16/10/2013,
Global Europe Anticipation Bulletin,
GEAB, n. 78
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
Há
momentos em que a história acelera. Sejam quais forem os resultados da
negociação sobre o “fechamento” do governo dos EUA e sobre o teto da
dívida pública dos EUA, o mês de outubro de 2013 é um desses momentos. O
impasse no Congresso, prorrogado por tempo demais, abriu os olhos de
muitos dos que ainda apoiam os EUA. Segue-se líder no qual se creia; não se segue líder ridicularizado.
“Construir
um mundo des-americanizado” é palavra de ordem que, há poucos anos, seria
risível. No máximo, teria soado como provocação ao estilo de Hugo Chávez. Mas,
se se assiste em tempo real à bancarrota dos EUA, e se quem fala em “mundo
des-americanizado” é o jornal oficial do Partido Comunista Chinês, [1] o impacto é de outra natureza. De fato, o
que se vê é um processo que já está em andamento e bem adiantado; apenas que,
antes, ninguém se atrevia a falar dele publicamente. O ‘trancamento’ do governo
dos EUA teve a serventia de, pelo menos, liberar as manifestações. [2] E, para que ninguém se engane: a palavra de
ordem para a construção de mundo des-americanizado não surgiu por acaso na
mídia oficial chinesa; e, sim, é indício de que Pequim está endurecendo o tom.
De fato,
se o mundo inteiro prende a respiração à espera do desfecho do “trancamento” do
governo dos EUA, esse jogo patético da elite norte-americana, não é por
compaixão, mas, sim, para evitar de ser arrastado para dentro do mesmo
sumidouro, na queda da primeira potência mundial. Todos tentam livrar-se da
influência dos EUA e distanciar-se dos EUA já desacreditados para sempre,
depois dos eventos na Síria, as das gravações clandestinas, da vigilância sem
qualquer controle, do “trancamento” do governo e, agora, do problema do teto do
endividamento. O legendário poder dos EUA já não passa de grave incômodo para o
mundo; e o mundo começa a compreender que é hora de se des-americanizar.
Essa
perspectiva e a possibilidade de dizer o “indizível”
[3] e de discutir o “indiscutível” estão
finalmente abrindo caminho para uma série de soluções que, até agora, estiveram
absolutamente reprimidas e cujos mais simples sinais, em alguns casos,
permaneciam silenciados e proibidos. Essas soluções aceleram já a construção do
mundo futuro e a abertura para um mundo multipolar organizado em torno de
grandes blocos regionais.
Depois de fazer
uma sinopse-revisão dos vários revezes que os EUA sofreram recentemente, nossa equipe
de analistas propõe, nesta edição de GEAB,
algumas análises das forças que vão modelando esse mundo em mutação. (...)
“Não. Não
podemos”
Como os
tempos mudam! O mundo já esqueceu as palavras “liberdade”, “esperança” e o
afamado slogan “Yes we can” [Sim, podemos] que representou a sociedade
norte-americana aos olhos de gerações passadas; hoje, só se ouve falar de “arapongas”,
“grampos”, “escutas ilegais”, espionagem comercial, “trancamento” ou “fechamento”
ou “teto da dívida”. Não é exatamente a mesma dinâmica e a imagem, antes
positiva, tornou-se muitíssimo negativa.
Chama a
atenção o quanto a atual situação dos EUA confirma o velho dito segundo o qual
a desgraça nunca chega sozinha. Num período de seis semanas, que começou pela
humilhação que a Rússia impôs aos EUA, no caso da Síria; depois o banco central
dos EUA, a admitir que não é possível reduzir a injeção de mais dinheiro
público na economia (o chamado “alívio financeiro quantitativo”, ing. quantitative
easing) [4]; a dificuldade extrema, a incapacidade de o Congresso
aprovar um Orçamento, que levou ao ‘trancamento’ do governo federal
norte-americano, que perdurou por bem mais tempo que o razoável. [5] As negociações em torno do teto da dívida
ainda emperradas, a dois dias da data limite [na data do artigo]; o G20 a
ordenar aos EUA que ratifique a reforma proposta pelo FMI, ratificação
bloqueada há já três anos; e pelo Banco Mundial e o FMI, para que ponham ordem
nas finanças norte-americanas. [6] E agora, o tiro de alerta dos chineses, à frente
da proa, para conter o desastre em marcha.
