Iraque:
Por que as lições do Vietnã ainda são importantes
20/8/2003, [*] Pepe
Escobar, Asia Times Online –
The Roving Eye
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Incluímos também este excelente vídeo-documentário, que se segue, realizado por Sílvio
Tendler com o general Giap em 2011
De
Hanói.
Assim como em apenas poucos anos os norte-americanos perderam os corações e
mentes dos sul-vietnamitas, eles perderam também, em apenas poucas semanas, os
corações e mentes da maioria dos iraquianos – o que, em resumo, significa perder
a guerra, seja qual for o resultado estratégico final. Negativas topográficas –
aqui é o deserto da Mesopotâmia, não a selva da Indochina – não funcionam, nem
funcionam as negativas que dizem que os iraquianos não são tão politizados
quanto eram, pelo comunismo, os vietnamitas. Nada disso sequer se aproxima do
que interessa: como aconteceu no Vietnã, o que acontece agora no Iraque tem tudo
a ver com patriotismo e nacionalismo.
Tariq Aziz |
Como
dizia, antes da invasão norte-americana, o ex-vice-premiê do Iraque, Tariq Aziz,
“que nossas cidades sejam nossos pântanos e nossos prédios, nossas selvas”.
Mohammed Saeed al-Sahaf, codinome “Ali Cômico” [orig. Comical Ali], o
inesquecível ex-ministro da Informação, costumava dizer que o Iraque seria
“outra Indochina”.
A
estratégia de guerra de guerrilhas contra o que se considerava uma inevitável
invasão norte-americana foi aperfeiçoada no Iraque durante anos. E o
estrategista-professor não era general, nem assírio, nem mesopotâmico, mas o
legendário Vo Nguyen Giap, general vietnamita que coordenou as vitórias contra o
colonialismo francês e a intromissão dos EUA.
"Ali Cômico" |
Os
estrategistas iraquianos – de oficiais do exército a membros do Partido Ba’ath –
sempre foram aplicados estudiosos da Guerra do Vietnã, que no Vietnã é chamada
“Guerra Americana”. Além disso, a população iraquiana urbana é muito bem educada
e analisa os eventos com profundo senso histórico – tanto quanto os vietnamitas.
Os iraquianos não são ingênuos ou enganáveis a ponto de acreditarem no que dizem
as forças de ocupação, que se trataria de “construir uma nação” – e não veem
nenhum resultado tangível desde a “queda” de Bagdá, dia 9/4 [de 2003]. Desde o
início – a primeira gigantesca manifestação popular partiu da mesquita Abu
Hanifa em Bagdá, dia 18/4 [de 2003] –, a “libertação” do povo iraquiano pelos
EUA foi vista por muitos setores no Iraque como guerra de libertação nacional,
uma “guerra popular” no sentido de Giap, contra um agressor imperialista.
Está
tudo escrito em Vo Nguyen Giap - Selected Writings, [1] seleção de escritos dos anos 1969-91
publicada por Gioi Editions em Hanói:
a estratégia e as táticas de uma guerra de libertação nacional e como foi
organizada “a guerra popular contra a agressão norte-americana”. O Partido
Ba’ath e os Guardas Republicanos não implementaram o que haviam aprendido – com
os principais comandantes militares, depois de uma campanha de intimidação
preventiva, afinal comprados com dinheiro do Pentágono e promessas de refúgio
seguro (ver “O negócio em Bagdá”, 25/4[2003]). Mas
basicamente, a mesma estratégia está sendo agora implementada pelos vários
grupos que constituem hoje a resistência nacional iraquiana.
Em
todos os casos, sempre se trata de confundir, atormentar e desmoralizar exército
muitas vezes maior. Veteranos da Guerra Americana em Hanói – que se reúnem diariamente às margens do Lago Hoam Kien para conversar sobre o
passado e o presente – dizem que sempre se tratou de consciência nacional,
patriotismo e tradições locais: segundo Giap, “o amor à terra natal, associado
ao espírito democrático e ao amor ao socialismo”. No Iraque o ímpeto é o mesmo –
com “amor ao Islã” substituindo o “amor ao socialismo”. O nacionalismo iraquiano
e o sentimento anti-imperialista é tão forte aqui quanto foi no Vietnã.
Giap
escreveu que: “(...) devem-se criar as condições para atacar o inimigo por todos
os meios adequados e as forças urbanas revolucionárias devem ser coordenadas com
as áreas rurais”: hoje, significa atacar em Bagdá e no cinturão sunita (já
avançando na direção do sul sunita). O passo seguinte da resistência iraquiana
deve ser, aplicando-se Giap, “combinar forças armadas e forças políticas,
insurreição armada e guerra revolucionária”. Implica uma estratégia concertada
do cinturão sunita aliado a grupos xiitas, muitos dos quais já adotaram uma
posição de “esperar para ver”, de mal disfarçada hostilidade contra o regime
pró-consular norte-americano.
