O
deserto da democracia de Israel
13/10/2013, [*] Max
Blumenthal, TomDispatch
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Netanyahu e a "bomba" do Irã |
Da
tribuna da Assembleia Geral da ONU, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin
Netanyahu dedicou-se a aproximar e
confundir os mais
assustadores detalhes de males feitos e a serem cometidos pelo Irã e imagens de
judeus “aterrorizados” e “deixados à morte” por antissemitas na Europa do século
19. Dirigidas contra o movimento de aproximação entre EUA e Irã e pela via
diplomática, e falando a um público de norte-americanos já fartos de guerras, as
frases desatinadas de Netanyahu ameaçam fazer dele figura ainda mais diminuída,
sem argumentos, desesperado.
Embora
o discurso tenha repercutido muito mal nos EUA, afastando até alguns dos mais
empenhados propagandistas e defensores de
Israel, aquela jeremiada serviu a um objetivo maior: desviar a
atenção mundial das políticas de Israel contra um grupo que Netanyahu excluiu
(também) do discurso na ONU: os palestinos.
Yitzhak Shamir |
Em
novembro de 1989, quando ainda era ministro na coalizão liderada pelo Partido
Likud no governo do primeiro-ministro Yitzhak Shamir, um Netanyahu mais jovem
disse ao público que o ouvia na Universidade Bar Ilan, que:
Israel
deveria ter aproveitado o ultraje da opinião pública contra a repressão às
manifestações [da Praça Tiananmen] na China, com todo o mundo atento ao que
acontecia lá, para promover expulsões em massa de árabes, dos territórios. Mas,
para minha lástima, o governo não aceitou essa política que propus, e que
continuo a repetir que deve ser implementada.
Hoje,
principal autoridade política israelense,Netanyahu
modernizou a estratégia da cortina de fumaça.
Enquanto
o primeiro-ministro deblaterava contra o Irã em New York City e num
encontro com o presidente Obama no Salão Oval, seu governo preparava-se para
implementar o “Plano Prawer” – concebido para expulsar 40 mil beduínos nativos e
que são cidadãos israelenses, de suas comunidades ancestrais no deserto de
Negev, para “concentrá-los” em aglomerados comandados pelo estado, semelhantes a
reservas indígenas.
Como Israel ROUBA terras e bens dos palestinos desde 1947 |
Concebido
pelo principal estrategista político de Netanyahu, Ehud Prawer, e aprovado pela
maioria dos membros dos principais partidos políticos no Knesset, o Plano
Prawer é só uma das ferramentas do novo programa do governo de Israel para
dominar todos os espaços e a vida das pessoas entre o rio (Jordão) e o mar
(Mediterrâneo).
Expulsões
no deserto
Dia
9/9/2013, visitei Umm al-Hiran, uma das vilas que o estado de Israel planeja
varrer do mapa. Localizada na parte norte do Deserto de Negev, dentro dos
limites da Linha Verde (a linha demarcada no armistício de 1949 considerada como
ponto de partida para qualquer negociação entre israelenses e palestinos),
dentro da parte que Israel espera que seja legitimada numa solução de Dois
Estado negociada pelos EUA, os moradores de Umm al-Hiran mobilizam-se para
resistir à remoção forçada.
Umm al-Hiran, aldeia prestes a ser roubada pelos judeus de Israel |
Hajj al-Ahmed |
Na
sala de uma casa poeirenta, mas impecavelmente organizada, construída com blocos
de concreto nos arredores da vila, Hajj al-Ahmed, um xeique já idoso, falou a um
grupo de colegas jornalistas do website Mondoweiss e
a mim, sobre a experiência dos 80 mil beduínos que vivem nessas vilas
classificadas como “não reconhecíveis”. Resultado de repetidas ações que lhes
tiraram terras e casas, e vítimas de inúmeras ações de deslocamento forçado,
muitas dessas comunidades são cercadas por áreas de despejo de dejetos
petroquímicos e foram transformadas em clusters de alta incidência de câncer,
enquanto prosseguem as campanhas, por aviões israelenses que despejam produtos
químicos, para destruir plantações e matar os rebanhos; essas campanhas já
dizimaram os meios locais de subsistência.