Sucessão de
crises
Essa sucessão de crises é altamente preocupante
para o país e indica aceleração sem precedentes, e choque à vista. Há algo de
fatalidade nessas crises. Mas há também uma dose de “recuperação estratégica”. [7] O “trancamento” do governo explorado por
Obama, para pressionar os Republicanos a favor do aumento do teto da dívida –
esse, sim, um prazo muito mais importante para os EUA. É obviamente sucesso
apenas parcial, mas ainda se pode esperar aumento pelo menos temporário no
endividamento, o que adiará os problemas por algumas semanas; [8] mas ainda é possível que o Congresso opte
pela via da tragédia, porque já não opera no domínio de decisões racionais e já
nada se pode prever.
Custo de securitizar US$ 10 mi da dívida pública dos EUA, contra calote. Fonte: Markit. |
De fato, muitos observadores têm-se focado no
movimento Tea Party o qual, como
acionistas minoritários que podem controlar uma empresa mediante participação
em empresa maior, conseguiu sequestrar o Partido Republicano e a sociedade
norte-americana; mas também é possível interpretar o mesmo quadro, pela via
oposta. Muitos norte-americanos já veem a realidade exposta ante seus olhos: os
EUA estão falidos. Assim sendo, será mais razoável adiar o confronto com a
realidade, sob o risco de ver os problemas crescerem? Ou o melhor é resolver os
problemas já? Para a maioria da população, o calote da dívida dos EUA não é o
pior dos males. [9] Além do mais, que
outra solução haverá? Os Republicanos não querem precipitar a crise? É a
situação ideal, porque podem culpar o Tea
Party, que disse, com todas as letras, que “melhor nenhum acordo, que um
mau acordo”. [10]
O que
queremos dizer é que, dessa vez, ou numa próxima ocasião no futuro próximo, os
Republicanos podem, sim, ser tentados a cortar o nó górdio.
Do mesmo
modo, parece haver aí alguma recuperação estratégica, quando o Fed voltou
atrás, depois de reduzir o “alívio quantitativo” [orig. quantitative easing]. Por que o Fed
deixou que todos acreditassem que não haveria o terceiro “alívio quantitativo”...
apenas pouco antes de começar... o terceiro “alívio quantitativo”, que, afinal,
começou?
Não há
notícia de ação semelhante, pela qual os investidores são deixados no escuro,
depois são desencaminhados e, na sequência, são completamente colhidos de
surpresa, com 100% deles convencidos pelas “orientações” que lhe dava o
governo, até descobrirem que não, que aconteceria o contrário! É possível não
haver qualquer conexão entre uma vasta negociata e essas idas-e-vindas até o
anúncio oficial final, pelo Fed, [11] e que renderia bilhões de dólares aos
envolvidos?
Todas
essas pistas e evidências confirmam nossa hipótese de instituições financeiras
norte-americanas desesperadas, que têm de ser resgatadas discretamente mediante
essas operações, para que a credibilidade do Fed não seja mortalmente ferida.
Mais uma vez, são soluções de curto prazo que só pioram a situação geral, mas
empurram um pouco para adiante o prazo fatal.
Não somos
os únicos a tocar o sino de alarme e de máxima atenção contra esses bancos
norte-americanos: o Banco da Inglaterra também já espera a quebra de grandes
bancos que, para os ingleses, já perderam o status de “grandes demais para
falir”. [12] De fato, estamos
repetindo um alerta que já publicamos.
Como no
caso de luta de boxe, todos esses golpes contra o mesmo boxeador acumulam-se, e
o país já está grogue; mais um golpe, e estará na lona. Acontecerá, se os EUA
derem “calote” na dívida externa em outubro [já se sabe que, dessa vez, não
deram (NTs)], ou adiante, no prazo limite posterior que já tenha sido adiado e
não pode ser adiado eternamente.