Giap
é claro e direto: “A estratégia da guerra popular é estratégia de guerra
prolongada”. A resistência iraquiana segue Giap, ao pé da letra. A ideia não é
que não possa haver saddamistas
fiéis, por trás dos ataques contra os norte-americanos: se houver, serão apenas
um item a mais, na mesma equação. Giap escreveu que os norte-americanos e o
governo fantoche do Vietnã do Sul são apoiados por “uma repressão brutal e uma
máquina de coerção, e aplicam contra nossos compatriotas uma política de
barbárie fascista”. É exatamente assim que a resistência – e cada dia mais o
próprio povo do Iraque – veem os soldados norte-americanos, cada dia mais
apavorados e desmoralizados, atirar contra mulheres e crianças inocentes e, até,
contra jornalistas estrangeiros que não conheçam. Contra a “máquina de
repressão”, Giap recomenda “guerrilha e milícias de autodefesa” em zonas
estratégicas – exatamente o que a resistência iraquiana tem providenciado.
O Iraque hoje [2003] já é como o
Vietnã depois da Ofensiva do Tet de 1968. Os norte-americanos poderiam ter
deixado o Vietnã a qualquer momento – mas teria significado vexame, no sentido
asiático, e admitir a derrota. Mas, sim, foi o que aconteceu quando aquele
último helicóptero decolou da embaixada dos EUA em Saigon, em abril de 1975.
Ainda que tivessem alguma intenção de fazê-lo, o que não têm, a Casa Branca e o
Pentágono – apesar de já terem declarado vitória – simplesmente não podem sair
do Iraque [é verdade ainda hoje, dez anos
depois! (NTs)]. Eles sabem que, no instante em que os EUA saírem de lá, um
governo democraticamente eleito, de maioria xiita e antiamericano assumirá o
poder (já aconteceu [2])– assim como um governo comunista
antiamericano assumiu o poder no Vietnã. Se os EUA permanecerem no Iraque “por
anos” – como diz o Pentágono – a questão será sempre a mesma: quantos sacos de
cadáveres serão necessários, antes de que a opinião pública norte-americana
exija a retirada?
Os
ataques da resistência iraquiana são executados por grupos pequenos, quase todos
bem treinados, que em geral conseguem safar-se sem baixas. Seguem o ensinamento
clássico de Giap: desmoralizar os soldados dos EUA e, ao mesmo tempo, aumentar o
sofrimento já insuportável da população, para, assim, manter vivo o
ressentimento contra as forças de ocupação. Asia Times Online tem ouvido
vários ex-altos oficiais do exército de Saddam – agora desempregados – que têm
sido convidados a unir-se à resistência; respondem, invariavelmente, que, sim,
acabarão por se unir à resistência, “se os EUA continuarem a nos humilhar”.
Outros estão financiando pequenos grupos de guerrilheiros, ao custo de milhares
de dólares. A recompensa para qualquer um que lance um foguete contra veículo de
combate norte-americano é de cerca de US$350 – o suficiente para comprar o que é
hoje um sonho de consumo, encontrável no mercado parcialmente livre em Bagdá: um
aparelho de televisão em cores conectado por satélite.
No
Vietnã, a resistência foi organizada pelo Partido. No Iraque, é organizada pelas
tribos. Chefes de tribos – praticamente todos eles defensores de Saddam – estão
já próximos do fim do “período de graça” que concederam aos norte-americanos. A
resistência conta tanto com ex-oficiais do exército e membros do ex-Partido
Ba’ath, como com jovens desempregados que respondem ao apelo de clérigos
sunitas, seus chefes tribais; e, em termos mais gerais, com o patriotismo árabe.
A
resistência pode contar, em termos potenciais, com 600 mil indivíduos, que foram
desmobilizados pelo regime pró-consular norte-americano. Com mais de 20 anos de
guerra, praticamente toda a população masculina do Iraque já está militarizada.
Mais de 7 milhões de armas foram distribuídas pelo regime de Saddam Hussein.
Milhões de foguetes e morteiros foram abandonados, quando o regime entrou em
colapso. A organização da luta armada no Iraque – no sentido de Giap – pode
ainda engatinhar, mas os resultados são cada dia mais devastadores. A “guerra
popular” se aprofunda: mísseis terra-ar lançados contra aviões de transporte;
sabotagem no oleoduto Kirkuk-Ceyhan. O Comando Central dos EUA admite que o
número de ataques já chega a 25 ataques por dia.