Shai Hermesh |
Embora
residentes como al-Ahmed tenham cidadania israelense, não podem beneficiar-se
dos mesmos serviços públicos oferecidos a comunidades de judeus que há nos
arredores. As estradas para as vilas “não reconhecíveis” como Umm al-Hiran são
margeadas por fiação elétrica, mas os beduínos são proibidos de se conectarem à
rede pública. As suas casas e mesquitas são consideradas construções “ilegais” e
alvo rotineiro de operações de demolição pelas forças israelenses. Agora, a
simples presença deles nas terras que lhes pertencem milenarmente, já está sendo
ameaçada.
Conforme
o Plano Prawer, o pessoal de Umm al-Hiran estará entre os 40 mil beduínos que
serão transferidos à força para cidades semelhantes às que se veem em reservas
dos povos nativos norte-americanos, construídas pelo governo de Israel. Como
grupo de mais alto nível de crescimento demográfico entre os cidadãos palestinos
de Israel, os beduínos foram marcados como ameaça existencial à maioria de
judeus em Israel. “Não é do interesse de Israel que haja mais palestinos no
Negev” – disse Shai Hermesh,
ex-membro do Knesset e diretor do projeto do governo para construir uma “maioria
sionista” no sul do deserto.
Ron Lauder |
Segundo o website do Or
Movement, organização ligada ao governo que
supervisiona o assentamento de judeus no Negev, os residentes das vilas não
reconhecidas serão movidos para cidades construídas para “concentrar a população
beduína”. E pequenas comunidades exclusivas para judeus serão construídas nos
locais de onde estão sendo expulsas as comunidades beduínas. A comunidades de
judeus receberão vários benefícios do governo de Israel e farto financiamento
provido por doadores pró-Israel, como, dentre outros, o bilionário da indústria
de cosméticos, Ron Lauder. “Os EUA tiveram seu Destino Manifesto no oeste” –
disse Lauder. – “Para Israel, aquela terra é o Negev”.
Quando
encontrei al-Ahmed, ele falou de um grupo de 150 estranhos que apareceram de
repente na periferia de sua vila no dia anterior. Do alto de uma colina, disse
ele, examinaram a região e debateram que parcela caberia a cada um, depois de o
Plano Prawer estar completado. Al-Ahmed chamou-os de “judeus no bosque”.
Distante
vários metros na direção leste de Umm al-Hiran, está a Floresta Yattir,
um vasto bosque no coração do deserto, plantado pelo Fundo Nacional Judeu [orig.
Jewish National Fund
(JNF)], organização paragovernamental, em 1964. O diretor do JNF
naquela época, Yosef Weitz, chefiara o Comitê de Transferência, do governo de
Israel, que orquestrou os estágios finais da remoção dos palestinos em 1948.
Para Weitz, plantar florestas servia a um duplo objetivo estratégico: as
florestas, como Yattir, plantadas próxima à Linha Verde, criariam uma barreira
demográfica entre judeus e árabes; e outras florestas, plantadas em terras de
antigas vilas palestinas, como Yalu, Beit Nuba e Imwas, impediriam a volta dos
habitantes expulsos. Como escreveu em 1949, depois que a maioria de judeus
estivesse estabelecida em Israel, mediante a expulsão em massa, “as terras
abandonadas jamais voltariam aos antigos proprietários (árabes palestinos)”.
Floresta de Yattir |
Depois
que a noite caiu no deserto, saí a rodar, com meus colegas sob os pinheiros de
Yattir. Num carro pequeno, rodamos por estradas sem iluminação, até que chegamos
a um portão protegido por arame farpado. Era a vila-acampamento modelo de Hiran
– dos “judeus no bosque”, como dissera al-Ahmed. Gritamos para que nos deixassem
entrar, até que o portão foi aberto. Estacionamos no meio de um “acampamento” de
casas-trailers. Como um shtetl no Assentamento, o território, na
Rússia Imperial, reservado para residência dos judeus, tudo ali cheirava a sítio
e desconfiança.
Um
nacionalista religioso barbudo saiu de uma sinagoga com paredes de alumínio e
reuniu-se conosco em bancos em torno de uma mesa para piqueniques. Chamava-se
Af-Shalom e tinha cerca de 30 anos. Não estava, disse ele, autorizado a falar
conosco, antes da chegada de um representante do Or Movement. Mas depois
de meio cigarro e poucos minutos de desconforto, o homem pôs-se a falar. Mandara
os filhos, disse, para uma escola do outro lado da Linha Verde, na colônia de
Susiya, a apenas oito minutos de distância por uma das estradas exclusivas para
judeus. Que os beduínos eram “ilegais”, ocupantes da terra que Deus dera aos
judeus e continuariam a tomar terra dos judeus, a menos que fossem removidos à
força. Pouco depois, chegou Moshe, representante do Or Movement que se
recusou a informar seu nome completo. Nos acompanhou na visita, sem dizer
palavra.