O “trancamento”:
risadas (mas forçadas) em todo o mundo
Quando
escrevemos, em GEAB n. 77,
sobre a votação do orçamento: “não há dúvida de que algum acordo surgirá, no
último momento ou, mais provavelmente, algumas horas ou dias depois de esgotado
o prazo”, é inevitável que se perceba que continuamos a não dar grande
importância às diferenças políticas em Washington, sobretudo depois que os
“vários dias” em que se pensava no início já viraram semanas de “trancamento”.
O diário francês Le Monde,
oferecia a seguinte manchete em sua página na Internet: “Washington: triste
espetáculo”. [13] Mas, afinal, esse
“trancamento” não teve impacto fortíssimo sobre os mercados financeiros, [14] o
que indica que muitos Republicanos parecem supor que todos se estão adaptando
bem a uma paralisia no governo federal e aos cortes de gasto público que se
seguirão.
Mas essa
não é a opinião de países que detêm grande volume de bônus do Tesouro dos EUA,
que se sentem como reféns sequestrados pelos EUA. [15] Esses se mostram boquiabertos ante a
indefensável leviandade dos EUA e pela atitude irresponsável de quem, até recentemente,
era “o patrão”. Se os EUA derem calote em suas dívidas, as ondas de choque sem
dúvida serão terríveis. Mas não será o fim do mundo, porque o calote pode
assumir a forma de simples atrasos de alguns dias nos pagamentos; além disso, e
sobretudo, diferentes partes do mundo serão afetados de modos diferentes,
conforme a extensão da separação em relação à economia dos EUA. Não há qualquer
dúvida de que o país que mais sofrerá com o calote das dívidas norte-americanas
(e, de fato, também se se adotar qualquer outra solução) serão os próprios EUA.
Afinal de contas, os EUA são proprietários de 2/3 do total de papéis de sua
própria dívida pública.
Vermelho: detentores estrangeiros
Marrom: detentores domésticos
Azul: governo federal
|
Essa é a razão pela qual os países mais bem
administrados já começaram a separar suas respectivas economias da economia dos
EUA, com a China à frente. A China sabe, aprendido de Sun Tzu, que “quando se
ouve a trovoada, já é tarde demais para cobrir as orelhas”. [16]
Notas de rodapé
[1] 16/10/2013, “Fracasso
fiscal nos EUA obriga a trabalhar para um mundo des-Americanizado”, Liu
Chang, Xinhuanet (traduzido).
[2] Até o Financial
Times manifestou-se
(2/10/2013): “O sistema baseado no dólar é inerentemente instável”, afirmação
absolutamente sem precedentes e quase inacreditável em jornal financeiro em
língua inglesa.
[3] A reação mundial ao artigo de Xinhuanet aqui citado mostra o interesse que
despertou a manifestação da segunda maior potência mundial, e confirma que
aquele artigo quebrou um tabu “de silêncio” e ajudará a implementar soluções
que a maioria dos países aguardam há muito tempo. Ver, por exemplo, a excelente
análise de Pepe Escobar, no Asia
Times, 15/10/2013 em: “O
nascimento do mundo des-Americanizado”, (traduzido)
[6] Fonte: por exemplo, dentre outras, PressAfrik, 12/10/2013.
[7] Recuperação
estratégica (def.) – Metodologia que uma
organização usa para devolver operações e sistemas criticamente importantes ao
estado normal de operação, depois de um desastre.
[8] Fonte: New York Times,
15/10/2013.
[9] “58% dos norte-americanos votariam contra a elevação do teto da
dívida”. Fonte: Fox News,
8/10/2013.
[12] Fonte: The Telegraph,
12/10/2013.
[14] Obviamente, dado que o Fed continua a insistir em seu
desembestado “alívio quantitativo” (ing. quantitative
easing) = emissão de moeda sem lastro.
[15] Seja como for, são reféns “por decisão própria”, porque massiva
e voluntariamente financiaram o país...
[16] SUN
TZU, The Art of War, 6th century BC [A arte da guerra
(traduzido)].
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