Esses
mujahideen sunitas iraquianos – contraparte dos mujahideen sunitas
afegãos que lutaram na jihad antiamericana no Afeganistão – contam com a
ativa cumplicidade da população local, exatamente como no Vietnã. Tudo se
encaminha para uma “guerra popular” no sentido de que todos, em cada bairro ou
comunidade, sabe quem organizou cada ataque, mas nada informam aos invasores.
Mas e quanto aos vídeos em que Saddam incita a uma jihad contra os
norte-americanos? Saddam não é Ho Chi Minh – líder legítimo de uma luta de
libertação nacional. Não há no Iraque muita nostalgia de Saddam. Nem os
ex-oficiais do exército têm saudades – ou, vale registrar, mostram-se muito
otimistas quanto ao sucesso dos guerrilheiros. Eles sabem que, mais uma vez, o
povo iraquiano será a maior vítima – com os norte-americanos obcecados,
sobretudo, com a própria segurança, não com a segurança do povo do Iraque. Mas,
mesmo assim, muitos ex-oficiais mostram-se prontos a unir-se à resistência.
McNamara encontra O General Giap em 1995 |
Em
1995, no 20º aniversário do fim da Guerra Americana (Vietnã), o ex-secretário de
Defesa dos EUA, Robert McNamara teve um encontro com o legendário Giap em Hanói.
O velho guerreiro disse-lhe que os EUA entraram naquela guerra sem saber coisa
alguma da longa e complexa história do Vietnã, de sua cultura e do espírito de
luta contra ondas de invasores. McNamara teve de concordar. Os EUA saíram do
Vietnã cobertos de vergonha e humilhados. No Iraque, os empresários bushistas
esperam levar, pelo menos, o petróleo. E os jovens soldados norte-americanos
estão morrendo exatamente por isso: a Ordem Executiva n. 13.303, assinada por
George W Bush em maio passado [2003].
A
Ordem Executiva n. 13.303 declara que, no que tenha a ver com “todo o petróleo e
derivados no Iraque, e interesses associados a esses produtos”, “todos os
contratos, sentenças, decretos, ordens executivas, guarda, produção e todos os
processos judiciais ficam proibidos, e devem ser considerados nulos e
cancelados”. Em outras palavras, segundo Jim Vallette, do Instituto de Estudos
Políticos em Washington, “o decreto de Bush, na realidade, declarou que todo o
petróleo do Iraque passava a ser propriedade definitiva das empresas de petróleo
dos EUA”.
A
resistência iraquiana conhece perfeitamente os termos da Ordem Executiva n.
13.303 – e por isso vive a sabotar e continuará sabotando o crucial oleoduto
Kirkuk-Ceyhan. Quanto mais os iraquianos sejam obrigados a esperar que o
dinheiro do petróleo volte a correr na direção do Iraque e ajude a reconstruir o
país, mais o governo de transição imposto pelos EUA perdera sua já fraquejante
credibilidade. De tudo isso, a população iraquiana só sabe, com certeza, que a
gasolina é vendida a preços altíssimos sempre no mercado negro; e que, nas
casas, só há eletricidade durante três horas por dia.
Giap
também escreveu que a resistência no Vietnã tinha de “esmagar o projeto
maquiavélico do imperialismo norte-americano, de fazer vietnamitas combaterem
contra vietnamitas, de alimentarem guerra com guerra”. Os norte-americanos estão
cometendo o mesmo erro no Iraque.
Os
EUA foram ao Vietnã, dentre outros fatores, para reforçar a própria
credibilidade simbólica e exibir novas tecnologias militares. No Iraque, a
demonstração teatral foi, sem dúvida, poderosa, mas a credibilidade simbólica
está sendo reduzida a cinzas. No Vietnã, os EUA quiseram fazer uma demonstração
de como esmagar regimes revolucionários nacionais, no sempre depreciativamente
ainda chamado Terceiro Mundo. Falharam miseravelmente. No Iraque, os EUA
sonharam com mostrar como “corrigir” regimes ex-fregueses que se desencaminhem.
Também estão falhando miseravelmente – com as condições ali cada dia mais
maduras para uma guerra popular que leve ao surgimento de mais um regime
nacional revolucionário.
A
ideia do n. 2 do Pentágono, Paul Wolfowitz, para uma ordem política e econômica
no Iraque é em tudo semelhante ao que os EUA queriam no Vietnã do Sul – e
semelhante também ao que os EUA estavam forçando em todo o Terceiro Mundo nos
anos 1950s e 1960s. No Vietnã, os EUA tinham o poder e o controle de um governo
fantoche (do Vietnã do Sul). Mas falharam completamente e não conseguiram criar
sistema político, econômico e ideológico viável, capaz de resistir à revolução
dos vietnamitas. Implica que a derrota não militar dos EUA foi ainda mais
crucial que o impasse militar em que se meteram.