“O
maior centro de detenção do planeta”
A apenas poucos quilômetros de Umm al-Hiran, no sul do deserto Negev e dentro da Linha Verde, o estado de Israel iniciou outro projeto ambicioso para “concentrar” outro tipo de indesejáveis. É a prisão de Saharonim, vasto complexo de torres de vigilância, muros de concreto, arame farpado e um oceano de câmeras de vigilância que hoje constituem o que o Independent britânico descreveu como “o maior centro de detenção do planeta”.
Construído originalmente para
servir como prisão para palestinos durante a 1ª Intifada, a prisão de Saharonim
foi ampliada para prender 8 mil africanos que fugiam de genocídios e
perseguições. Atualmente, vivem ali pelo menos 1.800 refugiados africanos,
inclusive mulheres e crianças, cercados num local que o grupo israelense de arquitetos Bikrom
descreveu como “um gigantesco campo de concentração, onde as
condições de sobrevivência são duríssimas”.
Como
as vilas “não reconhecidas” dos beduínos do Negev, os 60 mil migrantes africanos
e buscadores de asilo político que vivem em Israel foram identificados como
ameaça demográfica que tem de ser expurgada do corpo do estado judeu. Numa
reunião com ministros de seu gabinete em maio de 2012, Netanyahu alertou que o
número deles poderia crescer dezenas de vezes, e “causar a negação do Estado de
Israel como estado judeu e democrático”. Por isso, seria imperativo “remover
fisicamente os infiltradores” – disse o primeiro-ministro de Israel. “Temos de
quebrá-los e implantar castigos ainda mais duros”.
Em rápida sequência, o Parlamento
de Israel emendou a Lei de Prevenção de Infiltrações, aprovada em 1954 para
impedir que refugiados palestinos jamais voltassem a se reunir às famílias e
para que fossem forçados a deixar em Israel todas as suas propriedades e bens.
Sob a nova lei, africanos não judeus poderiam ser presos e mantidos em prisão
sem julgamento por três anos (a Suprema Corte israelense invalidou essa emenda à
lei, mas o governo não fez qualquer movimento para “desfazer” o que estava
feito, e talvez jamais faça). A lei também criava meios para financiar a
construção da prisão de Saharonim e de um muro gigante para fechar toda a
fronteira entre Israel e Egito. Arnon Sofer, há muito tempo conselheiro de
Netanyahu, também lembrou a urgência de construírem-se “muros para o mar” [orig.
sea walls] para impedir a entrada de
“refugiados das mudanças climáticas”.
Arnon Sofer |
“Não
estamos habituados a essa região” – Sofer explicou.
Nessa
simples frase, destilou toda a lógica do sistema de etnocracia de Israel. Para
manter o Estado Judeu, é preciso construir, por engenharia demográfica, uma
maioria de judeus não nativos, para depois dispersá-los por toda a Palestina
histórica usando métodos de implantação colonial. Planejadores do Estado Judeu,
como Sofer, referem-se a esse processo como “a judaização”.
Porque
os palestinos nativos e os migrantes estrangeiros não são judeus, o Estado de
Israel já os definiu, em termos de lei, como “infiltradores”, e já os condenou à
remoção pela força e à relocação permanente em vários tipos de zonas de exclusão
– de campos de refugiados em todo o mundo árabe, a bantustões murados na
Cisjordânia ou à Faixa de Gaza sitiada, ou, como agora, a campos de concentração
de beduínos e a prisões no meio do deserto, como a prisão de Saharonim.
Enquanto
o estado de Israel dedica-se a construir a própria maioria demográfica, os
excluídos não judeus têm de ser “concentrados”, para abrir espaços para colônias
exclusivas para judeus e para o desenvolvimento econômico.
