr.org.
Vermelho: detentores estrangeiros
Marrom: detentores domésticos
Azul: governo federal

Essa é a razão pela qual os países mais bem administrados já começaram a separar suas respectivas economias da economia dos EUA, com a China à frente. A China sabe, aprendido de Sun Tzu, que “quando se ouve a trovoada, já é tarde demais para cobrir as orelhas”. [16]



Notas de rodapé
[1] 16/10/2013, Fracasso fiscal nos EUA obriga a trabalhar para um mundo des-Americanizado, Liu Chang, Xinhuanet (traduzido).
[2] Até o Financial Times manifestou-se (2/10/2013): “O sistema baseado no dólar é inerentemente instável”, afirmação absolutamente sem precedentes e quase inacreditável em jornal financeiro em língua inglesa.
[3] A reação mundial ao artigo de Xinhuanet aqui citado mostra o interesse que despertou a manifestação da segunda maior potência mundial, e confirma que aquele artigo quebrou um tabu “de silêncio” e ajudará a implementar soluções que a maioria dos países aguardam há muito tempo. Ver, por exemplo, a excelente análise de Pepe Escobar, no Asia Times, 15/10/2013 em:O nascimento do mundo des-Americanizado”, (traduzido)
[4] Fonte: Bloomberg, 18/09/2013.
[5] Fonte: CNN, 14/10/2013. 
[6] Fonte: por exemplo, dentre outras, PressAfrik, 12/10/2013.
[7] Recuperação estratégica (def.) – Metodologia que uma organização usa para devolver operações e sistemas criticamente importantes ao estado normal de operação, depois de um desastre.
[8] Fonte: New York Times, 15/10/2013. 
[9] “58% dos norte-americanos votariam contra a elevação do teto da dívida”. Fonte: Fox News, 8/10/2013. 
[10] Fonte: Le Monde, 15/10/2013. 
[11] Fonte: USA Today, 24/9/2013. 
[12] Fonte: The Telegraph, 12/10/2013. 
[13] Le Monde, 14/10/2013.
[14] Obviamente, dado que o Fed continua a insistir em seu desembestado “alívio quantitativo” (ing. quantitative easing) = emissão de moeda sem lastro.
[15] Seja como for, são reféns “por decisão própria”, porque massiva e voluntariamente financiaram o país...

[16] SUN TZU, The Art of War, 6th century BC [A arte da guerra (traduzido)].