O
mesmo pode estar acontecendo no Iraque. Wolfowitz e companhia não estão, não, de
modo algum, interessados em alguma democracia, porque sabem que em eleições
livres, justas e democráticas, o Iraque se encaminhará para governo xiita,
provavelmente regido pela lei da Xaria, e com absoluta certeza antiamericano [como hoje sabemos que aconteceu. NTs].
No Iraque, como no Vietnã, os EUA só implantaram um sistema militar de fato.
Esse sistema deverá controlar – ou, eufemisticamente, “supervisionar” – a
estrutura política e, mais importante, como Asia Times Online já
demonstrou, a nova ordem econômica subsidiada pelos
EUA. Em todos os sentidos, pelo projeto de Wolfowitz, o Iraque deve ser
convertido em colônia dos EUA.
No
Vietnã, os EUA não foram capazes de converter seu descomunal poder de fogo em
algum tipo de sedução política. Dialéticos refinados, os veteranos da Guerra
Americana, hoje, em Hanoi, dizem que, de tanto bombardear indiscriminadamente o
Vietnã, os EUA provocaram trauma psicológico e econômico quase insuperável:
desse modo, os EUA jamais conquistarão corações e mentes. Sobre o Iraque, hoje,
do qual também falam, dizem que o Pentágono ainda não aprendeu uma lição de
importância crucial: é absoluta e completamente impossível abordar com violência
uma sociedade complexa, sem provocar corrosões sociais que, na continuidade,
sempre levarão ao colapso de qualquer regime fantoche.
Se
Washington subestimar a resistência iraquiana, o risco é seu. A resistência está
aprendendo depressa, na luta, as lições do Vietnã – onde os comunistas, em
guerra longa, derrotaram a maior máquina de guerra que o mundo jamais produzira,
e por três razões, como diria Giap: a descentralização, a mobilização de massa e
táticas militares de alta mobilidade. Giap articulou um conjunto de manobras
políticas, organizacionais e técnicas, para contrabalançar a gigantesca máquina
de guerra dos EUA, que pode ser aplicado pelas forças de resistência em qualquer
ponto do mundo, especialmente no Iraque [em 2003, ou na Síria, em 2013, por que
não? (NTs)].
Notas
dos tradutores
[1]
Vo Nguyen GIAP, “Guerra do Povo, Exército do Povo”, Editora
Ulmeiro, s/d. Tradução Manuel Reis Ferreira, Edição e Coordenação José
Fortunato, Lisboa. Em Textos Marxistas do sítio Primeira Linha
lê-se o prólogo à edição cubana de 1962 escrito por Che Guevara
(esp.).
[2]
“O
primeiro-ministro do Iraque, Nouri al-Maliki, foi eleito para um terceiro
mandato como presidente do Partido Dawa Islâmico, em eleições das quais
participaram inúmeros líderes políticos iranianos, mas que mídia ignorou
completamente. Essa eleição é o primeiro passo no processo pelo qual Maliki deve
renovar pela terceira vez seu mandato como primeiro-ministro. O Partido Dawa
Islâmico é um dos mais antigos partidos religiosos do Iraque. Foi fundado em
meados dos anos 1950s, inspirado pelas ideias do conhecido clérigo xiita
Muhammad Baqir al-Sadr”. (18/3/2013, “Maliki Reelected as Dawa Head for Third
Time”, Mushreq Abbas, Al-Monitor).
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista e correspondente das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu, no blog redecastorphoto.
Livros
- Globalistan:
How the Globalized World is Dissolving into Liquid
War, Nimble Books, 2007
- Red
Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007
- Obama
Does Globalistan, Nimble Books, 2009
Comentário enviado por e-mail e postado por Castor
ResponderExcluirUm professor, sem formação militar, foi o responsável pela
humilhação do segundo maior império colonial e da maior
superpotência do planêta.
Exemplo de patriotismo, de civismo e de nacionalismo, que
nunca encontramos nos milicos subservientes que sempre
tivemos no Brasil, o general Vo Nguyen Giap, um dos grandes
gênios militares do século XX, arrasou o “mito da invencível
superioridade dos Estados Unidos”.
Faleceu aos 102 anos e era um dos personagens mais admirados
entre a juventude vietnamita, atrás apenas de Ho Chi Minh, o
fundador do atual Vietnã.
---
Silvio de Barros Pinheiro.
Santos.SP.