Ze’ev Jabotinsky |
Não é sistema particularmente
humano, é claro, mas é sistema perfeitamente enquadrado na opinião sionista, da
direita Kahanista à esquerda de J Street. De fato, se há algum desacordo
substancial entre esses campos só superficialmente divergentes, é o estilo da
retórica que usam para defender a etnocracia de Israel. Como o ideólogo sionista
revisionista Ze’ev Jabotinsky escreveu e seu famoso ensaio da “Cortina de
Ferro”, de 1923, delineando a lógica da que viria a
ser a estratégia de contenção de Israel, “não há qualquer diferença
significativa entre nossos militaristas e nossos vegetarianos”.
Durante
a era de Oslo, o tempo da esperança que prevalecera na Israel de meados dos anos
1990s, foi o Partido Trabalhista “pomba” de Yitzhak Rabin e Ehud Barak quem
começou a cercar com barricadas a Faixa de Gaza, além das cercas eletrificadas,
ao mesmo tempo em que começavam a arquitetar os planos para erguer um muro que
separasse a Cisjordânia, de “Israel propriamente dita”. (O plano então
preparado, seria implementado durante o governo de Ariel Sharon como
primeiro-ministro).
“Nós
aqui, eles bem longe” – foi o slogan da campanha eleitoral de Barak, candidato à
reeleição em 1999, e do campo Paz Já, que, naquele momento, apoiava uma solução
de dois estados. Durante a implantação das políticas separacionistas do Partido
Trabalhistas, os palestinos de Gaza e da Cisjordânia foram gradualmente
desaparecendo do próspero centro costeiro de Israel, consolidando cidades como
Telavive como “mecas” do cosmopolitismo europeu – “uma Villa na selva”,
como disse Barak.
Com
a transição política de pós-Oslo, que destroçou o “campo da paz” israelense,
partidos da direita ascendente assumiram como sua missão concluir o serviço que
os Trabalhistas haviam começado. Em 2009, quando Israel elegeu o governo mais
linha-dura e reacionário de toda sua história, o país continuava cheio de
“infiltradores”, os mais visíveis dos quais são aqueles migrantes africanos, sem
papéis que lhes permitam trabalhar, e cada dia mais forçados a dormir pelas
praças em Telavive.
Segundo matéria publicada no jornal
Haaretz,sobre pesquisa recentíssima feita
pelo Israel Democracy Institute,
sobre atitudes dos israelenses;
Eli Yishai |
(...)
os árabes já não aparecem no topo da
lista de vizinhos que os israelenses consideram indesejáveis, substituídos hoje
por trabalhadores estrangeiros. Quase 57% de respondentes judeus disseram que se
sentiriam incomodados se tivessem, como vizinhos, trabalhadores
estrangeiros.
Sem
se deixarem conter pelas declarações de tolerância da centro-esquerda, a direita
do governo lançou um festival sem precedentes de incitamento ao racismo.
O Ministro do Interior, Eli Yishai
do Partido Shas (substituído depois da eleição de 2013), por exemplo, descreveu
os migrados africanos que buscam asilo como “infectados por inúmeras
doenças”e lamentou que “não saibam que o
país nos pertence, a nós, os brancos”. E prometeu: “Até eu posso
deportá-los. Meto-os na cadeia e faço da vida deles, um inferno”.
Miri Regev |
Num
comício em maio de 2012, em Telavive, contra os africanos, no palanque, diante
de mais de mil manifestantes, a deputada e ex-porta-voz do exército de Israel,
Miri Regev disse: “Os
sudaneses são um câncer no nosso corpo!”. E incitou centenas de manifestantes
que, em blocos, vandalizaram estabelecimentos comerciais de propriedade de
negros e atacaram com paus e pedras os negros que encontrassem. Os judeus
israelenses racistas cantavam “Nosso povo quer queimar os africanos!”.
Como
em outros momentos terríveis da história humana, os clamores eliminacionistas
florescem em centros urbanos, contra uma classe de estigmatizados, e abre espaço
para discursos a favor da purificação étnica ou racial. Na noite seguinte,
depois dos vidros quebrados, as celas de Saharonim receberam ainda mais
prisioneiros. (...)
[*] Max
Blumenthal, nascido em Boston em 18/12/1977,
é jornalista, blogueiro e autor do best-seller Republican Gomorrah:
Inside the Movement That Shattered the Party. Produziu vários
documentários que podem ser assistidos no YouTube e muitos websites. Foi colunista sênior do The Daily Beast. Trabalha atualmente na
organização progressista Media Matters for
America. Mantém o website MaxBlumenthal.com.
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